O espetáculo da desgraça alheia
Ao exigir livre acesso às vítimas em nome de um dever de intervenção muito discutível, o humanitarismo acabou produzindo um “direito” de ingerência onde o indivíduo é considerado apenas um corpo biológico, cuja existência deve ser garantida contra a fome, as epidemias ou as catástrofes naturais
Em maio deste ano jornais do mundo inteiro denunciaram a ONG francesa Arca de Zoé, acusada de raptar 103 crianças no Chade. As vítimas, supostamente órfãs do conflito em Darfur, seriam adotadas por famílias européias caso seus pais biológicos não reclamassem junto às Nações Unidas sua paternidade. Essa denúncia, que obteve grande destaque na mídia, se soma a muitas outras e contribui para colocar sob suspeita os objetivos e a moral das ações humanitárias, antes vistas como “bem-intencionadas”.
Da forma como é apresentado hoje, o humanitarismo dessas organizações repousa sobre três pilares: o primeiro é a universalidade dos direitos do homem, uma afirmação tão simpática quanto problemática; o segundo, a construção da figura de vítima, sem a qual não seria possível pensar em “resgate”; por último, a ingerência humanitária, que considera inegociável a prerrogativa do acesso irrestrito às vítimas.
Para que essas ações tenham legitimidade, o primeiro postulado é fundamental. Mas quem é o sujeito portador desses direitos, tão aviltados em setores como saúde, educação e segurança? Com certeza não se trata do mesmo sujeito citado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional da França em 1789. Aquele, sim, era um sujeito político, ao contrário do indivíduo que recebe a ajuda humanitária hoje, considerado apenas um corpo biológico cuja existência deve ser garantida contra a fome, as epidemias ou as catástrofes naturais. Alvo final da medicina de emergência, o direito à vida é um produto do fim do século XX, possível graças à despolitização e a moralização generalizada da sociedade. Vale destacar que foi nessa época que a associação Médicos Sem Fronteiras (MSF) se tornou um símbolo mundialmente reconhecido da medicina de emergência.
É necessário, ademais, nos questionarmos se a vítima que recebe apoio é mesmo considerada um sujeito ou se constitui apenas um objeto da ação humanitária. Afinal, ser homem é um estatuto, mas ser vítima é um estado. E, neste caso, a população em questão torna-se, por natureza, impessoal e intercambiável. Basta recorrer às correspondências das organizações não-governamentais para comprovar que o povo aparece como figurante passivo de um marketing cujo tom é emocional. Sua dignidade é abstrata e depende das circunstâncias. A desigualdade e a ausência de reciprocidade caracterizam a relação entre redentores e redimidos.
Aliás, a maioria dos indivíduos em questão não se vê como vítima, mas como uma pessoa confrontada com um drama. Com efeito, os homens lutam desde o começo dos tempos contra violências de toda espécie: da natureza, dos poderes, da sociedade. Por isso, os filipinos atingidos pelos tufões ou os bengaleses atordoados por repetidas inundações enfrentam a crise integrando-a ao seu destino e se consideram indivíduos dignos, que apenas vivem em uma zona de risco. Quem os constrói como vítimas é o olhar estrangeiro. Tanto que as equipes de emergência e de atendimento móvel locais só acorrem quando há solicitação de socorro, diferentemente das associações humanitárias, que desembarcam sem serem chamadas. É inegável o fato de que muitas vidas são salvas, mas seu resgate segue uma programação própria e com interesses específicos.
Nesse sentido, a estimativa do número de vítimas, justificativa utilizada para legitimar essa ingerência, é reveladora: muitas vezes há subavaliação e, em outras, superdimensionamento. Na América Latina, por exemplo, os Estados tendem a superestimar o número de flagelados para entrar na agenda humanitária global – caso do ciclone Mitch, em 1998, que atingiu Nicarágua, Honduras, Guatemala e El Salvador. É o oposto do que fez Mianmar ou, em menor grau, a China quando do tremor de terra no início do ano.
Uma cortina de fumaça para as tensões
Ao exigir livre acesso às vítimas em nome de um dever de intervenção muito discutível, o humanitarismo do século XX acabou produzindo um “direito” de ingerência que mais parece uma espinha política para todos os Estados do que uma vitória da humanidade sobre si mesma. A noção surgiu, na verdade, no final dos anos 1980, quando as pretensões ocidentais podiam ainda soar universais. Não é mais o caso. É difícil exportar lições de moral quando o crescimento econômico mudou de hemisfério. Além disso, a ingerência humanitária passou a ser vista como uma cortina de fumaça, criadora de tensões políticas. Não é de hoje que ela vem sendo questionada e cada vez mais considerada responsável por desordens locais, em particular nos lugares em que Estados frágeis se viram tutelados por interventores multilaterais como ONGs, associações humanitárias, militares. Quando o infortúnio se prolonga, caso do Haiti, esses estrangeiros bem pagos, a bordo de seus potentes jipes 4×4, são apedrejados e até mesmo seqüestrados. Seus seqüestradores se agarraram à esperança de obter um resgate ou quem sabe de lançar um grito de desespero. No Afeganistão, dois membros do grupo “Ação contra a Fome” foram raptados em julho e libertados mediante pagamento de resgate. No Sri Lanka, vários integrantes dessa mesma associação foram mortos em 2006. Voluntários da ONG Médicos Sem Fronteiras também vêm sendo capturados desde 2005 no Daguestão e na República Democrática do Congo.
Esses fenômenos são observáveis em zonas de conflitos em que as ONGs coabitam com as forças militares e as “boinas azuis”, as tropas multinacionais da ONU (Organização das Nações Unidas). Em regiões como Palestina, Eritréia, Sudão, Iêmen, Sri Lanka e Darfur a ajuda humanitária serve cada vez menos de salvo conduto. No Iraque, ela praticamente inexiste.
No cerne desse problema está a falta de legitimidade política da ingerência humanitária. Ela tem por pressuposto uma sociedade civil mundial capaz de outorgar um mandato universal a interventores cuja nacionalidade, recursos e ideologia seriam, como por encantamento, neutralizados ou ocultados. Isso simplesmente não existe. E, assim, essas organizações negam a territorialidade da existência humana, a inserção dos homens em um tecido social – tanto geográfico quanto político – e em um Estado soberano.
Ora, sabemos que a crise financeira atual está levando os Estados a tomar novamente a dianteira, o que nos permite presumir uma possível fragilização do “direito de ingerência”. Sobretudo porque a existência de políticas públicas de socorro humanitário coloca a assistência como competência exclusiva dos países mais desenvolvidos.
Além disso, independentemente da seriedade da maioria desses atores, a ação humanitária utiliza de maneira abusiva as mazelas alheias como espetáculo. Com freqüência, um senso de marketing despudorado envia às estações de metrô jovens espalhafatosamente vestidos que enaltecem os méritos dos “Médicos do Mundo” ou da “Ação contra a Fome” como se estivessem vendendo sabonetes. Em geral, seus doadores já estão cansados de tantas solicitações baseadas em emoção fácil e das causas múltiplas que precisam de apoio.
Por muito tempo nas mãos de ONGs fundadoras, como Médicos Sem Fronteiras, Médicos do Mundo ou Ação contra a Fome, a ideologia humanitária foi se transformando graças à crescente implicação dos Estados na década de 1990. Na França, Bernard Kouchner e Claude Malhuret, que ocuparam o cargo de secretário dos Direitos do Homem e eram de esquerda e de direita, respectivamente, institucionalizaram e oficializaram o papel das ONGs. Engajados, à época, no combate ao totalitarismo soviético, especialmente no Afeganistão, esses dois médicos invocaram então os direitos do homem, cujo apologismo evaporou com o fim da Guerra Fria1.
Atualmente, a ação humanitária é um campo estratégico para os governos porque junto com os médicos vão também os militares. Organizações multilaterais, entre elas a União Européia, financiam programas em grande escala, enquanto outras linhas de crédito são destinadas para a “manutenção da paz”, notadamente as fornecidas pela ONU. Todos esses atores inundam as nações pobres de uma plêiade de interventores que podem tanto produzir a desordem quanto incitar à ordem.
Assim, o “humanitarismo” tornou-se um espaço de convivência de políticos demagogos, profissionais fatigados e inquietos, gerentes tecnocráticos de organizações multilaterais inseridos em lógicas burocráticas e financeiras, doadores desconfiados ou apáticos que tendem a privilegiar as causas que estão mais próximas2. O circo existe porque há espetáculo. E o espetáculo aqui é a infelicidade dos outros, mercadoria midiática cuja inflação não incomoda ninguém.
Nem os Estados nem as organizações multilaterais deveriam entregar às associações o monopólio das sensibilidades, da solidariedade e da generosidade. Mas a ideologia humanitária parece ser considerada um elemento central da globalização moral em curso porque ajuda a ocultar os lucros da economia de mercado, advindos da exploração globalizada. Afinal, a utilização de mão-de-obra infantil, os ritmos exaustivos de produção, as horas extras não pagas e todos os excessos em um universo exacerbado de desregulamentações precisam ser maquiados, e as ONGs têm um papel a cumprir. A garantia de pseudotransparência e de caridade benevolente é o tributo a ser pago a uma moral que coloca doadores, sejam eles Estados ou empresas, em conformidade com uma “humanidade” também moral.
Vítimas da natureza e da economia
O universo da ação humanitária lançado pelas ONGs é pós-político e advém das artimanhas da boa consciência. Se o século XX foi marcado pela questão social, o XXI deverá gerar um número considerável de vítimas da natureza e da excludente economia de mercado3. Neste vulcão, muitos profissionais e voluntários tentam evitar o pior. O que fazem é útil e generoso, mas não é uma solução. A ideologia humanitária contribuiu para eclipsar o desenvolvimento, substituindo-o pela noção de “luta contra a pobreza”, considerada uma patologia ou uma enfermidade a ser combatida por sua medicina de emergência.
À força de mascarar a injustiça oculta atrás do desamparo da miséria, essa ideologia nos propõe normas sempre mínimas de uma vida que não passa de mera sobrevivência. Estar à beira da morte precisa ser condição essencial para receber assistência? Isso é moral? É humano? Ao contrário das aspirações da era das Luzes, esse pensamento legitima a idéia de um mundo cindido entre vencedores bem-sucedidos de um lado e doentes ou refugiados de outro. Contribuindo para instalar um apartheid planetário, as estratégias do desastre inscrevem-se na lógica de tutela global, moral e securitária.
Nos países do norte, a encenação de catástrofes permanentes, instrumento de governança moral e de tráfico político, leva os cidadãos a esquecerem os movimentos sociais em nome de um universo de compaixão e de ânimos sensíveis e voláteis. Onde só as emoções encontram espaço, a consciência da injustiça é obscurecida. No melhor dos casos, a sensibilidade humanitária produz indignação. Mas impede a rebelião.
*Bernard Hours é antropólogo, pesquisador do IRD/França (Instituto de Pesquisas para o Desenvolvimento), autor de L’idéologie humanitaire ou le spectacle de l’altérité perdue (Paris, L’Harmattan, 1998) e, com Niagale Bagayoko Penone, de Etats, ONG et producion des normes sécuritaires dans les pays du Sud (Paris, L’Harmattan, 2005).