O contínuo prisão – periferia na pandemia
Segundo os números subnotificados do Ministério da Justiça e Segurança Pública já são 22 mortes e 531 presos infectados pelo novo coronavírus
Uma pandemia provocada por vírus que ataca diretamente nossas vias respiratórias exige o máximo cuidado com questões sanitárias, como distanciamento social e higienização de superfícies, produtos sintéticos, alimentos, corpos e tudo que possa eventualmente ter contato com o novo coronavírus. Propagandas públicas e da iniciativa privada buscam constantemente divulgar e recomendar a adesão de novas condutas e o consumo de produtos antes incomuns no cotidiano do brasileiro, a exemplo do álcool em gel e das máscaras de proteção. O objetivo desse conjunto de ações parece ser um só: salvar vidas.
Mas nenhuma dessas medidas de prevenção é possível nas cadeias. Com a chegada da Covid-19 nos presídios brasileiros, as medidas de exceção já praticadas regularmente se agravam e intensificam a tortura. Visitas das famílias foram suspensas e a entrega do ‘jumbo’ condicionada aos correios, dificultando ainda mais a entrada de suprimentos básicos que, na prática, não são oferecidos pelo Estado, como sabonetes, pasta de dente e outros produtos de higiene pessoal, e inviabilizam a principal via de comunicação e denúncia que são as mães e familiares dos presos. Já as punições administrativas não cessam em momento algum, estando disponíveis a qualquer momento para o preso que tentar fugir, se rebelar ou que simplesmente esteja lá dentro.
Um exemplo desse massacre silencioso das prisões tem nome: Gil, que o final do ano de 2019 foi jogado dentro de uma cela de triagem do sistema penitenciário do estado do Ceará. Já visivelmente doente, agonizou todos os dias no chão com febre alta, calafrios e alterações do estado mental. Mesmo com a ajuda de outros presos, não conseguia falar, se alimentar e nem limpar as próprias fezes. Foi dessa forma, suando frio e cagado que Gil foi morto diagnosticado com meningite bacteriana e entregue para família que não teve a oportunidade de visitá-lo vivo, segundo informações do Vozes do Cárcere .
Segundo os números subnotificados do Ministério da Justiça e Segurança Pública já são 22 mortes e 531 presos infectados pelo novo coronavírus, com o Centro-Oeste concentrando o maior número de casos (369), seguido do Nordeste (160), Sudeste (135), Norte (60) e por fim o Sul (2). Só em Brasília, a doença nos presídios já é responsável por 1 a cada 6 infectados em todo o Distrito Federal.
As soluções apresentadas pelo governo federal e Estados carregam consigo o verdadeiro significado histórico de “solução”, embora não traga nada de novo. O uso de container, por exemplo, já é amplamente praticado em delegacias e prisões brasileiras, sendo conhecido pelo calor e o fedor insuportável que a estrutura metálica produz com pessoas abarrotadas dentro. Em São Paulo, o secretário de Saúde, José Henrique German, decidiu que a estratégia a ser adotada será o tratamento dos casos já confirmados e deixar com que a doença siga seu percurso natural até a “estabilização”.
O suficiente para que o funcionamento de todo o aparato de tortura não seja interrompido. Para isso, as administrações penitenciárias tanto de adultos quanto de jovens, estão adaptando oficinas de produção de máscaras de proteção facial e visores “face shield” para que homens e mulheres presos possam garantir a segurança sanitária de agentes penitenciários, policiais, guardas civis e funcionários do próprio Palácio do Governo.
Periferias
Aqui fora, pretos e pobres que habitam as favelas evidenciam o contínuo existente entre periferias e prisões, experimentando os mesmos cheiros, gostos, habitações precárias e lotadas, com racionamento de água encanada ou a ausência total de saneamento básico. Crianças dividindo cômodos minúsculos com ratos, insetos, merda de humanos e outros animais enquanto correm córregos embaixo de casas feitas de palafita. Mães seguem sem trégua com seus filhos sendo mortos e desaparecidos pelas forças de segurança, e nos hospitais médicos estabelecem protocolos de escolha entre quem terá acesso a respiradores ou quem será deixado para morrer de sufocamento.
A escolha de Sofia já foi feita, basta deslocarmos a indagação de “quem matou?” ou “quem é o culpado?” para “quem morreu?”, desvincular-se das narrativas que tratam cruamente do vírus o culpando – vide o discurso de guerra ao covid-19 – permitindo que violências se perpetuem. Só então podemos nos deparar com os estudos que atestam números até cinco vezes maiores de mortes e hospitalizações de negros em comparação aos de brancos que vem reduzindo.
Quando esses mesmos alvos da doença, do sistema penal, da polícia e sua violência, que agora morrem em suas casas e nos leitos, se arriscam nas ruas para sobreviverem em trabalhos precários ditos “não essenciais”, discursos e decretos punitivos são disponibilizados para que sejam multados ou presos por agentes devidamente protegidos por máscaras e visores produzidos pelo sistema penitenciário.
Lucas Alencar de Araujo é assistente social formado em Serviço Social pela PUC-SP.