O estado da qualidade do ar no Brasil: lições e caminhos para o avanço
Mais de 30 anos após a aprovação da primeira legislação de controle da poluição atmosférica, país necessita de avanços urgentes e focados na saúde da população
Em meio à pandemia de Covid-19 um outro inimigo invisível também segue nos impedindo de respirar: a poluição atmosférica. O ar já pode ser considerado tóxico quando os gases ou partículas presentes na atmosfera causam efeitos danosos à saúde humana, à fauna e à flora, mesmo em baixas concentrações. Contudo, no Brasil, tanto em nível público quanto privado as devidas medidas para a solução deste problema não têm sido tomadas no tempo necessário. Este tempo perdido traz graves e claras consequências, dentre elas, em média uma morte a cada 10 minutos no Brasil em função da poluição do ar.
Neste cenário, com a finalidade de servir como fonte de informação para pautar discussões e colaborar com o avanço da política de gestão da qualidade do ar, o World Research Institute, WRI Brasil, com o apoio de 14 especialistas, publicou recentemente o relatório O Estado da Qualidade do Ar no Brasil visando sistematizar os conhecimentos acerca do tema em suas distintas dimensões, especialmente as fontes que poluem, os impactos na saúde e na economia e sua regulação pela legislação brasileira
A luta contra as distintas fontes de emissão
Em níveis globais, a maior fonte de emissão de poluentes no ar é a queima de combustíveis fósseis líquidos – gasolina, diesel, óleo combustível e sólidos – carvão e resíduos, decorrentes do setor de transporte, dos processos industriais e da queima de biomassa.
No caso específico das cidades, a principal fonte de emissões são os veículos, em especial ônibus e caminhões movidos à diesel, que representam 90% das emissões de gases poluentes e de dióxido de carbono. Além disso, o setor de transporte também pode emitir poluentes no ar por ressuspensão de material depositado nas vias (material particulado) oriundos do desgaste de pneus, freios e pavimentos.
Já nas regiões Centro-Oeste e Norte a principal fonte de poluentes atmosféricos é decorrente das queimadas e incêndios florestais, que chegam a atingir cerca de duas a três vezes o nível de concentração de material particulado encontrado na cidade de São Paulo em uma situação de alerta segundo dados da USP. Este alto nível de concentração tem sido um dos principais causadores de doenças respiratórias, principalmente no período de seca na Amazônia.
Mecanismos legais de controle
Outra dimensão fundamental abordada no estudo refere-se à forma como o estado brasileiro faz o controle das fontes de poluição e as políticas e ações criadas pelo marco normativo legal e infralegal do país e órgãos ambientais.
A atuação estatal sobre o problema da regulação remete à Lei das Contravenções Penais, de 1941. Tratava-se de medida voltada à resolução de disputas civis em razão de danos causados pela “emissão de fumaça, vapor ou gás que possa ofender ou molestar alguém”. A mudança qualitativa do tratamento da questão pela legislação de uma abordagem individual para uma coletiva, a ser regulado e prevenido pelo poder público, ocorreu somente na década de 1960.
Foi com a criação da Comissão Intermunicipal de Controle da Poluição das Águas e do Ar (CICPAA), em 1960, que cobria quatro municípios do Estado de São Paulo, que foram realizadas as primeiras medições oficiais da qualidade do ar no país. Em 1973, a Cetesb foi criada para gerir a poluição das águas e em 1975 substituiu a Comissão ao gerir toda a política de qualidade do ar.
Neste momento inicial de implementação de políticas de controle da poluição, nos anos 1980, um marco trágico com notoriedade global serviu de alerta sobre as graves consequências da poluição para a saúde e poluição. A situação do município de Cubatão, no litoral de São Paulo, cujos impactos foram desde a chuva ácida e os danos à flora e à fauna, até a ocorrência de um boom de recém-nascidos com malformações congênitas.
Com relação à dimensão regulatória, na esfera federal, com a promulgação da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, em 1981, foram estabelecidas as diretrizes gerais de suporte às principais medidas de gestão da qualidade do ar. No entanto, foi por meio de normas infralegais, mas com força cogente de lei, notadamente as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente, que houve uma tentativa explícita de construção de bases para uma política nacional de proteção da qualidade do ar.
O Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar (Pronar) foi criado pela Resolução Conama n°. 005/1989 com o objetivo de “permitir o desenvolvimento econômico e social do país de forma ambientalmente segura, pela limitação dos níveis de emissão de poluentes por fontes de poluição atmosféricas, com vistas à melhora da qualidade do ar, ao atendimento dos padrões estabelecidos e ao não comprometimento da qualidade do ar nas áreas consideradas não degradadas”.
Para cumprir esse objetivo, o Pronar estabeleceu como instrumentos: a definição de limites de níveis de emissão de poluentes por fontes de poluição atmosféricas, tais como indústrias, veículos motorizados, dentre outros; a adoção dos padrões de qualidade do ar; os elementos para uma política de zoneamento do território conforme classes de deterioração da qualidade do ar; o monitoramento da qualidade do ar; e o inventário nacional de emissões atmosféricas. Além disso, o Pronar incorporou o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), o mais longevo programa de controle de poluição da principal fonte de poluentes no meio urbano – os veículos motorizados – e que se encontra hoje sob ameaça.
O Pronar traz em si as sementes para uma política nacional de qualidade do ar e, a partir dele, diversas outras resoluções foram elaboradas pelo Conama com objetivo de colocar em pé uma efetiva gestão da qualidade do ar no Brasil. No entanto, este conjunto de normas possui um nível relevante de fragilidade jurídica, já que a base legal que o sustenta é infralegal. Assim, as mudanças nas forças que compõem os governos podem resultar em retrocessos expressivos em políticas baseadas em normas infralegais. Exemplo claro desta suscetibilidade foi a alteração promovida da composição do próprio Conama. Manobra realizada unilateralmente pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro por meio do Decreto n°. 9.806/2019.
A medida reduziu de aproximadamente 93 para 23 os conselheiros do órgão. Proporcionalmente, houve decréscimo de 82% do número de vagas destinadas à sociedade civil no plenário do órgão, e de exclusão total do quadro de votantes das Câmaras Técnicas que realizam o trabalho de elaboração das resoluções. Por outro lado, em proporção contrária, o decreto operou o aumento dos representantes do governo federal no órgão colegiado, que passou a deter 43,47% dos votos, enquanto o bloco governamental, resultado da soma dos planos federal, estadual e municipal, passou a deter 74%. O decreto foi atacado por uma ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Procuradoria Geral da República, tendo recebido voto favorável pela declaração de inconstitucionalidade pela Ministra Rosa Weber, relatora da ação no Supremo Tribunal Federal.
Outro exemplo da fragilidade derivada do caráter infralegal das normas que estruturam o arcabouço jurídico da gestão da qualidade do ar no Brasil se deu a partir da pandemia. A situação deflagrada pelo coronavírus que tomou o mundo em poucos meses e que já causou milhões de mortes, serviu como janela de oportunidade para as montadoras de veículos automotores que atuam no Brasil, sob o escudo de sua associação – Anfavea – solicitar a postergação do prazo de implementação da nova fase do Programa.
Felizmente, a ação conjunta de mais de 30 organizações da sociedade civil que atuam no tema da qualidade do ar, reunidas na rede denominada Coalizão Respirar, criaram a campanha Inimigo Invisível e vem conseguindo chamar atenção de gestores e membros do Ministério Público Federal para o significativo retrocesso ambiental e os danos irreparáveis, que se traduzem em mortes e danos ao meio ambiente, que podem advir caso este pedido seja acatado.
Outra deficiência que tem relação com a questão normativa, dentre outras causas, destacada na publicação do WRI Brasil diz respeito à implementação incompleta do Pronar. Evidencia-se uma grande lacuna entre o que é previsto no programa e o que existe em termos de gestão na União e nos estados brasileiros. Exemplo deste quadro foi revelado pelo estudo realizado pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade, que revelou que apenas 1,7% dos municípios brasileiros apresenta cobertura de monitoramento de qualidade do ar. Já o inventário nacional completo de poluentes, ferramenta estratégica para a gestão de qualidade do ar, nunca foi elaborado.
Diante deste cenário, no qual misturam-se causas relacionadas à fragilidade do marco regulatório de qualidade do ar e de deficiências relacionadas à capacidade institucional dos entes federados e seus respectivos órgãos ambientais responsáveis pela implementação do Pronar, a Coalizão Respirar também vem centrando esforços para viabilizar iniciativas legislativas e administrativas que fortaleçam a política pública de qualidade do ar. O grupo de organizações vêm atuando para aprovar o Projeto de Lei Federal n°. 10.521/2018, da Câmara Federal, que cria a Política Nacional de Qualidade do Ar, bem como o Projeto de Lei Estadual n°. 568/2020, que dispõe sobre a fixação de metas e prazos para o atingimento de melhores padrões de qualidade do ar no Estado de São Paulo. Além disso, encaminhou questionamento ao governo federal questionando as bases da retomada da economia pós-pandemia, ressaltando e sugerindo novas bases e diretrizes que deveriam nortear uma retomada ambientalmente sustentável e socialmente justa.
Impactos na saúde
A poluição atmosférica pode ocasionar impactos na saúde antes do nascimento e por toda a vida. De acordo com a OMS, esses efeitos podem ser apresentados em graus de intensidade variados pela seguinte ordem: efeitos sutis e subclínicos, função pulmonar afetada, sintomas e mudanças fisiológicas no sistema cardiovascular, uso de medicação, atividade restringida, visitas ao pronto-socorro e ao médico, admissões hospitalares e mortalidade prematura.
Após a abordagem da ONU e OMS em 2019, a poluição atmosférica tem sido um dos principais temas em discussão e atenção para a saúde humana e ao meio ambiente no mundo.
A publicação do relatório é um passo muito importante para o fortalecimento de pesquisas e aprofundamento de discussões sobre políticas relativas à questão da qualidade do ar no país, uma vez que, apresenta a temática da qualidade de ar e seus impactos na vida dos brasileiros, por meio de uma revisão de literatura bastante ampla.
Evangelina Vormittag é médica, doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina da USP e especialista em Gestão de Sustentabilidade pela Faculdade de Administração – FGV/SP. É idealizadora e diretora do Instituto Saúde e Sustentabilidade. Samirys S. R. Cirqueira é química pela UNESP, engenheira ambiental, mestre e doutora em Engenharia Química pela UFSCar e pós-doutoranda em Saúde Pública e Ambiental do IEA-USP. Hélio Wicher Neto é coordenador de advocacy do Instituto Saúde e Sustentabilidade, advogado e cientista social, especialista em Direito Urbanístico, Fundiário e Ambiental e mestre em Planejamento e Gestão do Território.