O conceito da mais-valia marxista ainda serve para alguma coisa?
Não há mais dúvidas que a austeridade reduz o consumo e leva à estagnação econômica. A pergunta a ser feita aqui é: por que elites continuam a defender essa política econômica? Por uma ótica marxista, talvez as coisas não tenham mudado tanto assim
Não é incomum estudantes de economia ridicularizarem ideias marxistas. Conflito de classe e mais-valia sempre foram, para o mainstream econômico — a direita econômica —, conceitos ultrapassados ou cientificamente errados. Quem ainda leva tais ideias a sério?
Essa atitude em relação à Marx, ou mesmo em relação a outros pensadores clássicos, é resultado de uma educação que não se aprofunda no debate das escolas econômicas. Manuais de economia promovem um debate superficial, no qual história e contexto são esquecidos para que o leitor vá diretamente “ao que importa”. Ignorando a realidade política por detrás da discussão, para quem serve as teorias?
Trazendo Marx para o presente
O conceito da “mais-valia” afirma que, no capitalismo, o trabalho da maioria, a classe trabalhadora, seria apropriado por poucos, a burguesia. Ou seja, a característica da sociedade capitalista é a injusta divisão de renda, posto que parte do que foi produzido pelos trabalhadores seria apropriado pela elite econômica. Já o conceito do “conflito de classes” afirma existir uma disputa em torno da mais-valia: a classe trabalhadora lutaria para reduzir o valor apropriado pela elite, enquanto a burguesia lutaria para aumentar a diferença e alcançar, assim, maiores lucros.
Diferentemente do que afirma a economia mainstream, os conceitos da mais-valia e da luta de classes continuam bastante válidos no século XXI, e servem de excelente suporte para a compreensão das crescentes dívidas públicas.
Dívidas públicas: o negativo que não deveria existir
A teoria mainstream leva economistas à conclusão de que as dívidas públicas são um problema, quando, muitas vezes, são a solução. A história não contada é que as dívidas públicas são um saldo negativo necessário, uma vez que representa a contraparte de um problemático saldo positivo: o que cresce, sem parar, na conta bancária de bilionários idolatrados na revista Forbes.
São problemáticas, aos olhos do mainstream, porque a sua contraparte positiva — os lucros que ficam na mão do 1% — foi convenientemente ignorada. Quando só o negativo da dívida pública é encontrado, ele passa a ser um distúrbio exógeno ao perfeito equilíbrio teórico do mainstream e, enquanto “erro”, a dívida deve ser eliminada. Diferentemente do que afirma essa linha teórica, o positivo que justifica a necessidade das dívidas públicas existe. Para alguns, esse positivo é a mais-valia, ou seja, o valor injustamente apropriado pelos 1%. Para outros, a existência da diferença é simplesmente apontada pelo termo desigualdade. Nos adentremos ao tema.
A lição esquecida da crise de 1929
Para qualquer pessoa que viveu a crise de 1929, nos EUA, a lição era evidente: o capitalismo concentrou renda no topo e eliminou os consumidores necessários para fechar o círculo da oferta e da demanda – quem não conhece a famosa foto da época, em que carros novos estão parados aos milhares nos pátios, numa economia que parece ter eliminado seus consumidores?
Ou seja, a crise de 1929 ensinou que, no capitalismo, o limite ao consumo é uma consequência da injusta distribuição, e não de alguma incapacidade produtiva ou tecnológica, como afirma o mainstream. Não por acaso, para teorias marxistas, crises escancaram o “conflito de classes” quando expõem a capacidade do capitalismo em pauperizar a classe trabalhadora, mesmo num contexto tecnologicamente avançado.
Keynes como uma correção a favor dos trabalhadores
John Maynard Keynes é o economista que traz o debate marxista para a gramática do século XX. Ele transforma o conflito em torno da mais-valia (o conflito de classes) num dilema macroeconômico, no qual as dívidas públicas são peça essencial. O economista nunca usou termos marxistas, já que se considerava um tremendo defensor do capitalismo.
Na época, Keynes apontou o óbvio: falta demanda! Ou seja, era necessário transformar trabalhadores em consumidores, pois, caso contrário, a roda não giraria. Era preciso apenas aprimorar o seu funcionamento, uma vez que o capitalismo tendia a impedir que o trabalhador acessasse o produto de seu trabalho, o que ele denominou “falta de demanda efetiva”.
O projeto Keynesiano propôs que o Estado fosse responsável por uma contínua correção histórica, que frequentemente devolvesse à classe trabalhadora o seu poder de consumo, e para que crises como a de 1929 nunca mais ocorressem. O nome dado a tal correção foi “políticas fiscais expansionistas”, mais especificamente “investimento público direto”.
A dívida pública como uma solução histórica
A fase seguinte à crise de 1929, estruturada pelo Sistema de Bretton Woods, ensinou que o Estado pode investir, assumir dívidas e ser a solução para a crescente desigualdade, motivo pelo qual, na teoria keynesiana, dívidas públicas não são fundamentalmente problemáticas. Através de uma ótica marxista, é possível ir além e afirmar que as dívidas públicas são, então, a devolução da própria mais-valia retirada da classe trabalhadora, sem a qual não reativaríamos a demanda e a produção. Graças a elas, o capitalismo sobreviveu à crise de 1929.
Empiricamente falando, a atualidade do conflito de classes estaria, portanto, no debate em torno das políticas econômicas, quando limitam ou incentivam o consumo da classe trabalhadora. Essa realidade que se escancara da pior maneira nas crises, momento no qual muitas pessoas perdem, inclusive, o necessário para um padrão mínimo de sobrevivência.
É necessário investir em setores com maior efeito multiplicador
Mais especificamente em relação à solução proposta por Keynes, após a divisão desigual reduzir o consumo, parando a produção e levando o sistema à estagnação econômica, o Estado precisa intervir.
A intervenção se dá em forma de investimento público direto em setores com grande efeito multiplicador, ou seja, em setores que, quando reativados, giram mais intensamente a economia como um todo. A movimentação gera, novamente, emprego, renda e consumo. Um típico exemplo citado de setor com grande efeito multiplicador é a construção civil.
O lado positivo das dívidas públicas há muito tempo adiantado por Marx
Se o lado “negativo”, a dívida pública, foi tema de Keynes, a história do lado positivo, do enorme lucro acumulado pelas elites, foi mais abordado por Karl Marx. O que a teoria marxista nos lembra é que, por mais que o Estado keynesiano possa corrigir os desequilíbrios monetários a favor da classe trabalhadora, com o tempo, o lado positivo também cresce.
No último volume da obra “O Capital”, Marx observa que a crescente mais-valia apropriada pela elite seria o fundamento da financeirização, o que ele denominou “capital fictício”. Ou seja, a mais-valia historicamente retirada não seria devolvida à classe trabalhadora, como afirmam os teóricos mainstream, mas transformada em capital fictício. A diferença entre capital e o capital fictício é que o último se caracteriza por ser improdutivo economicamente, ou seja, por não participar daquilo que o mainstream interpreta como a única realidade possível: o círculo da produção e consumo. Mas serve a outros propósitos como os propósitos políticos.
Contrastes entre Marx e Keynes
A diferença entre o conceito keynesiano de “preferência por liquidez” e o conceito marxista de “capital fictício” está, portanto, na tentativa de Marx em dar condição estrutural ao problema de excesso de dinheiro e capital acumulado. Se, em Keynes, excesso de liquidez é dinheiro que “não tem para onde ir” por falta de demanda agregada, para Marx, esse valor acumulado e financeirizado (o capital fictício) é a mais moderna carapuça da elite dentro do histórico conflito de classe.
Por uma ótica keynesiana: é como se a armadilha da liquidez — ou seja, a situação em que os agentes preferem ter dinheiro, sem se importar com o quão baixo estejam os juros — passasse a ser a regra. Essa tendência nos levou ao ponto de precisarmos reconhecer uma liquidez que se autonomizou e passou a ter objetivos próprios, muitas vezes políticos, e nem sempre felizes, como a teoria mainstream gostaria que o capitalismo fosse.
Neoliberalismo, quando Marx volta à cena
Marx recebe novamente atenção no espaço da economia após o neoliberalismo (anos 1980 em diante) ter dado passe livre à financeirização. A volta à cena se justifica, pois o capital fictício foi o primeiro conceito que tentou explicar um futuro de bolhas financeiras, criptomoedas e de impressão monetária sem as consequências da temida inflação.
Mais especificamente, com o fim das antigas restrições e regulamentações ao mundo financeiro, o setor passou a viver forte expansão. Seu crescimento não foi, porém, apenas econômico. A financeirização criou uma forte classe política, que influencia espaços acadêmicos, constrói teorias próprias (a teoria mainstream) e, inclusive, defende interesses junto ao Estado, como é o caso da austeridade.
Quando elites financeiras querem mostrar quem manda
A austeridade é um excelente exemplo a favor de Marx, uma vez que escancara o novo formato do conflito de classes: uma realidade na qual o capital fictício passou a influenciar a esfera política, buscando transformar tudo à sua volta naquilo que é a essência de seu próprio mundo, um capitalismo majoritariamente financeiro e rentista.
Diferentemente do projeto keynesiano, que buscava atrelar lucros à uma crescente demanda induzida pelo Estado, a austeridade abandona, inclusive, os pilares do liberalismo econômico clássico, que via emancipação no capitalismo enquanto este servisse ao consumidor. Com a austeridade ocorre o contrário: ela combate a expansão do consumo, que, consequentemente, reduz o crescimento econômico.
O mundo financeiro subjugou inclusive o PIB
Não há mais dúvidas que a austeridade reduz o consumo e leva à estagnação econômica. A pergunta a ser feita aqui é: por que elites continuam a defender essa política econômica? Por uma ótica marxista, talvez as coisas não tenham mudado tanto assim.
A austeridade é aquele tipo de erro propositalmente ingênuo (sonso ou talvez dissimulado), pois segue uma racionalidade de controle social. Expressa um interesse de classe, o interesse das elites financeiras. Por detrás da conveniente inocência, existe, porém, o objetivo da elite em subjugar, inclusive o crescimento econômico keynesiano, a seu objetivo de poder.
Em outras palavras, é uma política econômica que reproduz os erros pré-crise de 1929: elimina o Estado keynesiano que o século vinte ofereceu como solução, e visa um lucro baseado na apropriação da renda dos de baixo, o lucro por espoliação.
Teto dos gastos: a versão brasileira da austeridade
A história brasileira é semelhante em vários aspectos da descrita acima, por mais que nossa posição periférica requeira muitas ressalvas que não cabe a esse artigo. A financeirização começa em torno dos anos 80, com enorme avanço do setor ocorrendo durante os governos petistas (2003 – 2016). Momento no qual o Brasil vive a contradição de reduzir a desigualdade, mas sem impedir a financeirização e suas consequências.
Não por acaso, foram os agentes do mercado financeiro brasileiro que importaram essa tóxica teoria econômica e, em nome dela, defendem hoje um limite para os gastos públicos: o Teto dos Gastos. Realidade que deixa o país atado, quando população e Estado vivem, hoje, reféns dos interesses rentistas.
É um processo insustentável no longo prazo justamente por seu forte caráter destrutivo. Problemático não apenas para a classe trabalhadora, mas também para a classe média, dona de micro, pequenas e médias empresas, que veem seus negócios ruírem pela falta de demanda e aumento do custo de produção.
Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP e mestrando em Política Econômica na Universidade de Genebra.