O euro, o petróleo e os neoliberais
O que se poderia considerar “anormal”? O barril de óleo bruto a 35 dólares ou, como há dois anos, a dez dólares? E o que há de chocante no fato de uma energia não-renovável e altamente poluente ser cara? A aberração não seria o contrário?Ignacio Ramonet
Muito fraco? Muito forte? O debate sobre o peso do euro — que em meados de setembro perdeu mais de 27% do seu valor em relação ao dólar — revela e despedaça o minúsculo círculo de doutores em moeda européia. Os meios de comunicação transbordam de gemidos proferidos por “especialistas” ensandecidos por “um euro perigosamente sub-avaliado”. Essa foi também a atitude do Banco Central Europeu e de seu liberalíssimo presidente, Wim Duisenberg, que proclamou alto e em bom som sua “grande preocupação”.
E, no entanto, esse mesmo Duisenberg nos advertia, há menos de dois anos, contra “os riscos de um euro forte”. [1] Na época, um dólar valia 0,8425 de um euro, ou seja, mais ou menos o inverso do que é hoje… E o preço do barril de petróleo (que agora chegou perto dos 35 dólares) tinha caído a 10,72 dólares, seu preço mais baixo desde 1968… Todos os franceses, ou quase todos, xingavam, na época, o euro forte…
Uma “bênção escondida”
Ovacionado pela Assembléia Nacional, Valéry Giscard d’Estaing foi o primeiro a propor uma “reavaliação do dólar”. [2] Membros do conselho administrativo do Banco da França exigiam medidas “favoráveis a um euro mais fraco”. [3] O Partido Socialista e Lionel Jospin também advertiam que “o euro não devia ser super-avaliado em relação ao dólar”. [4] Doutos senhores nos explicavam, enfim, que “a queda do dólar é má notícia para as economias européias”. [5]
O mesmo coro de carpideiras retoma agora as lamentações, porém com relação ao “euro fraco”. Difamam, entre outros, o Prêmio Nobel de economia Robert Mundell, que define esta “desvalorização competitiva” como uma “bênção escondida”. Ou o chanceler alemão Gerhard Schröder, que teve a ousadia de admitir que a fraqueza do euro “beneficia as exportações e estimula o crescimento da Alemanha”. Ou ainda o chefe do governo italiano, Giuliano Amato, que reconheceu que o euro fraco “traz alegria às nossas empresas”.
“Efeitos benéficos”
O que, aliás, todos ficam constrangidos em reconhecer. A Bolsa de Paris não está próxima aos 7 mil pontos? O índice CAC 40 não atingiu alta de 16% em oito meses? As vinte maiores empresas francesas não divulgaram, em seis meses, um lucro líquido de 86,7 bilhões de francos — o equivalente ao lucro total do ano de 1999? Os bancos franceses não obtiveram lucros recordes (o CIC, mais 147%, o Crédito Lyonnais, mais 129%, o BNP/Paribas, mais 60,5%) no primeiro semestre de 2000? Os grupos petrolíferos não viram seus lucros explodirem?
Normalmente avessa a elogios à União Européia, a revista norte-americana Business Week, categórica com a atitude de inúmeros comentaristas do Velho Continente, acaba de admitir que o euro fraco é um êxito que traz “notáveis efeitos benéficos à Europa”. [6]
A ira contra os petrodólares
O que seria, afinal, “bom” para o euro em relação ao dólar? Isso é uma falsa questão, responde o professor Jean-Paul Fitoussi: “Um dos sólidos ensinamentos da teoria econômica, amplamente confirmado pelos fatos, diz que as taxas de câmbio só excepcionalmente estão num nível de equilíbrio; seu modo de adaptação normal é uma super-reação: em outras palavras, as taxas de câmbio estão ’normalmente’ ora demasiado altas, ora demasiado baixas.” [7] A dramatização excessiva da discussão em torno das taxas de câmbio é ainda menos razoável na medida em que quase 90% das transações comerciais entre países europeus é feita em moeda única. A União Européia é uma economia global e o euro permanece estável nesta região. Em termos de valor, apenas 10% dos bens consumidos na Europa são submetidos às variações da taxa de câmbio.
É claro que entre estes está o petróleo. Mas, também aí, o que se poderia considerar “anormal”? O barril de óleo bruto a 35 dólares ou, como há dois anos, a 10 dólares? E além do mais, em termos reais, o atual preço do óleo bruto é “um terço mais baixo que em 1990”. [8] O que há de chocante no fato de uma energia não-renovável e altamente poluente ser cara? A aberração não seria o contrário? Seria normal considerar que os Estados consumidores do hemisfério Norte obtenham mais recursos financeiros através dos impostos sobre os hidrocarburetos que os países do hemisfério Sul, quase sempre mais populosos e subdesenvolvidos? E que não empreguem esses recursos no desenvolvimento das energias eólica e solar, ambas renováveis, ou em busca de soluções alternativas ao transporte rodoviário, como o ferroviário? A fraqueza do euro seria, na realidade, uma forma cômoda de canalizar, mais uma vez, a ira contra os petrodólares: a Argélia, a Líbia, o
Iraque, o Irã, a Venezuela…
Liberalismo forte, cidadania fraca
Na verdade, forte ou fraco, e obedecendo ao poder discricionário dos ideólogos do mercado, o euro permitiu que a União Européia fosse submetida a um ajuste estrutural, impondo-lhe um espartilho neoliberal. E, junto com isso, o crepúsculo de uma certa concepção de Estado de bem-estar, a reforma do mercado de trabalho, a mudança da seguridade social, a diminuição dos impostos sobre as maiores fortunas, a redução dos setores públicos…
Indiferente à existência de 65 milhões de excluídos na UE, Christian Noyer, vice-presidente do Banco Central Europeu, abriu o jogo: “Um euro fraco por um período durável poderia levar as empresas a diminuírem seus esforços de produtividade, bem como os governos a frearem suas reformas estruturais.” [9] Que reformas estruturais? Theo Waigel, ex-ministro das Finanças alemão, as enumera: “Para inspirar confiança no valor do euro no exterior”, diz ele, é necessária “uma reforma fiscal radical, uma reforma profunda do Estado-, assim como uma política flexível do emprego.” [
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.