O crime da esterilização forçada
O maior crime da administração Fujimori continua sem grande repercussão e sem punição dos responsáveis: uma política eugenística que provocou a esterilização forçada de mais de 300 mil mulheres, evidentemente pobres e indígenasFrançoise Barthélemy
Hayllacocha. Uma comunidade indígena situada nos pampas de Laguna, a cerca de cinqüenta quilômetros de Cuzco. Terras do altiplano andino que o camponês trabalha segurando, à mão, a lâmina do arado puxado por um touro. Numa das cabanas cobertas de palha, voltando da chacra – a chácara onde cultiva trigo, milho e batata – encontra-se uma mulher corajosa, com as mãos deformadas pela artrite: Hilaria Supa Huamán.
Em 1991, Hilaria estava entre as fundadoras da Federação Camponesa das Mulheres de Anta, uma província de cerca de 80 mil habitantes, em sua maioria, rurais. Três anos mais tarde, ela se tornaria secretária-geral e foi nessa condição que participou, em 1995, da IV Conferência da Mulher, em Pequim. Na oportunidade, discutiu com o presidente Alberto Fujimori: “Ele começou a falar de um programa de saúde, de planejamento familiar, que queria lançar. Eu respondi: ?Tudo bem, desde que os maridos e as mulheres decidam em conjunto.? ?Claro que sim?, respondeu ele.”
Alguns meses depois, bastante pressionada pela enfermeira do vilarejo e sem ter recebido informações detalhadas, Hilaria foi submetida a uma cirurgia na região abdominal da qual se recuperou com dificuldade: “Eles te insultam e dizem: ?Quer parir filhotes que nem os porcos? Teu marido vai ficar com raiva se você não fizer nada!? Depois, dizem que você logo ficará boa. Não é verdade. Externamente, a cicatriz sara rapidamente, mas internamente, não, porque nosso trabalho é muito duro”. Não foi só ela a sofrer as seqüelas. Uma amiga, mãe de família e moradora em Mollepata, confessou-lhe que se sentia “muito fraca”. Também ela passara por uma ligação das trompas.
Choque terrível
Foi nessa época que notícias preocupantes começaram a surgir de várias comunidades – Mollepata, Limatambo, Ancahuasi… Mulheres que iam ao ambulatório para controlar a saúde dos filhos eram trancadas, às vezes em número de dez ou vinte. Sob o pretexto de vaciná-las, eram conduzidas à sala de cirurgia, onde eram anestesiadas. Uma a uma, saíam do lugar ainda atordoadas. Mais tarde, compreenderiam – sob um choque terrível – que tinham sido esterilizadas, que jamais poderiam voltar a ter filhos.
Entre 1995 e 2000, 331.600 mulheres foram esterilizadas, enquanto 25.590 homens haviam sido submetidos a uma vasectomia
Juntamente com outras mulheres, Hilaria Supa decidiu denunciar o caso publicamente, o que lhe valeu ser afastada da direção da Federação Camponesa. Segundo as mulheres operadas, as represálias foram armadas pelo ginecologista Washington Ortiz – que permanece no cargo até hoje -, o qual tentou persuadi-las a voltarem atrás em sua ação judicial. Mas o movimento de protesto se alastrou: “Nossos representantes, tanto em termos da comunidade, quanto da região, denunciaram a prática de esterilizações forçadas”, lembra Rosas Beltrán, prefeito da cidade de Anta e dirigente da Rede de Municípios Rurais do Peru. “Com a ajuda da Defensoria do Povo de Cuzco, organizamos uma resistência e uma ajuda às vítimas.”
“Relatório final”
No dia 8 de setembro de 2001, menos de um ano depois que Alberto Fujimori, deposto pelo Parlamento, fugisse e se refugiasse no Japão, o ministro da Saúde, Luis Solari, criou uma Comissão Especial para apurar as atividades do programa de Anticoncepção Cirúrgica Voluntária (ACV). Quatro pessoas foram encarregadas de conduzir a pesquisa: o doutor Juan Súccar, presidente da comissão, a doutora Maita García Trovato, presidente da Associação Nacional dos Médicos Católicos do Peru, a antropóloga Esperanza Reyes e Hilaria Supa Huamán.
Naquele mesmo mês de setembro, o Congresso designou uma comissão parlamentar para avaliar as “irregularidades” ocorridas no âmbito do programa ACV durante o governo de Fujimori. À frente da comissão estava Hector Chávez Chuchón, deputado pela Unidade Popular (UP, conservadora) e presidente da Federação dos Médicos da região de Ayacucho, Andahuaylas e Huancavelica.
Em julho de 2002, as pessoas indicadas pelo Ministério da Saúde tornaram público um “Relatório Final” de 137 páginas, onde se constata que, entre 1995 e 2000, 331.600 mulheres foram esterilizadas, enquanto 25.590 homens haviam sido submetidos a uma vasectomia. “Essas pessoas foram envolvidas”, destaca o relatório, “seja por meio de pressões, de chantagem ou de ameaças, seja por meio da oferta de alimentos, sem que fossem devidamente informadas, o que as impediu de tomarem uma decisão com real conhecimento de causa.”
Os responsáveis
Tudo isto foi realizado em nome de um plano de saúde pública cujo verdadeiro objetivo era o de diminuir o número de nascimentos nos setores mais pobres do Peru
Tudo isto foi realizado em nome de um plano de saúde pública cujo verdadeiro objetivo era o de diminuir o número de nascimentos nos setores mais pobres do Peru. Em outras palavras, fundamentalmente a população indígena das regiões deserdadas: a sierra andina, a selva amazônica e as favelas da periferia de Lima.
Embora muitos documentos oficiais tenham sido destruídos, sobravam 56 deles que estabeleciam os fatos e revelavam os responsáveis. Em primeiro lugar, o ex-presidente da República, Alberto Fujimori, que era mensalmente informado sobre o número de intervenções realizadas, principalmente pelos assessores dos ex-ministros da Saúde Eduardo Yong Motta (1994-1996), Marino Costa Bauer (1996-1999) e Alejandro Aguinaga (1999-2000).
Assim que o Relatório foi divulgado, foi desencadeada uma polêmica em torno dos números (“absurdos”, na opinião de pessoas que sabem da existência de 200 ou 300 casos em que as cirurgias não deram certo) e dos objetivos pretendidos. Aguinaga defende com veemência um plano que, em sua opinião, permitiu que centenas de milhares de casais evitassem uma gravidez não desejada, assim como permitiu reduzir “ostensivamente” – o que é óbvio! – a taxa de mortalidade de mães e filhos.
Sem punições
Entrevistado pelo jornal La Republica de 25 de julho de 2002, Costa Bauer apóia-se numa pesquisa realizada por uma agência norte-americana entre 1996 e 2000 para afirmar que “90% das mulheres em idade fértil ficaram inteiramente satisfeitas com os métodos de planejamento familiar com que foram beneficiadas”. Mas, na mesma página do jornal, há um depoimento de uma mãe de família, Ligia Ríos. Ela explica como os membros do Instituto Peruano de Previdência Social infernizaram sua vida até que aceitasse se deixar esterilizar. A partir de então, passou a ter surtos de febre, sangramentos e dores abdominais que a obrigaram a parar de trabalhar.
Depois que o Relatório do Ministério da Saúde foi encaminhado ao Congresso, em 23 de julho de 2002, os deputados decidiram acusar Fujimori, assim como os três ex-ministros da Saúde, por “genocídio” e “crimes contra a humanidade”. Um ano depois, na mesma data, a Comissão de Direitos Humanos do Congresso, presidida pela deputada Dora Nuñez (FIM, Frente Independente Moralizadora) retomou os autos de acusação e solicitou um inquérito que seria confiado ao procurador-geral da nação. A comissão permanente do poder legislativo recusou esse procedimento. De comissão em comissão, os debates vão se atolando…
Durante esse período, de Tóquio, onde fixou residência depois que o governo lhe concedeu nacionalidade japonesa – colocando-o a salvo de uma hipotética extradição – o principal acusado revida: não, ele não procedeu a esterilizações forçadas. Pelo contrário: pela primeira vez na história do país, as peruanas tiveram a possibilidade de optar por uma maternidade responsável!
História abafada
Aquilo que aparecia, como “objetivos a atingir” por parte do governo, em matéria de esterilizações, transformou-se rapidamente em “metas a cumprir”, para cada profissional
No entanto, há vários anos que pesquisadores reconhecidamente sérios, peruanos e de outras nacionalidades, vêm buscando estabelecer a verdade. Em nome da Comissão da América Latina pela Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem/Peru), a advogada e socióloga Giulia Tamayo recolheu depoimentos de uma centena de mulheres em Lima, Cuzco, Loreto, Piura e San Martín. Publicadas em 22 de junho de 1998 pelo principal jornal da capital, El Commercio, suas conclusões revelaram práticas abusivas, sem consentimento prévio, complicações pós-operatórias e vários tipos de excessos. Mortes causadas por negligência, condições precárias de higiene, pessoal despreparado, pacientes debilitadas (tuberculose, desnutrição) e até uma gravidez não revelada.
Um ano mais tarde, esses dados foram incluídos num livro de grande repercussão, associado a um vídeo, i