O eclipse da cidade e os “sem direitos”
Limitada pelo aprisionamento do corpo, relegado aos espaços privados, a vida urbana passa a ser mediada pelas redes e mídias sociais, que criam a sensação de proximidade e diálogo ainda que virtual. Mas a densidade do uso do espaço urbano revela, todavia, o grau diferenciado da intensidade dos sons iluminando, inequivocamente, a desigualdade vivida através do modo como os cidadãos lidam (ou são obrigados a lidar) com a pandemia. O eclipse é parcial.
Estamos vivendo o impensável: em muitos lugares da metrópole de São Paulo o som, vindo de fora das janelas, está muito próximo do silêncio. Hoje a realidade parece conspirar com aquilo que define a cidade como o espaço apropriável que sustenta a vida, isto é, um espaço palpável, real e concreto. O que é exterior a nós e, ao mesmo tempo, uma realidade vivida por todos através das propriedades do tempo. Portanto a cidade, mais do que arquitetura, é presença.
O acesso à cidade se faz através do corpo que ocupa os espaços onde se realiza a vida em suas relações mais finas. Refiro-me aos usos dos lugares das múltiplas atividades que pontuam nosso cotidiano tornando-o possível e que podem ser reconhecidos nos pequenos atos corriqueiros e, aparentemente irrisórios, como aqueles dos múltiplos encontros, dos atos de ir e vir das compras, do trabalho, da escola, do cinema etc.
Identidade
Essas ações sedimentam os laços de identidade entre os habitantes e a cidade pois promovem reuniões e encontros revelando os espaços-tempos do desenrolar da vida diferenciando o espaço privado do público onde se constrói e se vive o entrelaçamento das histórias individuais na constituição de uma história coletiva numa cidade que é, antes de mais nada, uma obra civilizatória. Hoje, todavia, vai aprofundando-se a linha de demarcação imposta pelo limiar da porta da casa que marca o dentro (seguro) e o fora (perigoso e ameaçador).
A pandemia revoluciona os sentidos e usos dos lugares da cidade, porque colocou de ponta cabeça nossa vida cotidiana. A estratégia para superá-la impõe o isolamento social negando o corpo que usa e se apropria da cidade como condição da realização da vida em sociedade. É assim que ela se esvazia, fato que pode ser constatado nos núcleos de comércio da cidade – lugares intensos de troca – bem como na diminuição dramática do fluxo de carros nas principais ruas e avenidas.
Limitada pelo aprisionamento do corpo, relegado aos espaços privados, a vida urbana passa a ser mediada pelas redes e mídias sociais, que criam a sensação de proximidade e diálogo ainda que virtual. Mas a densidade do uso do espaço urbano revela, todavia, o grau diferenciado da intensidade dos sons iluminando, inequivocamente, a desigualdade vivida através do modo como os cidadãos lidam (ou são obrigados a lidar) com a pandemia. O eclipse é parcial.
No centro da cidade se o fluxo diminui, não apaga a presença dos cidadãos que vivem nas ruas e que aí se encontram esperando por ajuda e comida em filas que os mantêm, do ponto de vista sanitário, em situação de risco. Em muitos lugares da periferia, tão pouco, o uso e o silêncio podem ser igualados àqueles dos bairros de população de alto poder aquisitivo.
Nestes lugares periféricos onde residem, preferencialmente, a parcela da sociedade de baixo poder aquisitivo – que mais tempo leva para se deslocar na cidade, cujas moradias, mais se distanciam dos lugares de trabalho e onde, os preços do metro quadrado do solo tendem a ser mais baixo pela deficiência ou ausência de infraestrutura – a vida segue precariamente.
Em muitas destas áreas, as pessoas moram em casas pequenas, cujas torneiras nem sempre sai água, em muitos casos com banheiros compartilhados, com fogões desligados e mesas sem comida. É o lugar de vida de trabalhadores, muitos deles informais, que vivem de bico e dependem da circulação das pessoas. É também aquele do pequeno comércio que vende as mercadorias em quantidades muito pequenas porque o dinheiro é escasso e nem sempre permite fazer estoques.
Aqui, o dentro e fora parecem imbricados e a rua é a condição óbvia do desenrolar da vida tornando difícil o isolamento social. Logo as estratégias que podem evitar ou diminuir as consequências da pandemia se fazem precariamente, mas constantemente, através das ações promovidas pelos próprios moradores num esforço de solidariedade e união na luta pela vida. O cotidiano da metrópole, pontuando pela contagem entre mortos e infectados e a necessidade da quarentena, ilumina o fato de que nem todos podem escolher.
Mas se nestes lugares se encontram os “sem direito à quarentena” é também onde o corpo resiste e mostra sua visibilidade e, através desta, questionam os direitos desiguais que traz, como exigência, um tratamento também desigual, nas estratégias de mitigar a pandemia.
Desigualdades
Deste modo, a crise do novo coronavírus revela o fato de que o simples ato de ficar em casa, ou ter acesso aos tratamentos em hospitais – em um país como o nosso – não está posto para todos, pois os diretos não são iguais. Essas possibilidades já estão postas historicamente pelo acesso diferenciado, numa sociedade de classe, aos direitos à vida e à cidade.
Em nossa sociedade urbana, profundamente desigual, a segregação socioespacial assinala, portanto, a hierarquia social vivida diferencialmente. É por esse motivo que o vírus ao atingir desigualmente a sociedade – apesar dos discursos em contrário – aprofunda a crise social também de forma desigual.
No plano político o discurso oficial além de encobrir essas diferenças e portanto, o modo diferencial de lidar com elas, encobre algo importante: a luta que se trava contra o vírus encontra um sistema de saúde que já vem sendo dilapidado pelas políticas neoliberais cujo exemplo didático é a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, conhecida como a “emenda do fim do mundo” aprovada no governo Temer, que congelou por 20 anos, os gastos de saúde e educação.
É assim que, no governo atual, foi possível elevar gastos e investimentos na área de Defesa – um aumento real (acima da inflação) de 22,1% – enquanto a proposta orçamentária para 2020 diminuía a previsão de verba para gerenciamento de hospitais universitário (com corte de 24%), ou ainda um corte de 3.2 bilhões – entre 2019 e 2020 – para a empresa brasileira de serviços hospitalares. Os gastos declinantes com a saúde, no Brasil, acusaram, só no ano de 2019 em relação a 2018, uma diminuição de 20 bilhões de reais.
É neste cenário que somos convocados a defender um sistema de saúde que tem merecido, cortes sucessivos impostos pelo modelo neoliberal adotado, o que esclarece a insistência do governo federal em defender o crescimento da economia em detrimento da preservação da vida.
Ana Fani Alessandri Carlos é professora titular em Geografia da FFLCH-USP e coordenadora do GT “Teoria Urbana Critica”, Instituto de Estudos Avançados- IEA-USP