O fantasma do militarismo atiça o Japão
Enquanto a sociedade debate as homenagens prestadas a criminosos de guerra, políticos nipônicos brincam com fogo. Eles querem reabilitar o passado imperial do país e liquidar os artigos da Constituição que proíbem a guerraTetsuya Takahashi
Segundo as agendas de Tomohiko Tomita, ex-administrador do palácio imperial, publicadas em 20 de julho de 2006 [1], o imperador japonês Hirohito (ou Showa) interrompeu suas visitas ao santuário Yasukuni. Isso se deu quando os dirigentes do templo decidiram incluir, entre os homenageados na celebração, os quatorze criminosos de guerra considerados de classe A. Esses foram condenados à morte pelo Tribunal Militar Internacional do Extremo Oriente, no chamado “Processo de Tóquio”, em 1947. Sete pessoas, dentre as quais o primeiro-ministro da época (e também antigo general) Hideki Tojo, foram executadas. Outras sete morreram na prisão.
Dedicado ao xintoísmo, o santuário Yasukuni foi construído em 1869, sob a “prescrição sagrada” do imperador Meiji. Seu fim era glorificar as façanhas daqueles que morreram para derrubar o governo durante as guerras civis do fim do xogunato e do começo da Restauração [2]. Tais mortes contribuíram para a construção do novo Estado imperial, ou seja, o poder de Meiji. Em seguida, esse santuário, o único ligado ao exército, celebraria todos os militares ou auxiliares militares do ex-exército japonês mortos em guerras no exterior, somando cerca de 2,46 milhões de “almas heróicas”. O período estende-se da primeira expedição militar do Japão moderno ao estrangeiro (a expedição de Taiwan, em 1874) e passa pela guerra sino-japonesa (1894 a 1895), a guerra russo-japonesa (1904 a 1905), a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), o Incidente da Manchúria (1931), a Guerra Total entre a China e o Japão (1937 a 1945), até a Guerra do Pacífico (1941 a 1945) e a derrota.
Na época do “Grande Japão” colonial, (ler, nesta edição, “A construção do império nipônico” o imperador era ao mesmo tempo o detentor da soberania, o chefe religioso e o comandante do exército. Os japoneses e os habitantes das colônias eram todos considerados servos. A “moral nacional” consistia, “em tempos de crise nacional, dedicar-se ao imperador e ao Estado em detrimento de sua própria vida”. Os militares mortos em combate tornavam-se indivíduos exemplares para a nação durante suas “guerras santas”. E o santuário Yasukuni tinha a missão de, em qualquer circustância, elevar a moral das tropas e realizar uma mobilização espiritual do conjunto da nação para a guerra.
Após a derrota, ele foi considerado “símbolo do militarismo japonês”, “santuário da guerra” ou mesmo “santuário das invasões”, o que levou à sua neutralização. Em dezembro de 1945, depois do decreto contra o xintoísmo promulgado pelo quartel-general das forças aliadas, ele foi separado do Estado. Gerido por uma associação religiosa, depende do poder privado como as igrejas católicas ou os templos budistas, seguindo o princípio da separação entre política e religião, instituído na Constituição promulgada em 1946. Essa situação ainda perdura.
Atitude ambígua diante dos crimes de guerra
Desde a sua nomeação, em 2001, até a sua saída, em 2006, o primeiro-ministro Junichiro Koizumi visitou o templo todos os anos, sempre em 15 de agosto – dia de derrota de Tóquio, da vitória da China na guerra contra o Japão e da liberação, pela Coréia, da dominação colonial. Yasukuni tornou-se o problema diplomático mais importante entre Tóquio, de um lado, e Pequim e Seul, de outro. Rejeitando qualquer crítica, Koizumi construiu para si a imagem de um “dirigente que defende sempre a posição do Japão, sem jamais se curvar diante das críticas estrangeiras”.
Muitos políticos e jornalistas perguntam-se se não seria possível retirar os criminosos de guerra “classe A” do santuário. Eles têm usado as agendas do ex-administrador Tomita para consolidar sua posição, explicando que “mesmo que o imperador Hirohito tenha se recusado a visitar o templo, por causa do culto a esses criminosos de guerra, o primeiro-ministro deveria também interrompê-las”. No entanto, as agendas de Tomita ocultam vários pontos da história.
É evidente que os cultos no santuário de Yasukuni e as visitas oficiais representam atos que negam a responsabilidade japonesa sobre a guerra. Claro que, dentre os primeiros-ministros que o visitaram depois da guerra, nenhum negou abertamente essa responsabilidade. Em nome do governo japonês, o próprio Koizumi reafirmou a validade da declaração de 1995 do primeiro ministro Murayama Tomiichi. Esse teria expressado seu “sentimento de sincero arrependimento e profundas desculpas pelas penas e enormes danos que [o Japão] infligiu a seus vizinhos num passado ainda recente ao longo da dominação colonial e das invasões, seguindo uma política errônea”.
Isto não impede que os dirigentes do santuário Yasukuni expliquem que se tratou de uma “guerra por defesa e sobrevivência” do Japão, a fim de salvar a Ásia da dominação colonial ocidental. Por conseqüência, o conjunto dos “criminosos de guerra”, sejam eles de classe A, B ou C, seriam “falsamente acusados”. Eles teriam recebido esse qualificativo injusto depois de um julgamento unilateral pelos países vencedores.
Uma polêmica que esconde o principal
O debate seria consideravelmente reduzido caso se inferisse que é apenas a presença dos criminosos de guerra de classe A na celebração comum [3] do santuário a causa do problema. Bastaria então retirá-los para que todos os problemas desaparecessem.
Na verdade, o conceito de criminosos de guerra de classe A permitiu julgar os dirigentes japoneses desde o Incidente da Manchúria, em 1931 (e até mesmo antes, em sua preparação, em 1928) até a guerra do Pacífico. Isso significa que o período julgado vai de janeiro de 1928 a agosto de 1945. Em outras palavras, a história anterior à agressão japonesa contra a Ásia, para constituir seu Império com várias colônias, dentre as quais a Coréia e Taiwan, não foi questionada.
É preciso dizer que os países que julgaram o Japão no imediato pós-guerra sofriam a dominação colonial dos Estados Unidos, Reino Unido, Holanda e França. Esses não teriam nem vontade, nem capacidade, de julgar a responsabilidade japonesa sobre a questão da dominação colonial (leia, nessa edição, “Japão: espelho do Ocidente”.
Todos os mortos em combate do exército japonês durante essas guerras coloniais são celebrados no santuário Yasukuni desde a Expedição de Taiwan de 1874. Nessa ilha, a dominação colonial apoiou-se, no princípio, sobre a repressão militar dos taiwaneses de origem chinesa, que haviam desencadeado levantes armados contra os ocupantes. As vítimas seguintes foram as etnias aborígenes da ilha. A Coréia sofreu ataques militares desde 1876, e a sua rebelião foi igualmente combatida. Os militares japoneses, assim como todos os que morreram em combate durante aquele período, tornaram-se divindades no santuário de Yasukuni. Por meio de sua glorificação, ao lado dos criminosos de guerra de classe A, continua-se a renegar a dominação colonial nipônica.
A criação da potência justifica guerras e mortes?
Isto não diz respeito apenas aos revisionistas de extrema direita mas também a “intelectuais progressistas”, que, de qualquer maneira, reconhecem a responsabilidade dos criminosos de guerra de classe A. Na realidade, segundo eles, a era Meiji permitiu ao Japão igualar-se às potências ocidentais e constituiu uma vitória considerável. Apenas depois, a partir dos anos 1920, o Japão teria se desviado. Ou ainda: até a época do conflito sino-japonês e da guerra russo-japonesa. Ou seja, até o começo do século XX, o exército japonês era são; ele teria degenerado apenas a partir da agressão contra a China.
Ao apresentar as agendas de Tomita, a mídia colocou a tônica no fato de que “o imperador Showa deixou de visitar o santuário Yasukuni por lhe ser desagradável saber que os criminosos de guerra de classe A eram celebrados ali”. De repente, apenas esses parecem culpados, e a responsabilidade do imperador se esvai. Assim como durante o Processo de Tóquio, ao longo da qual o imperador Hiroito não foi interrogado, mesmo sendo o dirigente supremo do Japão e comandante do exército. Ele pôde continuar no cargo depois da guerra, sob o título de “símbolo do Japão e da unidade na nação japonesa” (artigo 1o. da Constituição). Foi usado pelos Estados Unidos por medo de que o Japão se tornasse comunista. A responsabilidade do imperador, antes dissimulada e negada, foi mais uma vez ocultada do episódio das visitas ao santuário.
As distorções não param por aí. O santuário Yasukuni muda a própria história dos combatentes. Ele transforma os mortos ensangüentados e miseráveis dos campos de batalhas em mortos sublimes e heróicos. Essa falsificação não leva em conta o caso dos militares originários de colônias, de onde vinham mais de vinte mil coreanos (e um número quase igual de taiwaneses), mortos em combate – no total, cerca de cinqüenta mil mortos. Na verdade, no contexto de sua política de “imperialização”, ou seja, de assimilação, o Japão exigia dos coreanos e dos taiwaneses que “servissem e morressem pelo imperador e pelo Estado”. Muitos deles foram mobilizados de maneira autoritária. Mesmo entre os homens que serviram como voluntários, a motivação fundamental era salvar-se da segregação étnica — o que não significa uma interiorização da fé xintoísta.
Os colonizados relembram os crimes de guerra
Em 1978, pela primeira vez, os parentes de um morto de Taiwan pediram que seu nome fosse retirado das listas da celebração comum. Em seguida, famílias coreanas fizeram o mesmo, o que acabou acarretando em processos. A celebração do morto, explicam as famílias, “no seio desse símbolo do militarismo do povo agressor, ao lado dos agressores que nos invadiram e dominaram ao longo da colonização, constitui uma ignomínia completamente intolerável”. Até agora, os dirigentes do santuário recusaram-se a responder positivamente a essa argumentação: “Se eles eram japoneses na hora de sua morte, é impossível deixarem de ser depois de morrerem” [4].
Além disso, é preciso lembrar o caso dos mortos civis da batalha de Okinawa, na primavera de 1945. Reino autônomo dos Ryukyu, situado entre o Japão e a China, Okinawa foi destruída pelo governo japonês em 1879, marcando o primeiro período da colonização japonesa moderna. Na fase final da guerra do Pacífico, o exército japonês convocou civis não-combatentes, em nome de uma pretensa “unidade entre o povo e o exército”. A trágica batalha de Okinawa fez 100 mil mortos entre os civis. Foram mortos como espiões, ou vítimas de “suicídios coletivos” provocados pelos militares. Uma grande parte deles são celebrados no santuário Yasukuni [5]. Assim, de vítimas das guerras do exército japonês eles passaram a colaboradores desse mesmo exército.
Por fim, dos 2,46 milhões de mortos celebrados (2 milhões só da Guerra do Pacífico), quase 60% deles não foram mortos em combates. Morreram de fome. Foi o caso, por exemplo, da maioria dos soldados enviados principalmente para a Nova Guiné – falecidos depois de terem esgotado seus estoques de mantimentos, perdidos no meio da floresta equatorial, condenados a apodrecer por ali mesmo.
As agendas de Tomita foram utilizadas para interrromper as visitas oficiais ao santuário Yasukuni. No entanto, a médio e longo prazo, há o risco de elas terem um efeito inverso. Alguns políticos influentes, a começar pelo ex-ministro das Relações Exteriores, Taro Aso, pediram a nacionalização do santuário, a fim de retomar as visitas imperiais. Essa proposta já foi apresentada pelo Partido Liberal Democrata [PLD, no poder] com um “projeto de lei pelo patrocínio estatal do santuário Yasukuni” (apresentado ao Legislativo sucessivamente em 1968, 1970 e 1973). A oposiçao derrotou-o na época, invocando principalmente “o risco de um retorno ao militarismo”.
Santuário nacionalizado: símbolo da nova ambição militar
Mais de trinta anos mais tarde, os políticos influentes do PLD sustentam que, “a fim de retirar os criminosos de guerra de classe A por decisão do Estado, depois de obter o consentimento da China e da Coréia do Sul, e enfim, de retomar as visitas do primeiro-ministro e, sobretudo, do imperador, a única via possível consiste em nacionalizar o santuário Yasukuni”.
Isto está inscrito no projeto da nova Constituição, que revisa o artigo 9 do texto atual [que proíbe a guerra] e afirma claramente a existência de um “exército de defesa”. Em outras palavras, seria suspensa a proibição de uso da força armada, “a fim de manter a paz no mundo”. O atual primeiro-ministro Shinzo Abe expressou, claramente, seu desejo de se dedicar a essa revisão constitucional durante seu mandato. Após o envio de tropas terrestres de autodefesa ao Iraque, houve um debate interno dentro dessa organização para saber se seria possível ou não celebrar eventuais mortos no santuário Yasukuni.