O espetáculo policial
Escândalos envolvendo terrorismo e pedofilia tomam conta da mídia. Acusada de conivência com os poderes e com o dinheiro, nada mais estimulante do que entrar em uma batalha contra a moralidade inevitavelmente decadenteGilles Balbastre
Em 19 de maio de 2004, diante de dezenas de câmeras, entre as quais a do jornal da TF1, o oficial de justiça Alain Marécaux caiu em prantos na saída do tribunal de Saint-Omer. O momento foi patético: “Eu perdi tudo nesse caso. Vocês sabem… Roubaram meus filhos. Mataram minha mãe. Tive que vender meu escritório… vender minha casa… Não tenho mais nada… Como vocês querem…” A mudança brusca de rumo do caso, com o interrogatório de sua principal acusadora transformou, de repente, esse homem em herói, vítima, segundo a imprensa unânime quanto à “falência do sistema judiciário”, dos peritos psicólogos “parciais”, das assistentes sociais “irresponsáveis” e até da palavra de crianças “manipuladas”. Naquele preciso momento, quem se lembrava que, dois anos antes, em 11 de janeiro de 2002, o jornal 20 horas da TF1 mostrava a 9 milhões de telespectadores a casa do mesmo Alain Marécaux e de sua mulher, ambos encarcerados em seguida ao que, na época, foi apresentado como um monstruoso caso de pedofilia?
O Le Figaro de 20 de maio de 2004 se compadece do destino do motorista de táxi Pierre Martel: “Antes do ?caso?, ele levava uma vida em paz, entre sua família e sua paixão pelo golfe.(…) Ele foi posto sob investigação por seis violações de menores. Também foi acusado de ter transportado crianças para a Bélgica para sessões de pedofilia em uma fazenda”. Essa terceira pessoa, acusadora indeterminada, visa, efetivamente, o Le Figaro de 1º de janeiro de 2002. Pois o jornal mencionava: “um motorista de táxi que transportava as pequenas vítimas a uma fazenda na Bélgica, porto de Ypres, onde ocorriam noitadas especiais gravadas por dois proprietários de um sex-shop de Ostende”. Na lista dos responsáveis pelo sofrimento desses “acusados erroneamente”, exibida pela mídia, falta a profissão de jornalista1.
Afinal, no que se convencionou chamar “o caso de Outreau”, tanto é legítimo questionar a instrução do juiz Fabrice Burgaud – o que toda a imprensa fez – quando teria sido necessário submeter à crítica o trabalho da imensa maioria da mídia. Deixando de lado alguns questionamentos bem nebulosos da “pressão da mídia”, prontamente associada à “pressão da opinião pública”, ninguém enfatizou a duplicidade da imprensa. Os antigos acusados, transformados em vítimas, estão muito ocupados em refazerem-se de seu trauma; os advogados, como os responsáveis políticos, estão muito dependentes da publicidade da mídia; as profissões são postas no “livro negro”, por demais amedrontadas pelo poder de acusação dos jornalistas.
Marketing do escândalo
As leis da imprensa incluem produtividade com estoque zero, concorrência exacerbada, marketing da “revelação” excitante
A imprensa, após ter acusado nomeadamente um certo número de pessoas por atos de pedofilia, depois de ter lhes atribuído comportamentos monstruosos, depois de tê-los condenado sem processo, os reabilita, os inocenta e, em seguida, os metamorfoseia em heróis patéticos. Com o auxílio da produção ininterrupta de informações, só resta deixar agir a amnésia para que os meios de comunicação fiquem, mais uma vez, isentos do dever crítico sobre a natureza e a qualidade de suas informações. Uma nova atualidade substituirá, sem falta, a precedente.
Se o caso Outreau tornou-se exemplar não foi apenas por causa do “Chernobyl judiciário2” como a imprensa pretendeu, mas também porque esse caso revelou algo do campo jornalístico e das práticas profissionais que dela decorrem. Quer dizer, condições de produção de informação submetidas às leis liberais da economia: produtividade com estoque zero, concorrência exacerbada, marketing da “revelação” excitante.
A cobertura de Outreau não foi, de nenhum modo, uma exceção. Em janeiro de 2003, um carregador de Roissy, Abderazak Besseghir, foi acusado de preparar um atentado com explosivos. Durante uns dez dias, quase todas as mídias puseram o carregador na “primeira página” da atualidade e rivalizaram com informações erradas sobre o pretenso terrorista islâmico. “Uma informação que dá frio na espinha” era o tom da TF1, em 30 de dezembro de 2002. “Terrorismo ou grande banditismo?”, perguntava-se France-Inter, no dia seguinte. “O inquietante arsenal do carregador de Roissy”, era o título do Le Figaro, do mesmo dia. “O carregador de Roissy em contato com os islamistas”, acusa o Le Monde uma semana mais tarde. E depois… nem terrorista islâmico, nem bomba. Besseghir foi inocentado pela justiça. Sem receber as desculpas de seus acusadores.
Falsas revelações
O caráter vendável dos casos de pedofilia pode ser considerado motivação-chave para o estouro do tema na mídia
Em julho de 2004, jovens magrebinos e africanos foram acusados de terem perpetrado uma agressão anti-semita no RER, em Paris. Esse caso detona uma nova campanha da imprensa. “Uma agressão particularmente selvagem”, indigna-se Europa 1, em 11 de julho. France 2, no mesmo dia, faz eco: “Uma terrível agressão anti-semita”. No dia seguinte, Libération conclui de modo teatral: “Anti-semitismo, anti-sionismo, anticapitalismo [sic] juntos como nos piores momentos da história”. A agressão revelou-se mentirosa, inventada por sua pretensa vítima3.
O caso Outreau também não escapou do deboche das falsas revelações. Muito rápido, enquanto começava a instrução, apressava-se o relatório do ocorrido. Um repórter de France 2 não tomou nenhuma precaução quando, às 20 horas de 15 de novembro de 2002, anunciou os “fatos”: “As quatro crianças foram violadas pelo pai, primeiramente, depois por pessoas próximas. Alguns são comerciantes do bairro. Os pais pagavam, desse modo, suas dívidas”. Mais adiante, foram mencionadas, sem escrúpulo, as funções sociais dos “culpados” de crimes imaginários: “São citados os nomes de um oficial de justiça e sua esposa, de uma enfermeira escolar, de um padre operário, de um motorista de táxi que conduzia as pequenas vítimas a uma fazenda na Bélgica, próxima a Yprès, onde ocorriam noitadas especiais, gravadas por dois proprietários de um sex shop de Ostende” (Le Figaro, 21 de novembro de 2001).
Nada de assustador nessa exposição. Como o caso Doutroux (1996), o número de artigos e reportagens dedicadas aos casos de abuso sexual com crianças explodiu. Os arquivos Internet dos jornais da imprensa escrita permitem mensurar a evolução. Até 1995, as palavras pedófilo/pedofilia tinham dezenas de ocorrências por ano. Depois de 1996, é preciso multiplicar esse número por dez, até mesmo por vinte4. O estouro se explica, em parte, pela ocultação do fenômeno até aquela data. Porém, como não imaginar que o caráter vendável, ou assim suposto, das informações desse gênero constituísse uma motivação-chave? De 5 de maio até 5 de julho de 2004, o “processo de Outreau” esteve presente 26 vezes na “primeira página” dos quatro grandes jornais nacionais que consagraram a ele 344 artigos em oito semanas: 108 no Le Figaro, 84 no Le Monde, 77 no Le Parisien, 75 no Libération. Durante o mesmo período, esses jornais consagraram três artigos a eles mesmos, quatro à publicação de um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) que estabelecia que a poluição do ar, da água e de outros perigos ligados ao ambiente matavam, a cada ano, mais de 3 milhões de crianças de menos de cinco anos.
Luta dos costumes
Num vazio de confrontos ideológicos, a luta de classes pode ser substituída pela luta dos costumes
Em janeiro de 2002, as declarações de um suspeito que se acusou do assassinato (imaginário) de uma menina aguçaram a voracidade dos meios de comunicação. “Outreau é além da conta!” exclama o jornalista que apresenta a revista da imprensa na RTL (11 de janeiro). Os repórteres competem sobre o assunto em uma explosão de fatos tão sórdidos quanto falsos. O até então célebre caso Dutroux serve de referência imediata, por constituir um valor seguro permitindo esperar grandes tiragens de recordes do Audimat. No seu jornal do meio-dia, de 11 de janeiro, o apresentador de France-Inter lança a carga: “E se a França estiver a um passo de se ver diante de um novo caso Doutroux?” A mídia fez coro.
Isso não basta completamente para transformar esse fato da crônica policial em um “belo” caso. É preciso justapor uma “rede” constituída, preferencialmente por “notáveis”. O caso ainda apenas esboçava-se e TF1 já anunciava: “Podemos estar diante de uma rede de pedofilia muito mais importante do que parece” (16 de novembro de 2001). A palavra foi repetida ao longo dos artigos: cinco vezes no Le Figaro de 21 de novembro e cinco vezes no Le Monde de 24 de fevereiro de 2002, três vezes no Libération de 11 de janeiro e três vezes no Le Parisien de 16 de janeiro. Em uníssono, os apresentadores dos jornais televisivos martelam na mesma tecla: “Volto mais uma vez aos desdobramentos imprevistos no sórdido caso franco-belga de uma rede de pedofilia do subúrbio de Boulogne-sur-Mer” (20 heures TF1, em 10 de janeiro). “Caso sórdido em que um pai vendia seus filhos para satisfazer os desvios sexuais de uma rede de pedofilia” (20 heures de France 2, de 11 de janeiro). Não se tratará de rede, no momento do julgamento, em julho de 2004.
Os benefícios políticos não são poucos para a imprensa. Acusada de conivência com os poderes e com o dinheiro, nada mais estimulante do que entrar em uma batalha contra a moralidade inevitavelmente decadente dos poderosos. A virada do jogo político, o alinhamento da esquerda com as orientações neoliberais e a uniformização dos programas econômicos criaram um vazio em matéria de confrontos ideológicos. A luta de classes pode, então, ser substituída pela luta dos costumes. Em um espaço político, parcialmente despolitizado pelos jornalistas, as mídias amplificam esses combates que marcam a mudança, especialmente aqueles que mantêm a ilusão de uma imprensa que repercute a voz dos fracos.
Cenários montados
O excessivo uso da crônica policial provocou uma homogeneização da informação, mesmo que for falsa
Em um caso como esse [de Outreau] pode-se imaginar que “as derrapagens” mais graves foram cometidas pela mídia “popular”. Seguramente, TF1 jogou na aposta mais alta. Em 12 de janeiro de 2002, graças às confidências de um advogado, Duport, o jornal de 13 horas detalhou fatos sórdidos: “Verdadeiramente há uma seqüência muito rápida, porém muito dolorosa, entre o momento em que a menina foi agredida, o momento em que ela recusa, o momento em que a forçam, o momento em que ela continua a recusar e no qual o forçam mais uma vez, o momento em que a golpeiam, a chutam etc. e que a pequena começa a sangrar pela boca e depois … depois ela acaba morrendo.” Um aliado tão bom não poderia ficar desempregado. No dia seguinte, Duport era encontrado no jornal das 20 horas de France 2: “Vocês imaginam dois homens agredindo e violando uma menina de 5 anos, que grita, que se debate, que chora… que está ferida… gravemente ferida, que apanha, enfim, que apanha até morrer. É algo aterrorizante”.
Outros entram em massa por essa brecha, pois o excessivo uso da crônica policial provocou uma homogeneização da informação. A edição do Le Libération de 11 de janeiro se parece, por exemplo, com os jornais de TF1 e de France 2: “Segundo uma fonte ligada ao processo, a menina teria vindo com um belga de uns 50 anos (…) A criança, violentada pelo homem de cabelos grisalhos, gritou e chorou. Para fazê-la parar deu-lhe uns tapas, depois “grudou” nela. Daniel L., e seu filho Danny, franceses que viviam na Bélgica e tinham um sex shop em Ostende, foram investigados por terem exibido esses filmes em uma fazenda isolada, depois de Yprès, além de tê-los comercializado” (14 de janeiro de 2002).
Dois dias antes, TF1 havia oferecido as imagens acusadoras: “Essa fazenda seria um dos pontos de encontro belgas freqüentados por pedófilos [planos internos e externos da fazenda]. As crianças teriam sido violentadas e filmadas nessa parte da fazenda. Eis o proprietário, um comerciante de animais que não mora no local. Sua celebridade súbita não o agrada [imagens do proprietário ameaçando, apontando com o dedo a saída para a equipe de TF1]. Desagrada-o tanto que ele prefere acabar pôr fim à entrevista5“.
Trabalho negligente
Quase sempre posta diante dos casos políticos, a presunção de inocência não é respeitada nos casos dessa espécie
A produção de informações em fluxo contínuo torna menor a vigilância. O eventual emprego do condicional absolve bastante os jornalistas do dever de ir verificar o que dizem e escrevem. E além de tudo, a concorrência completa o trabalho negligente. Quando se chega a esse estágio, pode-se desinformar sem arcar com as conseqüências ao se fazer isso em companhia de outros. “Não há mais dúvida sobre o assassinato”, assim avalia TF1. “Há dois testemunhos sobre a cena, duas pessoas diferentes que não podiam comunicar-se entre si” (Jornal de 13 horas, 12 de janeiro de 2001). Contudo, a fazenda belga na qual haviam sido gravadas as cenas de pedofilia nunca existiu. Nem mesmo o suposto sex shop em Ostende no qual eram comercializados os vídeos dessas gravações.
Quase sempre posta diante dos casos políticos, a presunção de inocência não é respeitada nos casos dessa espécie. O nome ou as iniciais dos acusados, sua situação são expostos em praça pública. “Na cidade portuária de Ostende fora instalado o sex shop do pai de Daniel Legrand, que servia de fachada para a distribuição de vídeos de pornografia infantil realizados com seus cúmplices” (France Inter, 11 de janeiro de 2002). “Um dos principais suspeitos, Alain Marécaux, oficial de justiça em Samer, possui lá uma segunda casa” (Le Figaro, 14 de janeiro). “Outras seis pessoas foram presas em 16 de novembro – Alain M. oficial de justiça, e sua esposa Odile, Dominique W, padre secular, operário em Outreau, Pierre M., motorista de táxi, acusado de ter transportado as crianças até a Bélgica e os dois donos do sex shop de Ostende”. (Le Monde, 14 de janeiro). “Dominique Wiel, 64 anos, chamado Padre Do por seus paroquianos, um homem a quem ninguém exigiria confissão” (Le Parisien, 16 de janeiro).
O relato dessa crônica policial evidenciou um pouco mais certa visão parisiense e burguesa do Norte e das classes populares. Em 29 de abril de 2004, Le Nouvel Observateur dedica a primeira página às notícias que marcaram o Nord-Pas-de-Calais. O “olho” que apresenta o artigo é revelador: “Os seis grandes casos criminais que marcaram o Nord-Pas-de-Calais nos últimos cem anos, e especialmente o de Outreau (…) contam ao seu modo a história comum e cotidiana da região”. Dois anos antes uma redatora da mesma revista havia, de fato, notado uma visão peculiar do Norte popular: “Escuta-se tudo, sente-se tudo através de finas paredes que dão para o corredor. Aqui cozinha-se qualquer coisa ao som estridente de uma televisão. Ali, um casal briga violentamente. Mais alto, os decibéis de um som posto no máximo fazem tremer solos e tetos6“.
Preconceito de classe
A imprensa flerta alegremente com o adágio “classes trabalhadoras = classes perigosas”
A imprensa flerta alegremente com o adágio “classes trabalhadoras = classes perigosas” re-traduzido em outras equações que encadeiam, elo após elo, classes populares, desemprego, abrigos sociais insalubres, alcoolismo, sub-humanidade, pedófilos prostituindo seus filhos. “O modesto conjunto habitacional Tour de Renard, em Outreau, teria sido atingido pela maldição?” [pergunta-se, por exemplo, Le Figaro]. “Acredita-se que ele é, como outros conjuntos semelhantes no Nord-Pas-de-Calais e alhures, vítima do coquetel explosivo: desemprego, álcool, ociosidade, promiscuidade… O incesto, então, nunca está muito longe” (15 de janeiro de 2002).
Se algumas descrições evocam violências econômicas, elas não apresentam nem detalhes, nem origens, preferem naturalizar o essencial de suas conseqüências. “Seria preciso” [pergunta Le Point] “encontrar explicações sociológicas para esse absoluto horror? Evoca-se o desemprego endêmico, a miséria que atinge o Nord-Pas-de-Calais, uma das regiões com os primeiros lugares em mortalidade infantil, analfabetismo, alcoolismo. O conjunto habitacional de Renard é o bairro mais pobre de Outreau, onde as famílias monoparentais são 40%, o desemprego é 20%. O Nord-Pas-de-Calais é uma das regiões mais afetadas pelos casos de incesto e de pedofilia” (18 de janeiro de 2002). Um jornalista do Monde desvenda a seu modo o choque cultural de sua incursão a um HLM7 de Outreau: “Yann, 30 anos, se mantém ao lado de uma porta que acaba de derrubar a pontapés. Seus óculos quebrados se mantêm inteiros com um pedaço de fita adesiva. Seu hálito cheira álcool.” E também “sua jovem companheira, em prantos, cujo belo rosto vermelho torna-se feio pela falta de um dente incisivo” (14 de janeiro). Dez dias mais tarde, o mesmo autor encontra, nas proposições de um advogado, o fundamento de suas apreensões: “Tornou-se uma espécie de modo de vida dos conjuntos habitacionais. Delicia-se com uma cerveja tanto quanto com um menino”.
Em menos de dois meses (janeiro e fevereiro de 2002), o caso de Outreau foi editado, para falar em termos de mídia. Os jornalistas, dois anos depois, indignados com o encarceramento injustificado dos acusados, não viam na época nenhuma razão para criticar o juiz que prendeu os supostos pedófilos. Nenhuma contra-investigação veio denunciar a eventual injustiça que atingiu o oficial de justiça, a padeira e o padre operário. Nenhum “J? accuse” relativo ao destino deles. Em outros lugares, outras vítimas inocentes são abatidas. Um professor de Fresnes-sur-Marne (Seine-et-Marne) teve sua carreira interrompida por uma campanha histérica até que uma decisão judicial decidindo pela improcedência da acusação interveio. Dois meses antes da eleição presidencial francesa da primavera de 2002, uma campanha de televisão antipedófila, lançada por Ségolène Royale, então ministro da família, tomou o lugar do trabalho da mídia: “Ninguém poderá mais dizer: eu não sabia”. Além de tudo, Libération publica uma sondagem: “A pedofilia, assunto prioritário sobre a infância, inquieta 72% dos franceses” (18 de janeiro). Imaginemos então as reações da imprensa se, naquela época, o juiz Burgaud tivesse tido a menor intenção de liberar um dos acusados de Outreau. Dois anos depois, será mais fácil bradar sua indignação diante de um erro judiciário.
Virada espetacular
A jogo da informação funciona como um loto virtuoso: o toque da delação e depois impressão da compaixão
No dia 19 de maio de 2004, as retratações durante o processo da primeira acusadora, Miriam Badaoui, abrem o caminho para as confidências dos treze culpados, subitamente, inocentados. A mídia também soube explorar essa matéria. A postos, na saída do palácio de justiça de Saint-Omer, um exército de jornalistas só tinha que esticar o microfone ou a caneta para colher sua porção de testemunhos doloridos. Mínimo de trabalho, máximo rendimento para empresas que se preocupam, antes de tudo, com a produtividade.
De repente a imprensa deu uma virada tão espetacular quanto os acontecimentos que ela descreveu. Como Big Brother, ela apaga seus próprios vestígios dos anos anteriores. “As retratações de Myriam Badoui e de Aurélie Grénon transformaram treze pessoas, acusadas dos piores horrores, em vítimas da instituição judiciária”, exclama Le Parisien de 20 de maio de 2004, esquecendo seus títulos de choque dois anos antes: “O condomínio da vergonha” (11 de janeiro de 2002), ou “Uma cidade aviltada” (12 de janeiro). “Por que policiais e juízes encarregados do caso há três anos não se deram conta antes do processo que eles estavam no caminho errado?”, interpela o apresentador do jornal das 13 horas de France 2, em 19 de maio de 2004 – ainda que sua cadeia estivesse à frente das “revelações” mais manipuladoras em novembro de 2002. A mesma coisa, em outros lugares. Em 11 de janeiro de 2002, o Libération constatava: “Daniel L. pai, que parece ser a cabeça pensante dessa rede, ganhava duas vezes: a primeira com a prostituição das crianças, a segunda com a venda das fitas, provavelmente na Bélgica, em Ostende, onde tinha o sex shop”. Dois anos depois, o diretor da redação do mesmo jornal fustiga… “as práticas detestáveis da justiça”.
Final feliz. Legrand, a quem as mídias conferiram o papel de “pornocrata especializado em pedofilia8 ” tornou-se mártir. France 2 entra em seu apartamento poucas horas depois de sua liberação para filmar os emocionantes reencontros com o resto de sua família. Quase dois anos e meio antes, a mesma cadeia o filmava, em câmara lenta, chegando algemado ao palácio de justiça de Boulogne-sur-Mer. Assim que foram libertados da prisão, os antigos acusados são levados por televisões e por rádios. Sobre esse “produto”, a concorrência também é feroz: a padeira, o padre operário, a esposa do oficial de justiça.
A jogo da informação funciona como um loto constantemente virtuoso: o toque da delação e depois impressão da compaixão. Depois vem a trajetória da delação, depois impressão e comparação. Em prantos e desesperado, o motorista de táxi se encontra, com exclusividade, no jornal das 13 horas de TF1, em 28 de maio de 2004. A jornalista conhece sua função. Anuncia: “Ele nos concede suas primeiras palavras…”
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Com exceção do programa “Arrêt sur images” transmitido pela Cinquième, que dedicou muitas seqüências a esse assunto.
2 – Le Parisien, 10 de junho de 2004.
3 – O tra
Gilles Balbastre é jornalista e codiretor, com Yannick Kergoat, do documentário Les Nouveaux Chiens de Garde [Os Novos Cães de Guarda], (Jem produções, 2012).