O espetáculo Sr. Oculto e as pequenas crueldades cotidianas
Do livro à peça de teatro, O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, do escritor britânico Robert Louis Stevenson, se torna um espetáculo nos palcos da Bahia
Existem coisas na sociedade que, pela repetição e pelo egoísmo do dia a dia, acabam se tornando quase invisíveis, normalizadas. Enquanto buscamos o conforto em nossos próprios prazeres, muitas vezes ignoramos a fome, o frio e a sede que assolam pessoas tão comuns quanto nós. Os “cidadãos de bem” dormem tranquilos, como se as pequenas maldades que praticamos diariamente não fossem parte de um mesmo sistema de opressão. Deixar aquele prato sujo na praça de alimentação, justificando que estamos “mantendo o emprego da equipe de limpeza,” é um exemplo sutil, mas revelador, dessa postura egoísta. E assim vamos, sem nos questionar sobre as performances que adotamos no cotidiano, que reforçam a falta de solidariedade. Será que devemos apenas apontar as grandes maldades da humanidade, ou seria mais transformador enfrentar as pequenas crueldades que sustentam nossa identidade de indiferença?
O clássico O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, do escritor britânico Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, tornou-se uma das obras mais icônicas da literatura, explorando a luta entre o bem e o mal dentro de um único indivíduo. A narrativa conta a história do Dr. Jekyll, um respeitável médico que, por meio de uma poção, transforma-se no perverso Sr. Hyde, revelando um lado oculto e monstruoso. O livro toca em temas como a complexidade da identidade humana, a fragilidade da moral e o perigo de reprimir nossos impulsos mais sombrios.
Em tempos onde a identidade e os conflitos internos da humanidade são amplamente discutidos, a peça Sr. Oculto traz uma profunda reflexão sobre a nossa própria dualidade. A adaptação brasileira contemporânea do clássico O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, vai além de uma simples transposição para o palco.
Rodrigo Lelis, que se desdobra entre o médico Dr. Jekyll e o selvagem Sr. Hyde, proporciona uma interpretação visceral que transcende o palco. Já conhecido por seus papéis marcantes no cinema e na televisão, como em Meu Nome é Gal, realiza uma atuação que vai além de uma mera interpretação de dois personagens; ele nos convida a refletir sobre os monstros que nós, como indivíduos e sociedade, também nutrimos e escondemos. Sua performance vai além da simples atuação, incorporando elementos de malabarismo corporal e uma entrega vocal poderosa que mantém o público em suspense constante.
O texto adaptado por Mônica Santana vai direto ao ponto ao destacar as questões de gênero e masculinidade, temas extremamente relevantes na contemporaneidade. A escolha de Mônica de trazer essas nuances à história original é especialmente brilhante, permitindo uma reflexão mais ampla sobre como o poder e a violência estão intimamente ligados à figura do homem. Márcio Meirelles, à frente da direção, conduz a narrativa de forma que nos obriga a confrontar o que há de mais obscuro em nós mesmos. Ele completa aqui sua trilogia, que começou com Drácula e Frankenstein, mas em Sr. Oculto, sua investigação se aprofunda. A trilha sonora ao vivo de Ramon Gonçalves adiciona uma camada extra de tensão e faz o público entrar no clima e na energia do “terror” que a obra retrata. O maravilhoso cenário de Erick Saboya ajuda a materializar o universo sombrio e introspectivo em que a peça mergulha.
Sr. Oculto não é apenas uma história sobre um homem dividido entre o bem e o mal; é uma metáfora poderosa para a condição humana e as complexidades que nos habitam. Ao mesmo tempo que nos entretemos com o enredo, somos desafiados a olhar para dentro, para os monstros que evitamos confrontar no nosso cotidiano. A peça nos lembra que todos nós carregamos um “Sr. Oculto” dentro de nós, e é o enfrentamento com ele que define o que somos e o que podemos nos tornar.
A montagem, que marca a primeira temporada de uma peça teatral no Cineteatro 2 de Julho, um organismo público vinculado à TVE da Bahia e à Rádio Educadora, abrindo os trabalhos com chave de ouro.
Ficha Técnica:
Elenco: Rodrigo Lelis como Dr. Jekyll e Sr. Hyde
Encenação: Márcio Meirelles
Texto: Mônica Santana
Trilha Sonora, Composição e Execução ao Vivo: Ramon Gonçalves
Cenário: Erick Saboya
Figurino: Márcio Meirelles
Execução de Figurino: Áurea Leite Preparação
Corporal: Ariel Ribeiro
Assistente de Direção: Meniky Marla Roteiro
Captura de Imagens, Edição e Operação de Vídeo: Rafael Grillo
Desenho de Luz: Márcio Meirelles e Marcos Dedé
Montagem de Luz: Marcos Dedé e Joy Bispo
Operação de Luz: Marcos Dedé Desenho e Operação de Som: Thiago Vinicius Montagem de Cenário e Contrarregra: Joy Bispo Identidade Visual
Material Gráfico e Divulgação: Ramon Gonçalves
Assessoria de Imprensa: Jordan Dafné Social Mídia: Cris Baldoíno
Fotografias: Caio Lírio
Produção Executiva: Beatriz Albuquerque
Coordenação Geral e Direção de Produção: Vinicius Teixeira
Realização: Estúdio Arroyo
Produção: Ayó Criação
Herlon Miguel é bacharel em administração, produtor cultural e mestrando em gestão de tecnologia aplicada à educação pela Universidade do Estado da Bahia, destaca-se como criador da plataforma Ative a cidadania, dedicada à formação, capacitação e lançamento de autores e autoras negras. Além disso, é fundador da plataforma de comunicação Negrito LAB. Como escritor, ele também é coautor do livro Amar pode ser perigoso.