O combate ao coronavírus nas favelas
Em função das condições sociais e geográficas, a pandemia do coronavírus adquire no Brasil um grau alarmante de perversidade. Se entre o vírus e o hospedeiro se estabelece uma relação de ordem natural, quando se trata de sua difusão epidêmica ou pandêmica são as relações e as condições socioespaciais que passam a ordenar o processo
A velocidade da contaminação pelo coronavírus implica rápidas transformações sociais. Em meados de março ressaltei a necessidade de medidas urgentes e adaptadas ao contexto socioespacial das favelas brasileiras para conter a expansão do vírus. Naquele momento, o tema dos assentamentos precários ainda não era, nem aqui nem no exterior, uma preocupação específica relacionada à pandemia.
Passados poucos dias, observo com esperança que diversas organizações comunitárias e grupos virtuais têm se mobilizado para que a informação suba o morro, adentre becos e vielas.
Além da informação, esses grupos têm feito esforços em mapear áreas precárias, casos de doentes, acessos à água e, com bastante empenho e sucesso ainda relativo, têm debatido soluções para quando o coronavírus entrar nas “quebradas”. Infelizmente, o Centro de Modelagem Matemática de Doenças Infecciosas da London School avalia que a subnotificação no Brasil é enorme – apenas 11% dos casos têm sido notificados. Ou seja, centenas de pessoas em cada comunidade podem estar infectadas e transmitindo a doença. Saberemos a dimensão do problema apenas quando contarmos nossos mortos.
Em função das condições sociais e geográficas, a pandemia do coronavírus adquire, aqui, um grau alarmante de perversidade. Se entre o vírus e o hospedeiro se estabelece uma relação de ordem natural, quando se trata de sua difusão epidêmica ou pandêmica são as relações e as condições socioespaciais que passam a ordenar o processo.
Como se pode verificar pelo mapeamento on-line (https://bit.ly/mapa-RJ) dos casos na cidade do Rio de Janeiro, a evolução intraurbana da pandemia tem um padrão geográfico claro. Ela reproduz a segregação socioespacial de nossas cidades. O vírus vem das áreas ricas, em contato com o exterior, e adentra aos poucos as áreas mais pobres em função das relações de trabalho, em especial do trabalho doméstico. Até março, no Rio de Janeiro, os bairros ricos como Barra da Tijuca, Leblon e Ipanema lideravam o número de casos diagnosticados, enquanto Bangu, Madureira, Piedade e outros bairros-dormitórios contavam com apenas um caso confirmado em cada bairro.
Não à toa, as duas primeiras vítimas fatais no Brasil foram uma empregada doméstica no Rio de Janeiro e um porteiro em São Paulo. Além disso, diversos relatos dão conta da perversidade de parte da classe média e dos ricos tratando “seus” empregados como cidadãos de segunda ordem, pessoas que devem continuar trabalhando, zelando inclusive pelo bem-estar de seus senhores doentes.1 Por outro lado, há o entendimento dos moradores das favela de que os “gringos”2 e os ricos são os responsáveis pela iminente contaminação dos mais pobres.
Passados alguns dias, verifico também algumas iniciativas em âmbito internacional que buscam pressionar agencias da ONU (Habitat e OMS, em particular) para que prestem atenção específica aos assentamentos precários em todo o mundo. A expectativa nesse sentido é enorme; o Brasil é o primeiro país com grande número de pessoas morando em condições precárias a ter disseminação comunitária do vírus.
Na África, por causa da pobreza estrutural e dos conhecimentos adquiridos com a transmissão do ebola e mesmo do HIV, governos nacionais parecem estar mais atentos a essas particularidades, ainda que medidas até agora anunciadas para a contenção do vírus em assentamentos precários pareçam tímidas. Em 23 de março, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, se dirigiu à nação e qualificou o vírus como extremamente perigoso para uma população com um grande número de pessoas com imunidade deprimida por causa do HIV e da tuberculose e altos níveis de pobreza e desnutrição.3 Entre várias medidas anunciadas estão o reforço de abastecimento de água com caminhões-tanque nas favelas e a criação urgente de novos abrigos para os sem-teto.
Voltando ao caso brasileiro e analisando os esforços da sociedade civil relativos à contenção da propagação do vírus nas favelas brasileiras, pode-se constatar: 1) as inciativas até aqui existentes partem de profissionais e militantes anteriormente engajados com o tema das favelas; 2) há enorme preocupação em buscar alternativas para as medidas já anunciadas de contenção do vírus, que definitivamente não funcionam nas favelas; 3) informação e solidariedade são os principais “remédios” até agora apontados; 4) não existe ou é baixa a interação entre essas iniciativas e o setor público, sendo o SUS e a Defesa Civil os principais “braços” do Estado citados nesses grupos; 5) há uma visão clara de que a Covid-19 é uma doença de rico “importada” para dentro das favelas, com potencial de transformar-se em um genocídio, o que reforça relações históricas de violência entre a “cidade formal” e o Estado contra as favelas e os pobres; 6) surgem diversas campanhas para doação de recursos, em especial para a preservação da vida das empregadas domésticas; 7) particularmente no Rio de Janeiro, como em outras situações, a organização do tráfico ocupa o vazio deixado pelo Estado; 8) há uma perda substancial de energia dedicada a combater as ações da necropolítica do Estado brasileiro, em particular vindas do governo federal, a exemplo da MP da Morte (Medida Provisória n. 927/2020).
O que se pode apreender até o momento é qual parcela da sociedade está sensível quanto à gravidade e à urgência da evolução da pandemia nos assentamentos precários. Essa preocupação é compartilhada com parte do aparato estatal, em especial a parcela dos governos locais e estaduais que forma a linha de frente de enfrentamento de situações de calamidade pública. Além disso, constata-se que as condições geográficas cumprem importante papel na disseminação dos casos, sendo possível afirmar que a gravidade e a letalidade estão associadas às condições sanitárias e de saúde prévia dos grupos populacionais, como já anteriormente tratado.
Essa sensibilidade social e o conhecimento prévio da questão têm levado grupos de especialistas, técnicos e ativistas a produzir levantamentos e mapeamentos de dados com o objetivo de agir de maneira eficiente e eficaz contra o coronavírus. Entretanto, devemos também ser tempestivos diante da urgência imposta por um vírus que no Brasil dobra o número de infectados a cada dois dias.
Partindo da análise geográfica proposta pelo professor Milton Santos, sugiro a seguir algumas medidas a serem colocadas em execução e elenco outras que já circulam em diversos grupos. Entendo que essas medidas vão além daquelas de responsabilidade exclusiva do Estado no enfrentamento da crise urbana estrutural. São medidas a serem tomadas pela sociedade como um todo no enfrentamento de uma crise conjuntural potencializada por déficits históricos.
Em seu livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, Santos apresenta a globalização de três maneiras. Primeiro, como uma fábula vendida por guias turísticos, filmes, produtos globais etc. Em seguida, como uma perversidade, ou seja, como o que realmente ela é, a globalização do dinheiro em seu estado puro, uma busca incessante pela mais-valia universal. E, por fim, a globalização como pode vir a ser, a globalização em sua dimensão humana. Essas três formas convivem, ainda que as duas primeiras sejam mais proeminentes ou visíveis em tempos de normalidade das condições capitalistas.
Em contexto de crise, afloraram expressões dessa outra forma possível de globalização, essa que é relacionada ao que o autor chamou de “período popular da história”. É nesse período, iniciado no século XXI, que poderemos chegar a uma consciência universal, à compreensão empírica da totalidade que supera dicotomias como homem e natureza e refunda o conhecimento, superando, inclusive, conceitos insustentáveis no capitalismo, como o de sustentabilidade ambiental. Essa consciência universal que surgirá de uma nova globalização foi bem representada no filme Avatar, uma dica para a quarentena àqueles que podem se isolar em casa.
A sugestão imediata que tiro dessa compreensão teórica é a necessidade de reconectar o homem à natureza, ao seu meio, tendo a tecnologia como uma ferramenta de ação popular.
Fazendo frente à Covid-19 nas favelas brasileiras, isso poderia se dar por meio de ações comunitárias de limpeza urbana e melhorias habitacionais de urgência, com foco no abastecimento de água potável, bem como em melhorias de ventilação e insolação. A organização deveria ocorrer em escala local, com envolvimento em rede da comunidade, com o uso de aplicativos em smartphones conectados gratuitamente à internet.
O par de conceitos tecnoesfera e psicoesfera, também proposto por Santos, é fundamental, tanto para a leitura da atualidade, como para a superação das condições dadas e possível construção de um mundo novo após a crise.
A esfera técnica – objetos, produtos, infraestruturas – é sempre acompanhada por seu par indissociável, a esfera psicológica. Não há novo produto técnico sem a existência das condições psíquicas, inclusive prévias, para que este seja aceito como necessário e, assim, passe a ser utilizado. É a psicoesfera, por exemplo, que transfere ao aplicativo de mapas a nossa capacidade de nos guiar na cidade, o que concomitantemente nos torna reféns dessa tecnoesfera.
Na atual crise, a tecnoesfera é lembrada no número de leitos, nos aeroportos e voos internacionais que trazem o vírus, no sistema de transporte urbano, na qualidade da urbanização, incluindo sua precariedade. A psicoesfera vai do “apocalipse zumbi” à ideia da “gripezinha”, e é produzida segundo interesses de investidores ou políticos que buscam minimizar perdas ou gerar ganhos, como pastores de igrejas evangélicas que negam a gravidade da situação e recusam fechar suas igrejas.
Combater o alastramento da Covid-19 nas favelas e assentamentos precários passa pela produção de uma psicoesfera saudável, baseada na distribuição de informações sem inibições, constrangimentos ou vetos de cunho religioso ou ideológico. Os movimentos jovens relacionados ao funk, as associações comunitárias, as igrejas efetivamente comprometidas com a vida, as mídias engajadas na superação da crise e na manutenção da vida de todos, as ONGs etc. poderiam se reunir em uma tecnoesfera – redes virtuais – comprometida com a formação de uma psicoesfera solidária, comunitária e saudável.
É essa esfera psicológica a única garantidora das condições de reprodução da vida e permanência da ordem perante as dificuldades de desabastecimento e esgotamento do sistema de saúde que milhões de pessoas estão enfrentando.
Hoje, mais do que nunca, vivemos naquilo que Marshall McLuhan chamou em 1962 de aldeia global para descrever o fenômeno de interconexão mundial por meio de tecnologias midiáticas. Meio e mensagem, tecnoesfera e psicoesfera, produzindo essa ideia de que vivemos próximos, ainda que fisicamente distantes.
Visto que nenhum homem é uma ilha e que fronteiras não detêm o vírus, assim como não contêm as mudanças climáticas, deveríamos lidar com essa condição partindo do que é particular em nosso desenvolvimento, aquilo que Santos chamou de “flexibilidade tropical” para se referir à capacidade, sobretudo, do “circuito inferior da economia urbana”, de dar os seus jeitinhos. Ou seja, neste momento em que os princípios econômicos que regem o dito setor formal estão colocados em xeque, deveríamos incentivar as soluções locais, as ações de vizinhança, aquelas que reciclam ideias e improvisam materiais.
Uma sugestão para o desabastecimento e para assegurar a alimentação das pessoas nas favelas poderia ser destinar a merenda das escolas, agora fechadas, para essas localidades, compondo esforços com a comunidade organizada para que as entregas sejam realizadas e, novamente, gerenciando esses esforços por meio de aplicativos simples instalados em smartphones. Soma-se aqui a opção de compras públicas de cestas de hortifrútis provenientes da agricultura familiar e de distribuição nessa mesma rede, assegurando também a renda básica ao produtor rural.
Outras sugestões e reivindicações estão sendo feitas por grupos de pesquisadores, movimentos sociais, associações de classes e militantes reunidos em torno da reforma urbana e dos direitos humanos, preocupados não apenas com a questão das favelas, mas também com a dos assentamentos precários e da pobreza urbana em geral. Uma das principais, e que conta com apoio da ONU, é a implementação imediata da Renda Básica de Cidadania Emergencial, a exemplo do que já foi feito por outros países.
A necessidade, sobretudo neste momento, de haver paz nas áreas mais pobres das cidades também é um ponto que une diversos grupos. Para tanto, duas principais propostas têm aparecido. A primeira, já chancelada por representantes do Ministério Público, trata da suspensão por período determinado de despejos e remoções forçadas. Pede-se também que cessem as incursões policiais violentas nas favelas, fato que se tornou ainda mais corriqueiro nos últimos anos. Paz, aqui, significa diminuir o grau e a imprevisibilidade da vida e possibilitar que milhares de famílias possam se programar diante da crise.

Outra ação a ser tomada com a máxima urgência é diminuir a densidade dessas ocupações e isolar aqueles que estiverem doentes. Definitivamente, não há maneira de conter a transmissão do vírus em lugares em que diversas pessoas convivem em um mesmo pequeno quarto rodeado de outros quartos com tantas e tantas outras famílias, sem insolação, ventilação e com muita umidade.
Para tanto, a sugestão que vem sendo feita é a ocupação de imóveis vazios ou ociosos. Em diversas cidades, o número de imóveis “disponíveis” supera o déficit habitacional. Ou seja, há um estoque de imóveis que permite uma ação de alto impacto na contenção do vírus. Neste caso, mais uma vez, tecnoesfera e psicoesfera podem se juntar na construção de uma nova solidariedade, na busca de uma consciência coletiva. Imóveis e famílias poderiam ser facilmente cadastrados em aplicativos que assegurariam total transparência ao processo. Por outro lado, a vasta tecnologia social dos movimentos sociais de luta por moradia facilmente asseguraria o sucesso de uma empreitada como essa. Para aqueles que não acreditam ser possível, sugiro que aproveitem a quarentena e assistam a um destes documentários sobre o tema: À margem do concreto (2006), Leva (2011) ou Era o Hotel Cambridge (2016).
As características da urbanização brasileira, seu desenvolvimento “corporativo e fragmentado” e sua configuração excludente e segregadora impõem à sociedade optar por uma série de ações a princípio radicais e que, justamente por isso, podem salvar milhares de vidas. Ou se pode continuar naturalizando a existência das favelas e a existência de cidadãos de segunda classe, historicamente excluídos pela necropolítica das benesses do desenvolvimento.
Ações radicais são necessárias e urgentes e, como verificado em outros países, devem se pautar, fundamentalmente, pela construção de mecanismos de inclusão, solidariedade e justiça social.
Renato Balbim, geógrafo-urbanista, é pesquisador e professor visitante da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI).
1 Djeff Amadeus, “A estranha quarentena com empregada doméstica no ‘Brazil Corona”, Carta Capital, 15 mar. 2020.
2 Chico Regueira, “Turismo em comunidades como a Rocinha deixa moradores vulneráveis ao coronavírus, diz pesquisadora da Uerj”, G1, 17 mar. 2020.
3 South African Government, “President Cyril Ramaphosa: Escalation of measures to combat Coronavirus COVID-19 pandemic” [Presidente Cyril Ramaphosa: escalada de medidas para combater a pandemia de Covid-19 coronavírus], 23 mar. 2020.