O elo entre a crise do Rioprevidência e a privatização da Cedae
Além de ser alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), o RioPrevidência já foi objeto de investigação do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro e do Ministério Público Estadual
O banco francês BNP Paribas, um dos cinco maiores do mundo, é o elo entre a crise do Rioprevidência – fundo previdenciário dos servidores do estado do Rio de Janeiro -, e a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae).
Sérgio Cabral (MDB) e Luiz Fernando Pezão (MDB) hipotecaram o fluxo de receita dos royalties e participações especiais, que constituem a receita do Rioprevidência, a uma instituição financeira internacional, situada no paraíso fiscal do estado americano do Delaware. A Rio Oil Finance Trust (Roft), criada pelo governo para esse fim, emitiu títulos financeiros ancorados no fluxo de receita, a fim de captar dinheiro de especuladores internacionais. Esta operação, cujo saldo negativo se aproxima de R$ 20 bilhões, foi não apenas estruturada, como também usufruída pelo banco BNP Paribas. As relações que se estabeleceram entre o estado do Rio de Janeiro e os agentes financeiros internacionais foram investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Rioprevidência, presidida pelo deputado estadual Flávio Serafini (PSol), cujo relatório já está pronto para votação.
O mesmo BNP Paribas foi o único banco que se candidatou a emprestar R$ 2,9 bilhões ao governo do Rio de Janeiro, no leilão de novembro de 2017, para que o estado conseguisse honrar a folha de pagamentos dos servidores estaduais, em meio ao malfadado “Regime de Recuperação Fiscal” – instrumento criado pelo governo federal para fornecer ajuda aos estados da federação que passavam por grave crise financeira. Crise provocada, em boa medida, pela Operação Delaware, montada, entre outros agentes financeiros, pelo BNP com a cumplicidade das autoridades fazendárias estaduais. Após três anos do leilão, os interesses escusos desta operação ficaram visíveis.
Na contratação do empréstimo junto ao BNP, a União figura como avalizadora da operação que, por sua vez, teve como garantia a alienação das ações da Cedae. O contrato de empréstimo entre governo estadual, União e BNP venceu em dezembro de 2020. Com o vencimento, a União ameaçou retirar o estado do regime de recuperação fiscal, impondo que os recursos advindos da privatização da Cedae fossem repassados ao governo federal. Porém, por decisão do Supremo Tribunal Federal, o Rio de Janeiro permaneceu no regime e pode renegociar a dívida com o BNP.
A renegociação da dívida parece ser interesse do próprio BNP. De um lado, a dívida contratada já passou de R$ 2,9 bilhões para R$ 4,5 bilhões, só com juros e encargos. Ademais, não estaria descartada, no contexto atual em que o governador em exercício, Cláudio Castro (PSC) abriu o processo de licitação das concessões dos serviços de saneamento da Cedae. O governo sinaliza a possibilidade de parcelas expressivas da Cedae sejam abocanhadas pelo BNP em troca da dívida.
Vale ressaltar ainda que o BNP esteve diretamente envolvido na operação de fusão dos grupos Suez e GDF, gigantes francesas no setor de energia e serviços urbanos. A GDF Suez é também controladora da Lyonnaise des Eaux, grupo multinacional francês que opera serviços de saneamento e interessada na Cedae.
Além de ser alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – cujo relatório final será votado em março -, o RioPrevidência já foi objeto de investigação do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro[1] e do Ministério Público Estadual, por meio do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Sonegação Fiscal e aos Ilícitos contra a Ordem Financeira, Tributária e Orçamentária (Gaesf) [2].
A privatização da Cedae
Em 20 de fevereiro de 2017, a Alerj aprovou, por 41 votos favoráveis e 28 contrários, a alienação de 100% das ações da Cedae (lei n°. 7.529/2017). Naquele momento a privatização estava diretamente relacionada ao compromisso para recuperação fiscal do estado, estabelecido entre o governador Luiz Fernando Pezão (MDB) e o presidente Michael Temer (MDB), para garantir, entre outras coisas, o empréstimo de até R$ 2,9 bilhões ao estado para pagamento da folha de servidores que, à época, estava atrasada em quatro meses.
Ainda em 2017, os partidos PSol e Rede impetraram Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei n°. 7.529/2017. No decorrer do processo, a Procuradoria Geral da República (PGR) manifestou-se contraria à lei, pedindo que fosse declarada inconstitucional. No entanto, o relator da ADI, ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, entendeu que seria inconstitucional apenas se bancos públicos participassem do processo, supondo que bancos privados também poderiam fazê-lo.
Concedeu, assim, liminar parcial, permitindo a participação de entidades privadas. Mesmo com essa manifestação, a insegurança jurídica não permitiu que, por exemplo, entidades privadas nacionais participassem do processo, o que explica em parte o leilão ter tido apenas um único candidato. Mas como a questão da privatização das águas é uma pauta do grande capital, encontraram uma entidade financeira, o BNP Paribas, disposta a “correr o risco”. A ADI segue conclusa ao relator desde setembro de 2017. Enquanto isso, a Lei n°. 7.529/2017, permanece produzindo efeitos e possibilitando o avanço do capital sobre nossas águas.
A questão de insegurança jurídica desse processo foi tão grande que o valor só entrou nos cofres públicos em setembro de 2017, quando o banco francês BNP Paribas aceitou fazer o empréstimo com prazo de pagamento até setembro de 2020, recebendo como fiança – ou melhor, em garantia – as ações da Cedae oriundas do acordo supracitado. O valor corrigido a ser pago é de R$ 4,5 bilhões, em parcela única. Ou seja, a Cedae passou a ser o lastro deste empréstimo! É importante destacar que este recurso foi destinado para a amortização de dívidas, o que significa que o patrimônio público da Cedae foi empenhado para alavancar o mercado financeiro e não para enfrentar a “Calamidade Financeira do Estado”.
Vale destacar que esse valor inicial do empréstimo de R$ 2,9 bilhões feito pelo BNP Paribas é bem inferior ao lucro líquido obtido pela Cedae entre 2012 e 2016, que corresponde a R$ 4 bilhões, assim como irrisório se considerarmos o montante da dívida do estado que, de acordo com Relatório da Dívida Pública, do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) e da Secretaria Estadual de Fazendo (Sefaz-RJ), foi uma das que mais cresceu nos últimos anos. Se em 2010 a dívida consolidada do estado era de R$ 53 bilhões e correspondia à 156% da receita corrente líquida, no final de 2018 esse valor passou para R$ 153 bilhões, o que correspondia à 265,3%. Esse valor está acima dos 200% permitidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Entendemos que outras estratégias políticas, como a revisão dos cargos comissionados, a auditoria da dívida do estado e o fim das isenções de impostos, poderiam ter sido adotadas para garantir receitas maiores ao estado, ao invés da privatização da Cedae. Outro ponto é que parlamento fluminense aprovou recentemente a Lei Estadual Nº 8.814/2020, que, na prática, inviabiliza e impede em definitivo a privatização da Cedae, ao autorizar o governo do estado a trocar o montante do financiamento do BNP, que serviu como moeda de troca para a alienação das ações da Cedae, pelo valor oriundo da Imunidade Tributária do Imposto de Renda pago indevidamente pela companhia, que foi conquistada pela Ação Cível Originária nº. 2757, com trânsito em julgado no Supremo Tribunal Federal.
Ainda em 2018, por pressão do legislativo, foi incluído o artigo 22 na Lei Complementar n°. 182/2018, que retirava a Cedae definitivamente do “Compromisso para Recuperação Fiscal do Estado do RJ”. O dispositivo foi vetado pelo governador Luiz Fernando Pezão e, em seguida, a Alerj derrubou o veto. Contudo, em dezembro de 2018, o governo do estado conseguiu uma liminar no Tribunal de Justiça para suspender os efeitos desse artigo sob o argumento de que “põe em risco a permanência do Rio de Janeiro no regime de recuperação fiscal, e pode causar dano irreparável às finanças do estado com reflexo ao bem-estar da sociedade”.
Com o vencimento da dívida com o BNP no final do ano passado e a sua renegociação em bases ainda obscuras, o risco é, além do crescimento da dívida, de o BNP abocanhar parte do capital da Cedae.
Vale ressaltar que, para além da privatização dos serviços de distribuição e coleta e tratamento de esgoto, a Cedae permaneceria com a produção da água e que, em momento posterior, se prevê a abertura de capital da empresa, o que poderia também interessar ao BNP, convertendo dívida em participações. Entre os ativos da Cedae está a maior estação de tratamento de água de produção contínua do mundo – sem dúvida, muito atrativo no atual contexto de financeirização, de inclusão da água como commodity em Wall Street.
Em que pesem as alternativas fiscais e legais acima indicadas, importa também mirar a atuação bastante controversa, para dizer o mínimo, do BNP Paribas, bem como de agentes públicos que juntos montaram uma operação inédita de dilapidação dos cofres públicos. Este modelo de financeirização de fluxos futuros de receitas petrolíferas e minerais está sendo . Ao mesmo tempo, a privatização da Cedae como moeda de troca desta escabrosa história perde qualquer sustentação e mesmo amparo legal. Há que chamar à responsabilidade, para além dos representantes da classe política, as pessoas físicas e jurídicas de grandes corporações predadoras do fundo público, como parece ser bem o caso do BNP Paribas.
Caroline Rodrigues da Silva, assistente social e educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), doutoranda de Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]
Danilo Georges Ribeiro, assessor parlamentar do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, doutorando de História na Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]
Flávio Serafini, deputado estadual pelo PSol na ALERJ, sociólogo e professor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). E-mail: [email protected]
João Roberto Lopes Pinto, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Instituto Mais Democracia. E-mail: [email protected]
[1] Processo do TCE sobre a operação Delaware. https://www.tce.rj.gov.br/consulta-processo/processo/list?numeroprocesso=109230-6%2F15&x=18&y=21.
[2] MPRJ-GAESF – Inquérito civil Nº 2016.00530493