O desafio de construir uma Europa social
Em busca de mão-de-obra mais barata e condições fiscais favoráveis, as empresas europeias estão se mudando cada vez mais para o leste. Com o aval da Corte de Justiça das Comunidades Europeias e em nome do livre mercado, elas seguem desrespeitando os direitos trabalhistas
Jan Andersson, presidente da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais do Parlamento Europeu, continua estupefato. Entre novembro de 2007 e junho de 2008, ele assistiu a Corte de Justiça das Comunidades Europeias (CJCE) concluir quatro processos declarando a primazia dos direitos das empresas sobre os dos trabalhadores. Socialista sueco, Andersson não esperava interpretações semelhantes das leis europeias.
Em um dos casos, um empresário finlandês queria deslocar seu ferry boat para um pavilhão na Estônia, a fim de escapar de uma convenção coletiva assinada em seu país de origem. Em outro, um sindicato sueco tentou impedir os trabalhos de uma empresa de construção e, assim, constranger um prestador de serviços letão a assinar uma convenção coletiva. No decreto Rüffert, por sua vez, uma sociedade polonesa instalada no estado alemão da Baixa Saxônia pagava remunerações inferiores ao salário mínimo local. Em todas essas disputas, o final foi o mesmo: a CJCE condenou as ações sindicais e pediu às autoridades públicas que limitassem as normas sociais impostas às empresas deslocadas. Para a Corte, o direito do trabalho e os movimentos de assalariados não deveriam ser entraves “desproporcionais” à liberdade de estabelecimento das empresas e à livre prestação de serviços no mercado comum.
Em 22 de outubro de 2008, o Parlamento Europeu adotou, com base em um relatório de Andersson, uma “resolução legislativa” contradizendo abertamente a jurisprudência da CJCE. Fato raríssimo no universo fechado dessa instituição.
Para os deputados, as “liberdades econômicas não poderiam ser interpretadas de modo a conceder às empresas o direito de se livrar ou de contornar as leis e práticas nacionais no campo social”1. Eles afirmam que, contrariamente à visão restritiva dada pelos juízes, a diretiva de 16 de dezembro de 1996 sobre a transferência de trabalhadores2 dentro do mercado comum estabelece parâmetros mínimos “mais favoráveis” aos empregados.
Ainda que não tenha caráter obrigatório, essa resolução representa uma pressão política sobre os Estados-membros da União Europeia (UE), aos quais os deputados exigem as medidas necessárias para o esclarecimento do direito comunitário. Ao explicitar uma questão de princípio – os direitos das empresas não têm primazia sobre os parceiros sociais –, o texto indica diretivas futuras. Aprovada por ampla maioria, a resolução conferiu ao Parlamento Europeu uma imagem de defensor da Europa social. Imagem esta reforçada em 6 de novembro de 2008, quando o órgão demonstrou sua oposição ao aumento da jornada de trabalho de 48 horas para 70 horas semanais3. Sindicatos e associações saudaram assim a “mensagem muito firme”4 dos deputados.
Se a dimensão social dos textos que foram adotados pelo Parlamento não deixa nenhuma dúvida, os debates e as reações aos decretos da CJCE denunciam uma realidade mais contrastante. Ao se basear em artigos “históricos”, principalmente os do Tratado de Roma, que instituem a livre concorrência no mercado comum e estão presentes desde as origens – ao passo que as disposições sociais vieram tardiamente matizar seus efeitos5–, a CJCE levantou a lebre sobre a lógica da constituição europeia. Demonstrou também a fragilidade da posição institucional do Parlamento, assim como sua imaturidade política.
A socialista francesa Françoise Castex lembra que, quando de sua adoção em 1996, a diretiva sobre a transferência dos trabalhadores era apresentada como uma vantagem para os assalariados. Porém, os juízes fizeram disso um instrumento a serviço da liberdade das empresas. Para Andersson, “a Corte não seguiu as discussões parlamentares. Ela deveria se inspirar nas mudanças políticas, a fim de determinar a intenção do legislador”. Já Castex se mostra mais realista ao evocar uma “política do vazio jurídico” assumida pelos deputados, que deixaria grande margem de manobra para os juízes no âmbito dos tratados europeus estruturalmente liberais.
Até hoje, o poder da CJCE não parecia incomodar muito os deputados. “Quando a legislação era vaga, os eleitos, principalmente os alemães e os ingleses, confiavam nos juízes para interpretá-la”, conta Castex. Mas após dois julgamentos que os afetaram diretamente, eles perceberam a fragilidade de seus sistemas de negociações coletivas dentro do grande mercado interno e estão “perturbados” pelos decretos da CJCE, que também envolveram os escandinavos. E essa jurisprudência acontece exatamente quando os planos sociais se multiplicam na UE e a crise econômica anuncia novos conflitos entre sindicatos e empresas.
A verdade é que o Parlamento tornou-se a instituição fraca do sistema comunitário. Ele mesmo não propõe todas as diretivas e regras: tem de negociá-las com a Comissão Europeia, que detém a iniciativa das leis. Se não ocorrer um acordo entre as duas instituições, os deputados só podem rejeitar o texto, sem impor outro. Portanto, observa Françoise Castex, não apenas a Comissão propõe leis ultraliberais, mas “quando o Parlamento se opõe a elas ou adota emendas importantes demais, a Comissão volta à carga alguns meses mais tarde com um texto no mesmo sentido”.
Mais esforços do parlamento
No entanto, para Andersson, não se deve negligenciar o poder de negociação adquirido pelo Parlamento. “Tudo é questão de política”, considera. “É um meio de pressão real” que deve ser, segundo ele, apoiado por uma ação exercida em cada país sobre os governos. Entretanto, para ter justificativa, tal reforço implicaria numa vontade real da parte desta instituição, de se expressar mais fortemente sobre as questões fundamentais. E até agora, pelo menos por ocasião dos debates sobre os decretos da CJCE, o Parlamento demonstrou mais seu espírito de consenso que sua vontade de funcionar como uma instância política representativa. Como acontece com frequência, a oposição entre direita e esquerda praticamente não entrou em jogo.
De acordo com Pervenche Béres, deputada socialista francesa, “a linha de separação entre os partidos flutua em função dos assuntos tratados. Sobre as questões de sociedade, existem as alianças da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL), que reúne os partidos de esquerda com o grupo dos Verdes; a Aliança Livre Europeia (ALE) e o Grupo dos Liberais (ALDE). Com eles, o Partido Soci
alista Europeu (PSE) desempenha seu papel de oposição face à direita majoritária. Entretanto, essas articulações nem sempre permitem ao PSE se constituir maioria: quando ele trabalha sobre a legislação, muitas vezes procura entrar em acordo com o democrata-cristão Partido Popular Europeu (PPE)”.6
A leitura à direita e à esquerda das decisões do Parlamento parece ilusória, e a constante recomposição dos grupos, a cada eleição, mostra que não há distinção ideológica clara.
Típico desse espírito de “compromisso”, a resolução “antidumping social” de 22 de outubro “se felicita pelo Tratado de Lisboa”, que retoma, no entanto, artigos do Tratado de Roma sobre os quais a CJCE se baseou para estabelecer uma hierarquia entre os direitos das empresas e os dos assalariados. Assim, fica pouco nítido o suposto posicionamento do Parlamento, de “escudo” dos direitos sociais.
Aliás, o entusiasmo dos deputados pelo Tratado de Lisboa é tal que eles fazem deste um dos fundamentos de sua resolução, mesmo antes de ele entrar em vigor. Um desrespeito ao direito e à democracia, algo costumeiro para a Comissão de Bruxelas e para a própria CJCE. De fato, como observa a especialista em ciências políticas Gersende Mayo, “as lógicas de voto podem corresponder a diversas divisões, às vezes pouco decifráveis: eurófilos contra eurocéticos, preferência nacional, pequenos grupos contra grandes e até mesmo remanescentes da divisão esquerda e direita”.7
Para Françoise Castex, se o Parlamento é “uma instituição imatura”, acontecimentos recentes como os decretos da CJCE e a crise econômica poderiam contribuir para sua afirmação como instância representativa, uma necessidade óbvia dado que as taxas de abstenção vêm crescendo a cada eleição.8
As recentes tomadas de posição sociais dos deputados têm também razões conjunturais. Depois do “não” holandês e francês, em 2005, ao projeto de Constituição Europeia, e do irlandês em 2008, a UE se encontra confrontada com uma “crise de legitimidade”. Precisa restaurar sua imagem sem com isso colocar em questão os equilíbrios políticos adquiridos nos últimos 50 anos. Assim um dos argumentos empregados para fazer votar a resolução antidumping social foi que os decretos da CJCE eram utilizados para desacreditar o Tratado de Lisboa.
Mito e realidade
“Existe uma convergência de interesses para que os governos, o Parlamento e a Comissão concebam projetos visando valorizar a ação da Europa face à crise e às dificuldades sociais. A Europa está consubstancialmente ligada ao liberalismo. Como ela é fruto da autonomização das elites, mas o sufrágio universal ainda existe, os dirigentes europeus são forçados a parodiar ‘a Europa social’ para se legitimar… É a tensão permanente entre o ‘mito Europa’ e sua realidade”, analisa o cientista político Gaël Brustier.
É fato que os governos têm apoiado o aumento dos poderes do Parlamento.9 Mas quando da negociação do tratado constitucional pela Convenção presidida por Valery Giscard d’Estaing, em 2004, os deputados trabalharam de acordo com seus Estados-membros e foram apoiados por seus governos até o final, mesmo depois da rejeição dos franceses e holandeses. Assim, embora se reúnam em grupos políticos, os eleitos continuam a se agrupar por nacionalidades, e não é raro que, antes de cada sessão, os governos venham expor aos deputados de seu país a política que eles devem adotar.10
Se isso pode ser legítimo levando em conta a importância de preservar o quadro do aparelho de Estado na Europa – como a crise financeira veio demonstrar –, também relativiza a ideia de que o Parlamento encarnaria a emergência de um “povo europeu” em nome do qual ele poderia se tornar um “legislador federal” da União.
*Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).