O consumo de Lo-fi hip-hop na modernidade tardia
O gênero é utilizado como som de segundo plano enquanto indivíduos realizam outra tarefa, como estudar ou trabalhar, e é exatamente nesse ponto que se situa sua contradição
“En el tiempo real, en la historia, cada vez que un hombre se enfrenta con diversas alternativas opta por una y elimina y pierde las otras; no así en el ambiguo tiempo del arte, que se parece al de la esperanza y al del olvido. Hamlet, en ese tiempo, es cuerdo y es loco. En la tiniebla de su Torre del Hambre, Ugolino devora y no devora los amados cadáveres, y esa ondulante imprecisión, esa Incertidumbre, es la extraña materia de que está hecho. Así, con dos posibles agonías, lo soñó Dante y así lo soñarán las generaciones”.
Borges (1982)
Prelúdio
O Lo-fi hip-hop não é um gênero musical fácil de se definir, pois é contraditório em alguns pontos. Mas, antes de falarmos sobre ele, devemos compreender dois aspectos: a) que ele é um gênero musical que herdou características do Lo-fi; b) o que é o Lo-fi. Assim, podemos compreender os elementos que contribuíram para sua construção.
O termo é a abreviação para “baixa-fidelidade” [low-fidelity], se referindo a uma música de qualidade de produção que incorpora elementos que são considerados imperfeições sonoras na gravação. Passou a ser utilizado, inicialmente, na década de 1960 e popularizado na década seguinte, mais especificamente em 1986, pelo DJ William Berger, que possuía um programa na rádio WFMU (em Nova Iorque) dedicado a reprodução de músicas caseiras, isto é, fora do circuito e da lógica comercial hegemônica. O gênero se popularizou como estilo popular na década de 1990, também sendo referenciado como música DIY (Do It Yourself, “Faça Você Mesmo”, em inglês). Sendo assim, como mencionado pelo canal Quadro em branco, no YouTube: “o Lo-fi representa, antes de qualquer coisa, uma forma de se produzir música” que se contrapõe ao mercado musical vigente, à margem do mainstream.
Marcado pela inclusão de elementos que são vistos como indesejáveis numa gravação profissional – notas tocadas de forma incorreta, interferência do ambiente ou imperfeições sonoras, como chiados de fita, sinais de áudio degradados e músicas com características de “gravado em casa” e “equipamento barato”, por exemplo – eram comumente associados ao “Lo-fi”, conferindo-lhe uma marca estética; vertente que não possuía muita apreciação até o final dos anos 1980.
Já o Lo-fi hip-hop surge em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, também acompanhando o desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional e sua capacidade de difusão possibilitada pela Internet. O estilo nasce, nesse contexto, da união de várias vertentes musicais, como: Boom Bap, Jazz, Trip Hop e Vaporwave (ESCHILETTI, 2019, p. 17) [1]. Logo, percebemos como algo que se propõe a ser de “baixa-fidelidade” não possui a mesma mensagem, canal e objetivo em atuar como o Hip Hop e sua complexidade social, mas consiste em apenas relaxar.
A popularização do gênero musical continuou através de canais e perfis em plataformas musicais, como Youtube, Spotify, Deezer, entre outras; no entanto, sua popularização e o seu consumo são maiores nas plataformas digitais gratuitas [2]. O canal Lofi Girl, por exemplo, possui mais de 11,9 milhões de inscritos e toca as produções 24/7 [3], alcançando dezenas de milhares de ouvintes simultâneos. Além disso, a pesquisa pelo termo lo-fi alcançou, praticamente, o pico de popularidade no início de 2020, nos meses iniciais do isolamento devido ao Covid-19. Assim, o gênero tornou-se um aliado para manter o foco nas atividades diárias.

Desde já, esclarecemos que não há uma crítica ao papel do estilo no alívio psíquico do estresse e a tensão originadas pela condição social e de trabalho, pelo contrário, a saúde mental é de extrema importância. É justamente por isso que se critica a fusão nesse modelo de consumo do Lo-fi hip-hop, pois também é de grande importância para a saúde mental não se sobrecarregar numa sociedade da produtividade e do desempenho, reservando locais de descanso e lazer puramente pelo ócio.
Interlúdio
Acreditamos ser oportuno realizar a analogia ao mundo musical, então falaremos de dois tempos, um compasso binário. Como veremos adiante, o Lo-fi hip-hop oferece uma visão nostálgica para um momento caótico. Sendo assim, devido às suas influências e características — são, em sua maioria, instrumentais, com sons da natureza, samples da bossa nova e elementos orientais —, seu consumo — associado à estética visual, às cenas calmas em looping, muitas vezes de animes e personagens populares nos anos 1990 e anos 2000 — provoca emoções positivas, nostalgia e relaxamento ao oferecer sons e imagens que remetem ao passado e/ou localidades distantes, contrapondo-se a um mundo caótico e ruidoso dos grandes centros urbanos ocidentais.
As músicas são, majoritariamente, utilizadas como som de segundo plano enquanto os indivíduos realizam outra tarefa, como estudar ou trabalhar, e é exatamente nesse ponto que se situa uma de suas contradições. Não faltam páginas e canais dizendo que o Lo-fi hip-hop é o “gênero perfeito” para se concentrar nas atividades; os próprios títulos muitas vezes possuem expressões como “beats to relax/study/work”. Sendo assim, ocorre uma fusão entre momentos distintos, isto é, entre a nostalgia calma e o foco no atual, que é caótico. Isto é, algo que é consumido para “relaxar” serve a um propósito de produtividade e desempenho do sistema vigente e isso somente é possível nos tempos atuais, numa sociedade do consumo desenvolvida em tal grau que incorporamos e misturamos os tempos, momentos e locais de descanso e trabalho. Dessa forma, o seu consumo somente é possível na sociedade atual — nessa modernidade líquida, tardia e/ou reflexiva —, o que não é nenhuma novidade, mas uma denúncia à liquidez — como diria Bauman — e efemeridade de nosso tempo.
Seguindo na analogia musical, caracterizamos o tempo forte como o atual, uma vez que ele é o que dita e rege o segundo, fazendo prevalecer o consumo e a produtividade requeridos na atualidade em detrimento do descanso. Assim, o Lo-fi em segundo plano durante uma atividade nos coloca em um estado entre o atual — pela produtividade — e o passado — pela nostalgia [4]. Isto é, flutuamos na sociedade do consumo, do desempenho e da produtividade também nos momentos de descanso.
Nessa lógica interpretativa, retomamos a modernidade e seus desdobramentos como um ponto de virada, pois a modernização industrial do trabalho levou o capital a “celebrar suas orgias”, após “derrubarem-se todas as barreiras erguidas pelos costumes e pela natureza, pela idade e pelo sexo, pelo dia e pela noite” (MARX, 2011, p. 244). Por outro lado, o fenômeno não é exclusivo da atualidade, isto é, não somos os únicos inseridos nesse processo de desmanche da percepção social, algo que ocorre hoje tanto quanto em décadas e séculos anteriores. O diferencial é que devido à capacidade técnica e cultural do processo de individualização crescente, o Lo-fi foi constituído em nossa época e, a partir disso, reflete uma forma específica de criar e consumir, podendo deturpar sua oposição ao sistema musical vigente ao ser usado para a produtividade. Essa cultura da alta produção é muito marcada pelo avanço do tempo e da velocidade, sobre o caráter espacial, que mescla os locais de trabalho e os de descanso, e também a produtividade presente e o passado idealizado.
De modernidade ao processo de modernização, Habermas desenvolve a noção de racionalização de Weber, estabelecendo que o conceito de modernização (enquanto processo social) diz respeito a um conjunto de processos cumulativos que se reforçam mutuamente, entre eles: a “formação de capital e mobilização de recursos” para o “desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho” (HABERMAS, 1990, p. 14). Isso passa a se constituir como o ritmo do espraiamento das relações sociais na modernidade, alcançando os mais diversos campos e esferas da sociedade.
Com o advento das novas tecnologias e das novas possibilidades que o mundo experimenta, acontece a aceleração das sociedades e de suas relações. Segundo Bauman: “o tempo moderno se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espaço. […] A velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da dominação (2001, p. 16).
Não podemos esquecer que no mesmo período no qual o Lo-fi surgiu e nas décadas seguintes, ocorre, concomitantemente, o fenômeno da globalização e mundialização, tornando tudo ainda mais rápido e moderno, pois “a onda modernizante não para nunca, espalhando-se pelos mais remotos e recônditos cantos e recantos dos modos de vida e trabalho, das relações sociais, das objetividades, subjetividades, imaginários e afetividades” (IANNI, 1998, p. 97). Consequentemente, o modelo de consumo cultural que conhecemos hoje é marcado pela velocidade da produção e do consumo, uma corrida de consumidores em que a satisfação se encontra em permanecer na corrida na qual não há um único prêmio, pois tudo atrai na mesma intensidade. Assim também o é, contraditoriamente, o Lo-fi hip-hop: beats para “relaxar” enquanto se produz.
Unidos, o consumo e a produtividade contribuem para a propagação da sociedade do espetáculo, na qual “o sentido final […] é o fato de ele se ter integrado na própria realidade à medida que falava dela e de tê-la reconstruído ao falar sobre ela. […] a experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo” (DEBORD, 1997, p. 173). Assim, o processo de contradição criado pelo Lo-fi hip-hop já se tornou a realidade incorporada no cotidiano, uma versão deturpada da ideia original, na qual mesmo a fuga melancólica por um passado calmo, não é levada a sério, uma vez que isso já se tornou um hábito produtivo.
Submeter os momentos de descanso ao trabalho faz com que se perca a capacidade de contemplação para a noção de hiperatenção [hyperattention], segundo Byung-Chul Han (2015). A sociedade na qual não há margem para descanso se torna uma sociedade do cansaço, desdobrando-se numa sociedade do desempenho e esgotamento — físico e mental — excessivos (HAN, 2015, p. 37). Não é à toa que, como mencionado, o aspecto visual do Lo-fi hip-hop retome formas não ocidentais do cotidiano ou aspectos nostálgicos que muitas vezes não estão presentes na vida do espectador, mas algo instaurado como uma fuga através da cultura de massa e do espetáculo integrado [5].
Poslúdio
Retomando a epígrafe de Borges, o tempo da arte é ambíguo por não eliminar uma alternativa na prevalência de outra, mas é a visão de um futuro e do que foi esquecido. Da mesma forma, o Lo-fi hip hop é o entre tempos e espaços: permanecemos flutuando em incertezas. Nesse “entre” no qual somos alocados, entra-se num estado de síncope do consumo em estado prolongado.
A crítica não é ao gênero musical em si, mas ao modo destrutivo de consumo como ele é propagado atualmente. Portanto, é uma crítica ao modelo de consumo da sociedade ocidental em geral, que se tornou insustentável — ambiental, física e mentalmente — e que pode ser, também, encontrado nessa mídia, tornando-se o leitmotiv característico de nosso momento na modernidade. Verum dicetur [que a verdade seja dita], crítica e autocrítica unidas, este próprio escrito foi realizado com o som de Lo-fi hip-hop em segundo plano.
Maurício Brugnaro Júnior é graduando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro do Laboratório de Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador-associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e política da Universidade de São Paulo (USP).
[1] Passando brevemente por essa explicação, conhecemos que o Boom bap se configura como um subgênero do Hip Hop, marcados por samples de bateria acústica inspirados no Funk e no Soul; do Jazz provém os samples harmônicos e melodias compostas, muitas vezes produções Lo-fi utilizam diretamente samples de piano, sax, standards do Jazz, etc.; o Trip Hop é caracterizado por batidas desaceleradas (abaixo de 120 bpm); e, mais recentemente, o Vaporwave que é conhecido como um fenômeno da Internet nos anos 2010, podendo ser entendido como um gênero musical que se baseia numa estética dos anos 1980 aos anos 2000, utilizando sintetizadores e, muitas vezes, fazendo perder suas características representativas e referenciais (ESCHILETTI, 2019).
[2] É de grande importância mencionar que o Lo-fi hip hop ganhou enorme popularidade com a figura do produtor musical Nujabes, que foi responsável pela trilha sonora do anime Samurai Champloo, em 2005.
[3] Vinte e quatro horas por dia/sete dias na semana
[4] Associada à nostalgia, a ideia de melancolia se faz de grande importância interpretativa, uma vez que tratamos de uma característica contínua nesse modelo de sociedade individualizada ao máximo: uma perda de objeto que foi retirado da consciência, afetando com sentimento de empobrecimento do ego, isto é, empobrecimento do eu mesmo numa sociedade que espraia a individualização. É no sentimento de perda desses momentos que o procuram no passado, embora não estejam mais ao alcance segundo a realidade de hoje.
[5] A melancolia associada à nostalgia através do consumo desse gênero musical, não é a morte do objeto real (o passado, a fuga), como é no caso do luto, mas um contra-investimento — da libido ao narcisismo — do ego — cada vez mais individualizado — contra o objeto afetado (“perdido”), operando numa ferida aberta que não encontra ponto de ancoragem num passado real, mas num atual real e doloroso de produtividade e desempenho.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BORGES, Jorge Luís. Nueve ensayos dantescos. Ediciones Nepeus (versão digital), 1982.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia; versão para eBook: eBooksBrasil.com, 2003. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf. Acesso em: 22 de set. de 2021. Acesso em: 17/02/2023.
ESCHILETTI, Francisco da Costa. Música de quarto: lo-fi hip hop. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (projeto de graduação), 2019.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. 1ª ed. Eletrônica. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, Lds., 1990.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
IANNI, Octávio. Teorias da globalização. 6ª ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1998.
MARX, Karl. O capital: livro 1. São Paulo: Boitempo, 2011.
QUADRO EM BRANCO. Lo-fi hip hop não faz sentido. YouTube, 21 set. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p7gP1tj4O5A. Acesso em: 17/02/2023.