O “complô” feminista
Uma série de livros recentemente lançados na França e com grande repercussão na mídia criticam o movimento feminista, classificando-o de “fraude”, empresa de “vitimização” das mulheres, que “fragilizam” os homens e os transformam em “objetos” de suas “novas tiranas”Gisèle Halimi
Impossível não ter visto, ouvido, lido, percebido. Fogo pesado de todos os lados. Tiros violentos. O alvo? O feminismo atual: “Uma fraude”, uma empresa de “vitimização” das mulheres, que “fragilizam” os homens, que os transformam em “objetos” de suas “novas tiranas”, as feministas. Livros, manifestos barulhentos e um intermediário hegemônico, obcecado, nos meios de comunicação de massa1.
Violência sofrida pelas mulheres. Nossos procuradores contestam sua importância e amplitude. Criticam, em coro, a grande Pesquisa sobre a Violência com as Mulheres na França (ENVEFF, conforme a sigla em francês), publicada em 2001, por praticar a mistura entre suas diferentes formas. Primeira pesquisa desse gênero na França, os(as) autores(as), pesquisadores(as), são acusados(as) de terem computado, sob o mesmo título – “violência conjugal” – os ataques psíquicos e físicos sofridos. Desde a violência psicológica até a violência sexual2. Seria um truque, uma vontade de exigir (injustamente?) proteção e reparação, em suma, uma atitude de “vitimização”, segundo os(as) censores(as). Com o objetivo (e resultado) de acusar inocentes: os homens.
Esmagadora relação de forças ignorada
É possível questionar o que leva algumas mulheres, que se proclamam, em alto e bom tom, feministas, a se preocupar, sob a proteção de um pretenso rigor científico, com “derrotas” masculinas. Em detrimento da miséria e do desespero da maioria das mulheres do mundo. Será que ignoram a esmagadora relação de forças, de dominante a dominado, entre homens e mulheres? Essa relação socioeconômica que faz das mulheres a maioria das desempregadas, a maioria dos que ganham salário mínimo, dos trabalhadores em tempo parcial (nesse gueto do emprego, 83% são mulheres), das titulares do contrato de trabalho por tempo determinado (60%), das grandes discriminadas nos recrutamentos das empresas, na promoção, ausentes da direção das grandes empresas? A pobreza (80% são mulheres) e sua precariedade3?
Será que elas ignoram o papel – real e simbólico – da dominação masculina na própria origem da violência? Uma norma religiosa e cultural antigamente difundida e ainda tolerada atualmente. O homem violento, favorável à violência, marca seu território e lembra que detém o poder. Ao mesmo tempo em que isso significa a ligação entre virilidade e sexualidade4.
Violência multiforme e universal
As mulheres serão a maioria das desempregadas, dos que ganham salário mínimo, dos trabalhadores em tempo parcial, dos titulares do contrato de trabalho por tempo determinado
Multiforme, a violência dos homens contra as mulheres é universal. Constitui mesmo uma das formas extremas das relações entre o masculino e o feminino no casal. O Congresso Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena (1993), reconheceu sua existência e sua amplitude. Foram definidas como “uma violação dos direitos humanos”. Em Pequim, durante o Congresso Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres (1995), os governos representados dedicaram-se a estabelecer balanços, a lutar contra essas violências e a apoiar as vítimas.
Para os que, hoje, fazem as acusações, a acusada é a mulher atacada. Ela, que sabe que as diversas formas de violência não têm fronteira, exceto no frio documento das relações. Entre a fúria de um interrogatório (“Eu tinha proibido de você se encontrar com essa amiga…”; “Onde você estava quando telefonei?…”), o desprezo com que ele a trata e que ela acaba interiorizando (“Você é medíocre”, “Você é babaca”…), o empurrão e a humilhação que se seguem, se ela retruca, uma verdadeira surra seguida no final pela violência sexual, ela vive apenas uma diferença de grau, não de natureza. O “contínuo” da violência. “Maior ou menor”, diz ela. Pergunte a ela, é o mesmo sofrimento, o da inexistência como ser humano.
Prostituição por prazer?
Talvez fosse preferível dissociar (dentro do possível), nessa Pesquisa, os resultados das diferentes formas de agressão. Mas o fundamento continua o mesmo, a existência de uma dominação masculina, e está “inscrito na definição de ser humano de propriedades históricas do homem viril, construído em oposição às mulheres” (Pierre Bourdieu).
O “complô” se trama também no fato de acusar homens. Que têm direito, entre todos os direitos, a uma mulher “prostituível”. Contra as feministas abolicionistas, que negam a realidade de uma livre prostituição. Algumas delas querem até – que horror! – punir o cliente, como em alguns países5, e seu “direito ao prazer”. Elas pensam que o mercado, na ausência de demanda, verá sua oferta esgotar. Ao lado de algumas livres-requisições, de alguns manifestos de mulheres autoproclamadas feministas (gostaria de conhecer seus títulos e ações “no” feminismo…) que afirmam que é possível se prostituir livremente e por prazer. Elas esquecem que aquelas que o asseguraram, como a célebre Ulla, em meados da década de 1970, declaram atualmente ter mentido para “corporatizar a profissão”. “Como vocês acreditaram na gente?” perguntam elas, cansadas de tanta ignorância. Nenhuma mulher, salvo pelo gosto particular de algumas relações sexuais, faria livremente comércio de seu corpo… Nenhuma mulher aceita ser reificada, consumida, objeto entre os objetos. A prostituição é o paroxismo do não poder de uma mulher sobre si mesma. E mata a mulher na mulher6.
Mulheres asfixiadas
Multiforme, a violência dos homens contra as mulheres é universal. Constitui mesmo uma das formas extremas das relações entre o masculino e o feminino no casal
Algumas prostitutas podem, com o tempo, resignar-se. Por isso se tornaram livres? Elas não esquecem que a solidão e a miséria as empurraram para o trottoir. “Pior que uma alma subserviente, é uma alma resignada”, poderia responder Péguy. Na verdade, temo que nossas signatárias – intelectuais privilegiadas – tenham se imaginado no papel de Catherine Deneuve em Bela da tarde, de Luis Buñuel.
Nossos detratores reconhecem a existência do assédio sexual às mulheres? Sempre o contestei. Ele reduz aquelas que advogamos a mulheres asfixiadas. Suspensão do trabalho, consumo de antidepressivos, dificuldade da prova, mutismo forçado de colegas. Pagam caro pela vontade de salvaguardar sua dignidade. Seu conselheiro para remediar, como li, o fato de dar um par de tapas no culpado, atesta um surpreendente desconhecimento das leis da empresa.
Elizabeth Badinter cita a “pulsão masculina” e ridiculariza o “militantismo feminino”, que acredita poder “obrigá-lo a obedecer…” 7. Acusa as feministas – quais e que organizações? – de se dedicarem “a formatar a sexualidade”. Ora, então, somente os homens teriam impulsos soberanos. Além disso, está em jogo sua “identidade”. Para azar das mulheres e de sua própria identidade.
Feminismo e “sofrimento masculino”
Chegamos, no plano racional, à contradição principal desse tipo de tese. O total universalismo de nossos acusadores não teme se misturar nas águas agitadas do diferencialismo. Se cada sexo permanecer em seu “universo”, nascerá enfim a “conivência” entre os sexos. Feministas, parem de querer barrar a rota das “pulsões” dos homens. Vocês são responsáveis pelo “sofrimento masculino”.
Argumento antifeminista por natureza e objetivamente reacionário. Que tenta fazer com que se esqueça que o feminismo, por suas lutas, lançou as bases de uma mudança social importante, com mais justiça, mais igualdade.
Mas não é só isso: o “complô” conseguiu até impor a paridade. Colocou em dificuldades o universalismo republicano. Não é hora de retomar esse debate. Basta lembrar que um universalismo que, durante mais de dois séculos, excluiu as mulheres da cidadania e de compartilhar o poder político, deu provas de seu “diferencialismo” misógino. Substituamos esse universalismo falacioso por um duplo universalismo: homens + mulheres = humanidade.
De acordo com essa requisição e para ir um pouco além, estaríamos mergulhadas no puritanismo e na ordem moral. Nós todos – movimentos e personalidades feministas juntos – que conduzimos e ganhamos a batalha da opção de dar a vida (contracepção e aborto). Que expressamos, assim, a dissociação da procriação e do amor. Ou seja, o direito ao prazer. Nós que reivindicamos – e conseguimos obter – a abolição de qualquer discriminação contra os homossexuais8.
Especificidade do feminismo francês
As feministas francesas jamais quiseram excluir ou liquidar os homens. Seu projeto global de sociedade é fundamentalmente misto
Desse processo instruído à incriminação emerge a acusação global de segregação, de ódio, de guerra dos sexos. E cita, como apoio, as escritoras norte-americanas Andrea Dworkin e Catherine Mac Kinnon. Não traduzidas na França, elas se inserem em uma sociedade e em um feminino do outro lado do Atlântico, radicalmente diferente dos elementos franceses. As feministas francesas jamais quiseram excluir ou liquidar os homens. Seu projeto global de sociedade é fundamentalmente misto. Os homens devem ter a “inteligência teórica” de sua libertação por meio da nossa. Nós os convenceremos. E o procedimento que tende a nos culpar, acaba negando um fato cultural, o da especificidade do feminismo francês.
Nossos procuradores quiseram nos prevenir contra possíveis derrapagens? Essa seria a pequena utilidade de sua proposta. Para isso, era necessário reabilitar, por meio de um discurso “machista”, os estereótipos da mulher castradora?
A não ser que o êxito de algumas lutas feministas inquiete. Gosto muito do seguinte provérbio africano: “Quando se começa a jogar pedras em uma árvore, é porque ela está dando frutos.” (Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 – Alain Minc, iEpître à nos nouveaux maîtres, Grasset, Paris 2002 ; Elisabeth Badinter, Fausse route, Odile Jacob, Paris, 2003. Em compensação, silêncio total dos meios de comunicação sobre o depoimento apaixonante do percurso de uma sindicalista feminista, Annick Coupé in Lutte de classes, lutte des sexes, Agone, n° 28, 2003.
2 – A ENVEFF, que se refere a 6 970 mulheres de 20 a 59 anos, que vivem com um companheiro, foi contestada por Elisabeth Badinter (op. cit.) assim como por Marcella Yacub e Hervé Le Bras in Temps Modernes, Paris, 1º trimestre de 2003.
3 – Ler ” Femmes rebelles “, Manière de Voir, n° 68, abril de 2003.
4 – Ler, de Daniel Welzel-Lang, Mythes de la violence, Indigo et Côté Femmes, Paris,1966.
5 – Suécia : lei de 1º de janeiro de 19