O despertar da esperança
As negociações de Teerã para voltar à comunidade internacional não se devem somente a fatores externos, como a presença de tropas norte-americanas em sua vizinhança, mas também às condições internas criadas nos 25 anos de revoluçãoBernard Hourcade
É comum a terra tremer no Irã, tanto no sentido literal quanto no sentido figurado, mas os iranianos sempre souberam, através dos séculos, reconstruir suas cidades destruídas, bem como sua sociedade traumatizada e suas vidas diárias arrasadas. A história iraniana parece vir se acelerando desde o verão de 2003. Não se trata da “mudança de regime” tão desejada por Washington – e por muitos iranianos -, nem de uma nova “revolução” ideológica e social, e sim da entrada deste antigo país numa nova dinâmica que não só questiona suas elites e as grandes potências, mas também o conjunto dos “cidadãos”, as províncias e a comunidade internacional. O país desperta após um longo “sono” – muito agitado e com pesadelos freqüentes.
Em outubro de 2003, três importantes acontecimentos demonstraram que se virava uma página: no dia 10, Chirin Ebadi ganhou o Prêmio Nobel da Paz; no dia 21, o governo iraniano aceitou as regras internacionais sobre a energia nuclear; e, no dia 27, a Renault decidiu concretizar o primeiro investimento internacional de grande porte no Irã desde 1979.
Cada um desses acontecimentos significa o resultado de lutas longas e, muitas vezes, dramáticas. Essas “revoluções de outubro” talvez sejam mais significativas, em suas conseqüências, do que uma nova revolução cujo preço os iranianos não querem pagar. Após os anos de esperança surgidos com a eleição de um presidente da República reformador, Mohammad Khatami, é justo recear que este novo despertar não passe de mais um dos paradoxos com qual o país se acostumou – e, em 1997, os norte-americanos não estavam em Cabul e Bagdá.
Idéias enraizadas
Khatami faz parte do núcleo de pessoas próximas ao fundador da República Islâmica. Mais do que muitos outros, ele manteve a vontade de fazer o islã sair do conservadorismo cultural, social e político para transformá-lo numa das forças construtivas do mundo moderno. Como demonstrou há muito tempo Olivier Roy1 , as atribulações do poder fizeram ruir aquela utopia do islã político, mas a idéia não morreu. A ambição por uma reforma do islamismo continua existindo nas escolas religiosas de Qom, assim como nos círculos intelectuais religiosos, onde se destacam personalidades como Mohsen Kadivar, Moshtahed Shabestari, o aiatolá Amoli e Abdolkarim Sorush2 .
Durante seus dois mandatos, Khatami e seus partidários permitiram às novas gerações que se formassem para o debate político e criassem uma nova correlação de forças
Atualmente minoritárias, essas idéias já não mobilizam multidões, mas elas se enraizaram, apesar do poder dominante de um outro grupo de herdeiros do aiatolá Ruhollah Khomeyni que, acima de tudo, conservou as estruturas políticas e os métodos herdados do período revolucionário e da guerra com o Iraque. Esse impasse entre “conservadores” e “reformadores” provocou a rejeição a qualquer referência ao islã entre uma parcela crescente e majoritária da população, mas o debate relançado por Khatami sobre a transformação do islã não irá terminar, pois agora ele dispõe de meios de sobreviver a uma mudança política, mesmo que esta seja radical.
O islamismo iraniano
Em 25 anos, o islamismo iraniano modernizou-se e enraizou-se na cultura, na sociedade, na economia, na política e nas relações internacionais; uma nova elite, surgida da Revolução, do clero, da guerra e da República se instalou no poder. Passaram-se os tempos dos antigos Guardas da Revolução (pasdaran), ativistas voluntários em 1980, quando terminavam o ginasial, e que, embora exercendo responsabilidades políticas, entraram para a universidade e, atualmente, voltam para o Irã com um doutorado após terem passado vários anos no Canadá, na Austrália ou na Inglaterra.
Por outro lado, a política de privatizações, adotada a partir de 1990 por Ali-Akbar Rafsandjani, proporcionou uma base econômica sólida a essa nova elite que deve muito à Revolução e ao clero. A situação está longe do caos tradicional. A poderosa “Associação dos Especialistas” esforça-se para contar com quadros, muitas vezes conservadores, no plano político e social, mas modernistas, em se tratando de negócios e liberais, no âmbito internacional. Venceram as eleições municipais de 2003 nas grandes cidades e se preparam para fazer o mesmo por ocasião das eleições legislativas de 20 de fevereiro de 2004 e a eleição presidencial, de maio de 2005.
É correto destacar o desencanto dos “decepcionados com o khatamismo”, mas não se pode negligenciar o essencial do balanço. Durante seus dois mandatos, Khatami e seus diversos partidários permitiram às novas gerações – que cresceram durante a República islâmica – que se formassem para o debate político e criassem uma nova correlação de forças no plano local e com a base da sociedade. Essa luta foi difícil, principalmente para as mulheres, mas conseguiu prevalecer, pois o governo de Khatami conteve a repressão e conquistou avanços no Estado de direito.
Caminho longo, mas incontestável
É incontestável que os últimos anos permitiram que se enraizassem numa prática política e social de massas as noções de república, democracia, liberdade de expressão
O caminho pela frente ainda é longo, mas é incontestável que os últimos anos permitiram que se enraizassem numa prática política e social de massas as noções de república, democracia, liberdade de expressão – principalmente nas províncias. Atualmente, existem condições para uma mudança profunda, cedendo um novo lugar ao islã político.
A população iraniana não é mais jovem que a dos países vizinhos (50% com menos de 20 anos de idade3 ), mas a geração mais jovem desfruta de uma identidade muito forte: cresceu após a Revolução islâmica e enfrentou dramas e debates ligados à política e a seu próprio modo de vida. E dispõe, mesmo longe de Teerã, de novos recursos para compreender e agir, pois atualmente a alfabetização é geral. E a maioria vive nas cidades4 .
Apesar da repressão, o Irã é um país em que as pessoas participam de debates, se manifestam, protestam. Apesar de seus esforços, as autoridades clericais que controlam a justiça e a polícia já não conseguem impedir o acesso à informação nem a explicitação das reivindicações, o que torna os atos repressivos – a título de “exemplo”, principalmente contra os jornalistas – ainda mais violentos e sistemáticos, mas denunciados com veemência e eficiência, inclusive por membros do governo.
Conquista metódica do espaço público
Como em qualquer outro país, os jovens iranianos querem participar da sociedade de consumo e ter acesso à cultura internacional, mas também são politizados. Sabem que o direito de voto aos 15 anos de idade lhes dá um certo poder. Esses “filhos de Khomeyni” não têm idade para tomar o poder, mas receberam uma boa formação durante os anos de Khatami e certamente o farão nos próximos cinco anos. Poderão aperfeiçoar suas idéias e traduzi-las em termos políticos para substituir as elites apolíticas, tecnocráticas e islâmicas que se agarram ao poder. Essa transmissão de poderes não implica uma Revolução, mas não se fará sem sobressaltos.
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A geração mais jovem dispõe, mesmo longe de Teerã, de novos recursos para compreender e agir, pois atualmente a alfabetização é geral
As mulheres – tanto, ou mais, que os jovens – tornaram-se os atores mais paradoxais e mais eficientes da vida política e social iraniana5 . Alguns números simbolizam essas mudanças irreversíveis, das quais ainda não é possível avaliar as conseqüências: 62% dos novos estudantes são moças; 62% das mulheres que vivem no meio rural são alfabetizadas (eram 17% em 1976); o número médio de filhos por mulher iraniana era de 6,8 em 1980 e hoje é de dois. Outros países, como a Síria ou a Argélia, passam por uma evolução comparável, em parte, mas o contexto político, histórico e internacional do Irã produziu uma dinâmica específica que poderia vir a se propagar pelo mundo muçulmano.
Em sua iniciativa de conquista metódica do espaço público, as mulheres iranianas recebem freqüentemente o apoio de religiosos modernistas, que procuram dissociar a dimensão religiosa do islã das práticas sociais, como o véu, herdadas, principalmente, de tradições despóticas, patriarcais e machistas. Apesar das aparências, o país reúne hoje as condições para uma revolução da situação da mulher num país muçulmano.
Hostilidade à “ordem”internacional
Ao apoiar os palestinos (Yasser Arafat foi o primeiro grande líder estrangeiro a visitar o Irã depois da revolução) e se opor aos Estados Unidos (diplomatas ficaram presos, como reféns, durante 444 dias) no contexto da guerra fria, a República islâmica nunca deixou de afirmar sua hostilidade à “ordem” internacional. Em compensação, foi isolada e submetida a boicotes. Passou, inclusive, por uma guerra de agressão que durou oito anos, originando os conflitos e a corrida armamentista de que se conhecem as conseqüências no Iraque. A exportação da revolução islâmica e antiamericana, por meio de recursos clandestinos e muitas vezes terroristas – principalmente no Líbano -, caracterizaria por muito tempo a política externa do Irã revolucionário em guerra com o Iraque e seus aliados.
A guerra clandestina e os esforços para construir mísseis e armas de destruição em massa – principalmente de natureza química e nuclear – iriam permitir ao Irã compensar a fragilidade de seu exército convencional, ocupado no front iraquiano e sem um equipamento moderno. No plano técnico, os resultados foram mais inquietantes do que perigosos num prazo curto, mas o Irã já se tornava uma ameaça em potencial. A violência dos discursos antiisraelenses, contra o “Grande Satã” norte-americano e, de uma maneira geral, contra o resto do mundo, acabaram por construir e justificar o epíteto de “Estado delinqüente” com que o Irã islâmico foi tachado durante muito tempo e que luta para apagar.
Nação independente, mas debilitada
Como em qualquer outro país, os jovens iranianos querem participar da sociedade de consumo e ter acesso à cultura internacional, mas também são politizados
O balanço mais importante destas últimas décadas, entretanto, reside menos no papel maléfico – e, às vezes, exagerado – atribuído a este país do “eixo do Mal” do que na independência política que ele adquiriu. É incontestável que o nacionalismo iraniano foi reforçado pela adversidade, por slogans como “Nem Leste nem Oeste” e pelos permanentes esforços da diplomacia iraniana no sentido de reatar relações – às vezes, sem um conteúdo significativo – com um grande número de países, principalmente do “terceiro mundo”, e com instituições internacionais. A República islâmica fez do país, incontestavelmente, uma nação independente, mas debilitada. Longe de constituir uma ameaça para seus quinze vizinhos, o Irã, sem forças armadas modernas, teme a influência externa de que pode ser objeto por parte dos povos fronteiriços – curdos, azeris, balúchis ou árabes.
Desde a ofensiva norte-americana na região, logo após o dia 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos passaram a ser vizinhos contíguos do Irã. Parece excluída a possibilidade de uma invasão militar do país, mas as pressões exercidas sobre o regime islâmico e a vontade unânime de preservar a independência nacional impõem ao Irã voltar-se para o essencial. A correlação de forças mudou no exterior, mas também no interior do país, com a população exigindo, maciçamente, o direito de participar de uma vida internacional num plano elevado, tanto nas áreas econômica e política, quanto na cultural e científica.
Portanto, é por opção, mas também por se ver forçada a fazê-lo, que Teerã tenta negociar a volta à comunidade internacional. Cada um à sua maneira, europeus, russos, chineses, japoneses e os próprios norte-americanos procuram reatar vínculos privilegiados com este país rico, amplo, com uma grande população, que se impõe como o mais estável da região e no qual já não se correm riscos de uma revolução islâmica. Desta forma, o Irã está em vias de se constituir no ator inevitável para a segurança e o desenvolvimento da região, mas ainda é necessário tempo para que a confiança seja restabelecida e para que as relações com os Estados Unidos – chave-mestra da geopolítica – sejam “normalizadas”.
O pior ainda é possível
As mulheres – tanto, ou mais, que os jovens – tornaram-se os atores mais paradoxais e mais eficientes da vida política e social iraniana
O pior é sempre possível, principalmente quando se confrontam as ideologias extremistas dos neoconservadores norte-americanos e dos nostálgicos da revolução islâmica, mas a história imediata deve ser colocada no novo contexto das relações de força e dos métodos adotados em outubro de 2003 – tanto em termos de direitos humanos, quanto de segurança internacional e de desenvolvimento econômico.
A atribuição do Prêmio Nobel da Paz a Chirin Ebadi abrange duas dimensões. Confirma que os direitos humanos ocupam um lugar central na dinâmica em curso e reforça a posição daqueles que, como ela, procuram ser eficazes permanecendo no âmbito da cultura islâmica. É necessário mudar as leis, mas isto não basta para transformar as mentalidades.
O islã continua sendo uma das forças vivas e constitutivas do país e a prioridade de ação é voltada para o enorme número de muçulmanos iranianos de boa vontade, ainda que “conservadores”. Contrariamente ao que se passa com o presidente Khatami, prisioneiro da cultura clerical, estes militantes iranianos da defesa dos direitos humanos apreciam e solicitam o apoio internacional. Sua eficácia é ainda maior a partir do momento em que os iranianos se inseriram muito mais na vida econômica, intelectual, artística e científica – e, muito em breve, política – do mundo.
Antecipação européia
62% dos novos estudantes são moças; 62% das mulheres que vivem no meio rural são alfabetizadas (eram 17% em 1976)
Quando assinou, no dia 21 de outubro, com os ministros de Relações Exteriores francês, alemão e inglês, um acordo por meio do qual Teerã se compromete a respeitar as regras internacionais sobre energia nuclear, Hassan Ruhani, dirigente do Alto Conselho Nacional de Segurança, atravessou pela primeira vez a linha do medo, que vem paralisando desde sempre as tomadas de decisão dentro do Irã clerical.
Ao invés de se camuflar por trás do jargão político antiisraelense e antiamericano – que escondia um grande vazio político -, o governo islâmico tomou consciência do nível das mudanças que ocorreram no plano internacional e nacional e aceitou, sem possibilidade de voltar atrás, entrar num processo de parcerias – e não de ruptura, ou de ações clandestinas. As medidas de transparência adotadas pelo Irã numa área tão sensível quanto é a das armas atômicas ainda deverão ser completadas e confirmadas para que seja restabelecida a confiança e sejam permitidas alianças, mas a decisão de princípio já foi tomada.
Este acordo sobre a energia nuclear, no qual a França desempenhou um papel central, também constitui uma revolução para os europeus que, pela primeira vez em 50 anos, se anteciparam à iniciativa dos norte-americanos e demonstraram a eficiência de seu método. Ainda que exercendo pressões e, às vezes, ameaças, propuseram uma saída positiva que atendesse às legítimas necessidades e aspirações de Teerã: o acesso a tecnologias modernas e um papel na questão da segurança regional. Ao contrário dos 25 anos de ostracismo decretados pelos norte-americanos – que nada mudaram -, a iniciativa européia de uma saída satisfatória não somente permitiu dar garantias de segurança à comunidade internacional, como condenar os erros do Irã revolucionário.
Investimento externo
A República islâmica fez do país, incontestavelmente, uma nação independente, mas debilitada. Sem forças armadas modernas, o Irã teme a influência externa
A decisão da Renault de criar uma empresa de produção de automóveis (700 milhões de euros, ou 1,35 bilhão de reais), destinada a substituir a famosa Peykân que fabrica automóveis há mais de 40 anos, consagra a estabilidade e a ausência de riscos políticos de maior importância. Este investimento mostra que o Irã deixou de ser considerado um país em risco de ser abalado por uma revolução que impediria seu desenvolvimento. Assim como a empresa Total o fizera em 1995, “violando” o boicote petrolífero norte-americano, a Renault compreendeu a medida da realidade do despertar iraniano. Outras empresas estão em vias de seguir seus passos.
Em termos imediatos, a história do Irã continua marcada por conflitos e, muitas vezes, por dramas: as forças clericais que ocupam o poder, principalmente através do Conselho dos Guardas da Constituição, pervertem constantemente o processo eleitoral, eliminando, como sempre fizeram, os membros de oposição mesmo antes do escrutínio e recusando-se a promulgar as leis. Mas o contexto já não é o da década de 90, pois as forças externas e internas passaram a formar um todo indissociável.
Isto não impede que alguns conservadores e tecnocratas iranianos esperem por um sistema à moda chinesa, ou saudita, aberto à tecnologia, mas fechado às idéias, assim como não impede os neoconservadores norte-americanos de continuarem exigindo uma mudança radical do regime; mas, em ambos os casos, isso significa ignorar a que ponto o Irã evoluiu nos últimos 25 anos. Combinando as dinâmicas do nacionalismo, do islã e do conhecimento, o país acostumou-se com a independência e a sociedade, com a liberdade de expressão mais do que com a liberdade de agir.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Olivier Roy, L?échec de l?islam politique, ed. Seuil, Paris, 1992.
2 – Ler, de Fahrad Khosrokhavar e Olivier Roy, Comment sortir d?une révolution religieuse, ed. Seuil, Paris, 1999.
3 – Ler, de Marie-Fouladi, Populati