O fantástico boom indiano
Depois de Tagore, Narayan e Raja Rao, hoje considerados clássicos, sempre houve escritores indianos nos catálogos dos editores de língua inglesa. Mas, nos dois últimos anos, houve um autêntico boom. Quais seriam as razões desse sucesso?Pierre Lepape
Passemos rapidamente pelo pior. Pelo romance indiano produzido inteiramente a partir dos cânones estéticos e comerciais da indústria editorial ocidental. A Índia, mais uma vez, é concebida como um imenso reservatório de imagens exóticas e de clichês culturais que têm que ser temperados emocionalmente, segundo as receitas já testadas do consumo de massa. Sob o risco de contestar um modelo colonial jogado no limbo do passado. O grande sucesso do gênero foi alcançado pela enorme “saga” de Vikram Seth, Un garçon convenable1. Uma interminável história de quatro famílias na Índia de 1950, onde se encontram todos os ingredientes de uma “indianidade” conforme aos fantasmas e aos preconceitos da mentalidade pós-colonial.
Será por acaso que, atualmente, na lista dos dez romances mais vendidos na França, se encontra Noces indiennes2, de Sharon Maas, um típico “livro de férias” como se produzem, na música, “canções de férias” 3? Uma operação comercial de envergadura também foi tentada para lançar o primeiro romance de um jovem jornalista anglo-kashmiri, Hari Kunzru, recentemente apresentado pela imprensa britânica como “a ready-made literary star”. The Impressionist conta, em cinemascope e em cores, as aventuras de Razdan, filho de uma rica indiana que quebra a fidelidade conjugal e de um aventureiro inglês que está em busca de sua identidade de “mixed race” na Inglaterra de hoje4.
Um boom de produção feminina
The Impressionist conta as aventuras do filho de uma rica indiana, adúltera, e de um aventureiro inglês em busca de sua identidade de mixed race
O tema da mestiçagem é onipresente nos melhores romances indianos. Encontra-se, evidentemente, em Anita Desaï, nascida em 1937, em Mussorie, aos pés do Himalaia, filha de mãe alemã e pai bengali. E também nos romances de Ruth Prawer Jhabvala, de origem polonesa, casada com um indiano e que, atualmente, vive nos Estados Unidos. Mas, para Desaï, Jhabvala, ou ainda Bharati Mukherjee, nascida em Calcutá e professora na Universidade de Berkeley, o tema da mistura se desdobra e se amplia para englobar, em estilo intimista (Desaï), como comédia de costumes (Jhabvala) ou como amarga gozação (Mukherjee), toda a temática – individual e coletiva – do conflito cultural, da partilha das Índias, do exílio, da divisão sexual, da fuga, da recusa do outro, da destruição e do renascimento.
Acabamos de citar três romancistas mulheres, o que parece sugerir que o “boom indiano”, diferentemente do latino-americano, de conotações machistas, é marcado, em quantidade como em qualidade, pela produção romanesca feminina. Aos três nomes citados, seria necessário acrescentar também Nayantara Sahgal, Kamala Markanday e, em particular, Shauna Singh Baldwin, nascida em Montreal, criada na Índia, vivendo nos Estados Unidos e premiada por seu livro La Mémoire du corps, com o Commonwelth Best Book Award. E ainda a revelação desses últimos anos, Arundhati Roy.
Bush e Bin Laden, os “dois gêmeos”
Diferentemente da maioria de suas co-irmãs, e apesar do sucesso internacional de seu primeiro romance, Le Dieu des Petits Riens5, em 1998, Arundhati Roy optou por permanecer em Nova Déli para aí realizar sua luta literária e política. Realmente se trata de uma luta, mesmo que Le Dieu des Petits Riens, cujo espaço é Kerala com sua versão local do comunismo, tenha seduzido sobretudo pela virtuosidade narrativa – sempre existe um certo prazer em superar os ingleses no manejo de sua própria língua.
O tema da mestiçagem é onipresente nos melhores romances indianos. Encontra-se em Anita Desaï, em Ruth Prawer Jhabvala, ou ainda em Bharati Mukherjee
Prova disso são os dois ensaios políticos publicados por Arundhati Roy sob o título Le Coût de la vie6. O primeiro é uma pesquisa minuciosa, tão atenta quanto emocionante, sobre a política indiana das grandes barragens e a brutal desapropriação dos habitantes dos vilarejos que têm a infelicidade de se achar nas regiões que a burocracia central definiu para serem alagadas. O segundo é um panfleto, tão enérgico quanto desesperado, sobre a Índia nuclear e sobre o desastre, espiritual e material, que a opção atômica significa. Mais recentemente, depois dos atentados do dia 11 de setembro de 2001, Arundhati Roy publicou, sob o título de Ben Laden, secret de famille de l?Amérique, um texto curto em que põe em cena os “dois gêmeos”, George Bush e Bin Laden, que “se fundem um no outro e se tornam, pouco a pouco, intercambiáveis. O que se deve ter em mente é que nenhum termo da alternativa significa uma solução aceitável para substituir o outro7“.
Uma história e um país “de ficção”
Nascido em Bombaim, em 1947, Salman Rushdie foi o primeiro escritor não-britânico a receber o Booker Prize, o prêmio literário de maior prestígio da Grã-Bretanha. Era 1981, o romance se chamava Les Enfants de Minuit8. Em estilo de farsa monstruosa, emprestando seus modelos explícitos – Rabelais, Cervantes, Sterne, Grass – da tradição literária ocidental, Rushdie escreveu o romance, necessariamente fragmentado, disforme, eternamente fracassado, da história da Índia e do Paquistão depois da trágica divisão de 1947 e da independência. Faz a radiografia do fim de um sonho – o da unidade da velha civilização indiana enfim entregue à independência – que se tornou pesadelo e massacres.
Salman Rushdie, nascido numa família muçulmana da Índia e perseguida no Paquistão pela divisão de 1947, não teve outra saída senão a de criar para si uma Índia interior, simbólica, unificada e dilacerada: “Minha história e meu país de ficção existem mas, como eu, se situam ligeiramente enviesados em relação à realidade. Acho essa descentralização necessária mas é possível, é claro, discutir sua validade. Tenho a impressão, entretanto, de que não falo apenas do Paquistão.
Tagore, o poeta-profeta
O “boom indiano”, diferentemente do latino-americano, de conotações machistas, é marcado, em quantidade e em qualidade, pela produção literária feminina
Rushdie foi sempre lúcido sobre as razões de sua consagração britânica. Antes mesmo que a fatwah lançada pelas autoridades islâmicas iranianas após a publicação dos Versets sataniques9 (Versos Satânicos) o transformasse no símbolo perseguido da liberdade de expressão universal, ele se explicou sobre a ambigüidade de sua situação de escritor pós-colonial. Desde o século XVII, a Inglaterra exportou para a Índia, com seus costumes, seus ritos e seus jogos, sua língua, concebida, ao mesmo tempo, como fator de unificação do subcontinente e como meio de acesso ao universal e à modernidade. Mais ainda, os indianistas britânicos, com freqüência muito eruditos, sempre apaixonados, revelaram aos intelectuais indianos, em inglês, a extensão, a profundidade e a extraordinária riqueza de uma civilização sobre a qual os indianos possuíam apenas conhecimentos locais, fragmentados e dirigidos. A língua inglesa apareceu, simultaneamente, como veículo de uma unidade reencontrada e como meio de fazer as culturas indianas entrarem no grande concerto universal da civilização.
O exemplo mais espetacular desse descentramento se deu no início do século XX com o sucesso internacional de Rabindranath Tagore, poeta-profeta consagrado, em 1913, pelo prêmio Nobel de Literatura. Nascido em 1861, em Calcutá, fortemente impregnado pela visão panteísta e pela mística do amor e do belo dos antigos Upanishad, fundador, em 1901, da escola de Visva-Bharati, onde indianos ensinavam a civilização indiana a indianos, Tagore publicou em 1910, em língua bengali, Gitanjali, uma centena de curtos poemas sobre os quais também compõe melodias. Um trabalho de reescrita que foi minuciosamente adaptado ao auditório britânico, que Tagore desejava atingir. Adaptando mais do que traduzindo, simplificando a extrema complexidade da versificação tradicional, tocando a rigorosíssima sensibilidade da Inglaterra protestante.
O sacrifício da própria língua
Diferentemente da maioria de suas co-irmãs, Arundhati Roy optou por permanecer em Nova Déli para aí realizar sua luta literária e política
O sucesso foi imediato e imenso. A editora MacMillan, em Londres, e sua filial, em Nova York, vendem Tagore como o símbolo de uma renovação espiritual passível de deter o desmoronamento dos valores ocidentais minados pelo materialismo e pelo cientificismo. Na França, André Gide, a partir da tradução inglesa, evidentemente, traduz a coletânea de Tagore com o título de L?Offrande lyrique e lhe garante uma divulgação que a guerra de 1914 não iria interromper. O talento extraordinário de Tagore não tem nada a ver com isso: sua consagração universal, isto é, ocidental, baseia-se num mal-entendido, numa exploração ideológica e num empobrecimento de seu pensamento e de sua poesia. Prova disso é o silêncio que cercou por muito tempo, e ainda cerca, a maior parte de sua obra abundante em língua bengali e a opção da maioria dos editores franceses por traduzir Tagore a partir da versão inglesa ao invés da versão original10.
Militante anticolonialista, próximo de Gandhi, analista freqüentemente vigoroso de uma sociedade indiana entregue à suficiência do modelo capitalista britânico (cf. o admirável Rakta-karabî, Red Oleanders, publicado em Londres, em 1925, ou o belíssimo romance A quatre voix11, prefaciado por Romain Rolland), Tagore deveria aceitar o sacrifício de sua própria língua – e, portanto, o de uma parte essencial da cultura que expressa – para fazer com que essa mesma cultura chegasse ao conhecimento de todos.
Demônios antigos e sanguinários
A descolonização e a independência, conquistadas em condições dramáticas, não mudaram fundamentalmente esse quadro. Como escreve Salman Rushdie, “os conquistadores de pele rosada voltaram para suas casas rastejando; os boxwallahs, os mensahibs e os bwanas deixaram seus parlamentos, suas escolas, suas grandes estradas e as regras do jogo de cricket”. Deixaram muito mais: a língua inglesa, considerada como idioma literário dominante, e Londres, aceita, no próprio interior do campo literário indiano, como a única instância sólida de consagração internacional.
Adaptando mais do que traduzindo, simplificando a complexidade dos versos tradicionais, Tagore tocou a rigorosa sensibilidade da Inglaterra protestante
O próprio Rushdie, apesar da força de sua verve crítica, não escapa a essa lógica. Em Versos Satânicos, um dos heróis – Saladin Chamcha – é muito parecido com ele. É, igualmente, um imigrante indiano em Londres porque acha irrespirável o clima político, social e intelectual de seu país, que perdeu as fabulosas bases de sua antiga civilização sem, entretanto, deixar de ser atormentado por seus antigos e sanguinários demônios. Porém, para justificar a opção por Londres como cidade preferida, ele limita-se a opor a Inglaterra, enquanto única alternativa, à outra base literária de língua inglesa, os Estados Unidos.
A nova geração “norte-americana”
O sarcasmo não disfarça a mágoa: “Entre todas as coisas do espírito, ele amara, acima de tudo, a cultura protéica e inesgotável dos povos de língua inglesa; dissera […] que Otelo, ?essa peça única?, valia toda a produção de qualquer outro dramaturgo, em qualquer outra língua […]. Dera seu amor a esta cidade, Londres, preferindo-a à cidade onde havia nascido ou a qualquer outra; caminhara lentamente para ela, furtivamente, com uma alegria sempre maior, imobilizando-se como uma estátua quando ela olhava nessa direção, sonhando ser aquele que a possuiria e assim, em certo sentido, tornar-se ela, como no jogo de um, dois, três, sol, a criança que toca quem nele está, assume a identidade desejada. […] Será que os Estados Unidos, com sua comissão McCarthy, teriam permitido que Ho Chi Minh cozinhasse em seus hotéis? O que diria a lei McCarran-Walter, contra os comunistas, a um Karl Marx de hoje, parado à sua porta, com a barba espessa e emaranhada, esperando atravessar a fronteira? Oh Londres! Como seria estúpida a alma que não preferisse Londres com seus esplendores fora de moda e suas dúvidas novas às certezas violentas dessa Roma transatlântica.”
Mas Londres, enquanto centro de consagração internacional dos escritores indianos, é cada vez mais contestada pelos Estados Unidos. É aqui, e não na mítica capital do Commonwealth, que publicam e vivem atualmente alguns dos autores mais famosos da “nova geração indiana”. Amitav Gosh, nascido em Calcutá, em 1956, mora em Nova York; Manil Sauri, nascido em Bombaim, em 1960, é professor na Universidade de Maryland; Akhil Sharma, nascido em Déli, em 1971, diplomado por Harvard, vive em Manhattan.
O resumo das literaturas do mundo
Como diz Rushdie, “os conquistadores voltaram para suas casas (…);os bwanas deixaram seus parlamentos, suas escolas e as regras do jogo de cricket”
Alguns escritores, como V. S. Naipaul, romancista de Trinidad e de origem indiana, levaram até o fim, até a assimilação aos valores dos “pele rosada”, a lógica ocidental da dominação. Lançando sobre ex-povos colonizados o mesmo olhar, furioso, magistral e moralizante dos ex-colonizadores, V. S. Naipaul mereceu o prêmio Nobel que lhe foi atribuído em 2001.
Em sua diversidade, o novo romance indiano apresenta a peculiaridade fascinante de ser, a um só tempo, microcósmico e macrocósmico: de ser o espelho que concentra todas as divisões, as particularidades e os nacionalismos provincianos e de ser, simultaneamente, uma espécie de resumo vivo de todas as literaturas do mundo – as do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, de ontem e de hoje.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ler, de Vikram Seth, A Suitable Boy. “Un garçon convenable”, tradução francesa de Françoise Adelstein, ed. Grasset, 1995. Edição de bolso, 2 volumes, 1997.
2 – Ed. Flammarion, Paris, 2002.
3 – O mesmo ocorre no cinema, com o lançamento espetacular, neste verão, na França, da superprodução indiana Lagaan, de Ashutosh Gowariker, aguardando-se, para o outono, o lançamento de Devdas, de Sanjay Leela Bhansali, apresentado na mostra não-competitiva Festival de Cannes de maio passado.
4 – Hari Kunzru: The Impressionist, dirigido por Hamish Hamilton. A tradução francesa está anunciada para a primavera de 2003, pela editora Plon.
5 – Ed. Gallimard, coleção Folio, 1998.
6 – Ed. Gallimard, coleção Arcades, 1999.
7 – Publicado em Le Monde de 14-15 de outubro de 2001, editado em volume pela Gallimard, tradução de Frédéric Maurin.
8 – Midnight?s Children, tradução francesa das edições Stock, 1986.
9 – Satanic Verses, 1988. Tradução francesa de A. Nasier (o pseudônimo de Rabelais