O Estado e o Direito como perpetuadores de injustiças
A dualidade brasileira entre propriedade privada e desefetivação de direitos coletivos não é recente e tampouco parece próxima de um fim. A cidade, este organismo vivo e estático, apesar de englobar realidades muito distintas, acaba sendo para poucos
Em Piracicaba, interior de São Paulo, um evento bizarro aconteceu no início do mês de maio. Simplesmente no meio de uma pandemia, uma crise sanitária e de saúde sem precedentes, uma juíza aprovou a reintegração de posse da gleba onde estava a comunidade Taquaral, no bairro Monte Líbano.
O terreno em questão era uma propriedade totalmente ociosa havia mais de quatro décadas e foi ocupada por cinquenta famílias desde janeiro. A sentença da juíza dizia que, em seu entendimento, o co-proprietário tinha direito indireto à posse daquele lugar, por se tratar de uma terra que passa há quase cem anos entre os membros de sua família, e, ao responder os apelos do Ministério Público para que a ação fosse adiada devido a pandemia, a magistrada alegou que a ocupação acabaria por gerar maior risco de contaminação na pandemia.
Este argumento pauta-se em dados totalmente não verificados, discute-se, por exemplo, a possibilidade de contágio é maior tendo um teto, ou em total desalento na rua? Uma moradia, por mais que precária, é melhor do que a vivência na rua. A pobreza de embasamento para tal afirmação da juíza demonstra o flagrante desinteresse do Direito e do Estado à vida da população.
Foi sob balas de borracha, bombas de gás e gás de pimenta que os ocupantes foram retirados pela polícia. Um aparato com cerca de 80 policiais militares,Guarda Municipal e o helicóptero Águia provendo suporte aéreo. Em pouco tempo, retroescavadeiras tomaram os lugares onde antes havia moradias.
Da noite para o dia, famílias foram lançadas ao completo desalento, com a grande interrogação sobre o que fazer dali para frente. O Direito e o Estado brasileiros, que deveriam tratar desigualmente os desiguais, preservando-lhes condições de existência, apenas corroboram seus papéis históricos de legitimador de disparidades e capachos dos interesses dominantes.
Em momento algum questionou-se, por exemplo, o motivo do direito indireto à propriedade de uma terra improdutiva há décadas poder solapar a função social que aquelas famílias ali estavam criando, ponto inclusive coberto no Plano Diretor de Piracicaba, que dispõe em seus Art. 5º e 7º, preveem que a terra servirá à função social, a fim de mitigar subutilização, ociosidade e não-utilização de glebas, terrenos e edifícios.
É neste mesmo Plano Diretor, em seu art. 13, que, em consonância com o Art. 30 da Constituição Federal, institui o poder do Executivo Municipal de promover regularização fundiária dos núcleos informais constituídos, a fim de se efetivar a função social da terra.
Aparatos para contestar esta decisão judicial abundam. O Estatuto das Cidades seu artigo 2º, em seu inciso VI aborda claramente que as ordenações de solo devem evitar a retenção especulativa do imóvel urbano que resulte em sua subutilização e a utilização inadequada de imóveis urbanos.
Ora, o que seria um terreno inutilizado por quatro décadas se não “subutilizado”? Qual outro propósito teria esta terra que não o de especular? Não seria então competência do Estado agir sobre este tema, uma vez que é de sua prerrogativa?
Milton Santos, em seu livro “A urbanização brasileira”, de 2003, mostra-se atualíssimo sobre este tema, isto é, sobre a leniência do poder público, ante a o capital puramente especulativo e o direito à cidade:
“O próprio poder público torna-se criador privilegiado de escassez, estimula, assim, a especulação e fomenta a produção de espaços vazios dentro das cidades; […] O poder público, entretanto, não age apenas de forma indireta. Ele também atua de forma direta na geração dos problemas urbanos, ainda que prometendo resolvê-los.”
O desfecho desta história é o de sempre, parte das famílias foi para um abrigo cedido por uma igreja, parte ficou no bairro, e a grande maioria mudou-se para outras ocupações, sem terem outras perspectivas.
A dualidade brasileira entre propriedade privada e desefetivação de direitos coletivos não é recente e tampouco parece próxima de um fim. A cidade, este organismo vivo e estático, apesar de englobar realidades muito distintas, acaba sendo para poucos.
Já agora fala-se sobre outra reintegração de posse por vir, a da Ocupação Renascer, bem maior, com quase quatrocentas pessoas. A tragédia anunciada se repete com a suposta ideia de legalidade.
Onde morar é um privilégio, ocupar é um direito.