O fascínio mortal do dólar
A dolarização surgiu, na Argentina, como uma resposta à calamidade da hiperinflação. Por meio da “lei da conversibilidade”, o presidente Carlos Menem e seu ministro das Finanças, Domingo Cavallo, instauraram a paridade entre o peso e o dólarMichel Husson
A crise argentina desenvolveu-se em torno da paridade fixa entre o peso e o dólar. Criada em 1991, essa paridade acabou cedendo – um resultado, por sinal, previsível -, porém essa não foi a única conseqüência de uma política equivocada. As pressões monetárias apenas manifestam as contradições externas (qual a sua inserção no mercado mundial?) e internas (qual a distribuição da riqueza produzida?) do modelo neoliberal. Para compreendê-lo, é necessário voltar ao final da década de 80. Foi nesse momento que ocorreu uma importante reviravolta na política monetária dos três grandes países da América Latina – Brasil, México e Argentina.
Logo após a crise mexicana de 1982, durante a qual o ministro das Finanças, Jesus Silva, decretou uma moratória sobre o pagamento dos juros da dívida antes de arrancar a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e de Washington para evitar a suspensão do pagamento dessa dívida, os primeiros planos de ajuste estrutural recomendavam, todos eles, uma desvalorização. Sua lógica consistia em orientar as economias para a busca sistemática das divisas necessárias para pagar a dívida. Seria necessário, pois, enxugar o orçamento para eliminar a “concorrência” da dívida pública (governo central), priorizando a dívida externa. Em seguida, seria necessário reduzir a demanda interna, privilegiando as exportações.
Hiperinflação e desagregação social
Essas políticas de desvalorização competitiva permitem, na realidade, o crescimento das exportações, mas com uma contrapartida quase imediata – a inflação: se a desvalorização baixa os preços dos produtos exportados, eleva, por efeito simétrico, os dos importados, cujos preços passam a influir na alta de todos os bens e serviços. É possível ver aqui, intercalado, um mecanismo que não é puramente econômico: na maioria dos casos, os importadores repercutem os aumentos induzidos pela queda da moeda para captar – de uma forma que só pode ser qualificada de especulativa – uma fração adicional de lucros.
n ten
A ordem era enxugar o orçamento, eliminar a “concorrência” da dívida pública e priorizar a dívida externa. Em seguida, se privilegiavam as exportações
A inflação leva a uma alta brutal das taxas de juros; os juros da dívida pública, por sua vez, começam a inchar. Mesmo que o orçamento (antes do pagamento dos juros) consiga equilibrar-se – e até ter superávit – o déficit público se aprofunda. É preciso, portanto, que o Estado se endivide para pagar os juros, que a inflação inche. A partir de então, diminuem os recursos para o pagamento da dívida externa. Rapidamente, esse mecanismo assume proporções de uma derrapagem fora de controle: a inflação provoca uma perda substantiva da moeda, que vem, por sua vez, alimentar a espiral infernal. O fenômeno da hiperinflação ocorreu na maioria dos países, alcançando um máximo, absurdo, de 4.900% em 1989, na Argentina, onde provoca uma desagregação social. No final de maio desse ano, ocorreram levantes e pilhagens – cuja repressão provocou 14 mortes – em Rosario, segunda cidade do país.
Compromisso com o capital estrangeiro
A paridade entre o peso e o dólar surgiu como uma resposta a esse desastre. A reviravolta começou no México, em 1987, depois viria o Brasil com o Plano Real, em 1994, e foi na Argentina do presidente Carlos Menem e do ministro das Finanças, Domingo Cavallo, que, por meio da “lei da conversibilidade”, se instaurou a paridade entre o peso e o dólar.
A lembrança desses anos de “dissolução monetária” forneceria um elemento-chave para os argumentos peronistas. Como Menem pôs um fim ao pesadelo da hiperinflação, tornou-se uma referência, apesar do perfume de corrupção que emana dos últimos anos de seu mandato1
. É isso que permite compreender porque a coalizão de centro-esquerda que chegou ao poder em 1999 não quis correr o risco de questionar o princípio da conversibilidade e, para manter a paridade a qualquer preço, chegou até a reconvocar Cavallo.
A hiperinflação ocorreu na maioria dos países, alcançando um máximo, absurdo, de 4.900% em 1989, na Argentina, e provocando a desagregação social
O fim do círculo vicioso inflação-desvalorização não é a única vantagem de uma moeda forte que tem, ainda, o mérito de desinchar o peso nominal da dívida interna e minimizar o peso real da dívida externa. Mas o modelo neoliberal só funciona se uma contribuição constante de capitais estrangeiros vier preencher o déficit crônico da balança – que a moeda forte, por sinal, tem tendência a aumentar um pouco mais. A paridade fixa também constitui um compromisso para com os capitais estrangeiros: é oferecida uma garantia contra o risco de que seus ativos sejam brutalmente desvalorizados, pressupondo-se, é claro, que não se toque nas taxas de câmbio.
O risco de insolvência
Essas inegáveis vantagens têm, em contrapartida, outros inconvenientes. O principal é a perda de competitividade das mercadorias de um país com moeda forte, mecanismo que, no caso da Argentina, assumiu uma dimensão notável. No período 1997-2001, a taxa de câmbio peso-dólar foi mantida em 1 por 1 e os preços permaneceram estáveis. Nesse mesmo período, o real brasileiro – que começara a derrapar antes da desvalorização de 50%, em janeiro de 1999 – perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar, com um aumento de 25% nos preços internos. Os preços argentinos, em dólar, duplicaram, portanto, em relação aos preços brasileiros. Essa perda de competitividade teria reflexo no saldo comercial. Diante dos Estados Unidos, a paridade peso-dólar permitia um equilíbrio; mas, por outro lado, há uma deterioração com relação aos outros países da América Latina – principalmente os do Mercosul e, em seu interior, o Brasil – mas também com a Europa. Em 2000, as exportações argentinas representaram 9% do Produto Interno Bruto, um índice anormalmente baixo.
Esse déficit comercial crescente semeou a dúvida entre os investidores – tanto no que se refere à manutenção das taxas de câmbio, quanto à capacidade do governo argentino de cumprir seus compromissos. Durante todos os meses da crise, essa perda de confiança foi diariamente quantificada pelas agências de informações financeiras. Para frear tal tendência e devolver a confiança aos capitais, foi necessário adotar aumentos espetaculares das taxas de juros, de maneira a oferecer garantias contra o risco de mudanças e, de imediato, o risco de insolvência2
.
Incoerências da globalização
As inegáveis vantagens da dolarização têm inconvenientes: o principal é a perda de competitividade das mercadorias de um país com moeda forte
A elevação das taxas de juros apenas desequilibrou um pouco mais as finanças públicas. Somente no período de 1996 a 2000, o peso dos juros da dívida pública duplicou, passando de 4,6 bilhões de dólares para 9,65 bilhões. Os fundos de socorro do Fundo Monetário Internacional foram engolidos nesse turbilhão, bem como os 39,7 bilhões de dólares de ajuda negociados no final do ano 2000, no âmbito do chamado plano de “blindagem financeira”.
Esses mecanismos são ainda mais rígidos devido ao sistema do currency board (paridade peso-dólar), que é muito restritivo: a massa monetária depende das reservas oficiais de câmbio, as quais evoluem de acordo com o saldo da balança de pagamentos. Fecha-se a armadilha da ortodoxia, levando à política do corralito (limitação de saques sobre depósitos bancários). O peso é uma moeda forte – só que não há pesos!
A impossível busca por uma taxa de câmbio máxima faz reaparecer a incoerência do postulado em que se apóia a globalização liberal: um país como a Argentina deveria poder competir de acordo com as normas do mercado mundial e a abertura à concorrência constitui o estímulo que irá suscitar os ganhos em produtividade necessários a essa retomada. O período de déficit a ser preenchido por entradas de capitais é considerado transitório. No mundo real, as modalidades da globalização tornam esse modelo instável e as taxas de câmbio oscilam entre duas “atrações” contraditórias que deveriam ser exercidas simultaneamente: atrair os compradores por meio de preços competitivos (portanto, com uma moeda mais desvalorizada); e atrair os capitais por meio de rendimentos sólidos (portanto, com uma moeda valorizada). Como essa hipótese se baseia numa premissa falsa, a maioria dos países do hemisfério Sul é condenada a crises periódicas – que os fazem passar, radicalmente, de uma opção para a outra.
US$ 120 bilhões nos “paraísos fiscais”
O modelo neoliberal só funciona se uma contribuição constante de capitais estrangeiros vier preencher o déficit crônico da balança comercial
O alinhamento do peso ao dólar só foi possível devido a uma formidável regressão social. De 1991 a 1998, a Argentina registrou uma taxa de crescimento médio de 5%, contra 3,4% do restante da América Latina. A produtividade per capita aumentou, nesse período, em cerca de 30%, mas o salário médio caiu 3%. É essa a base do modelo: uma partilha cada vez mais desigual dos lucros com a produtividade. Apesar desse crescimento relativamente sustentado, a taxa de desemprego passou de 7%, em 1992, para mais de 17% nos dias de hoje, sem mencionar o sub-emprego3
.
Os benefícios de um modelo desse tipo são abocanhados por uma camada social muito estreita. Socialmente inaceitável, essa distribuição desigual também é economicamente corrosiva, pois a ausência de dinamismo do mercado interno acaba desencorajando o investimento, levando as classes dirigentes a adotarem um acentuado comportamento de retração de rendimentos. Em plena crise, a Bolsa de Buenos Aires registrou uma alta devido à compra de títulos facilmente renegociáveis em dólar e calcula-se em um total global de 120 bilhões de dólares as fugas de capitais (dos quais, 24 bilhões só entre março e dezembro de 2000) – ou seja, um número mais ou menos equivalente ao da dívida pública.
Diversidade de interesses
É o orçamento do Estado que se encontra na intersecção das contradições externas (monetárias) e internas (sociais): a orientação ultraliberal traduz-se por uma desfiscalização crescente dos rendimentos das classes abastadas. O próprio Vito Tanzi, na época diretor do departamento de assuntos fiscais do FMI, declarou ao jornal Clarín, em 11 de agosto de 1997, que “a atual estrutura fiscal permitiu a muita gente enriquecer em decorrência de não pagarem impostos, principalmente aqueles que ganharam muito com os lucros do capital, dos juros e dos dividendos”. O comportamento das classes dirigentes – sonegação fiscal e evasão de capitais, sem mencionar a corrupção – contribui para explicar as dimensões da crise.
De 1991 a 1998, a Argentina teve um crescimento médio de 5%, contra 3,4% do restante da América Latina. A produtividade aumentou em cerca de 30%
A sobreposição das contradições internas e externas levou a uma enorme diversidade de interesses. Os assalariados, os pequenos poupadores e os aposentados, os bancos, os credores estrangeiros, os capitalistas argentinos do setor de exportações e os outros, os grupos multinacionais espanhóis e franceses, assim como seus governos, sem falar de instituições como o FMI e o Departamento do Tesouro norte-americano – todos esses “atores” estavam envolvidos na política monetária.
Quem paga a desvalorização?
A divergência entre a Argentina e o Brasil questionou a viabilidade do Mercosul. A Argentina acabou adotando medidas protecionistas para resistir à invasão dos produtos brasileiros e a intensificação de transações comerciais dentro do Mercosul passou por uma freada brusca. O Brasil tornou-se ainda mais isolado, com suas reticências tanto à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) 4
– prevista para vigorar em 2005 -, quanto à sua política monetária e ao distanciamento que adotou em relação a um movimento geral de dolarização.
É necesario distinguir dois aspectos: o da dolarização e o da integração econômica. Não existe uma posição de princípio, por parte dos Estados Unidos, em favor da dolarização: eles são favoráveis a que a sua moeda se estabeleça como uma referência; porém, com a condição de que o seu Banco Central (Federal Reserve) não se torne avalista de uma responsabilidade de “emprestador de última instância”. O relatório Meltzer5
sobre a reforma do FMI deixa em aberto, por seu lado, a opção entre “taxas de câmbio fixas [a dolarização] e flutuantes”.
A crise poderia ser uma ocasião, para a Argentina, de revitalizar o Mercosul sobre bases monetárias racionais. Isso implicaria – a exemplo do Brasil e com ele – tomar certa distância de uma Alca dolarizada. Em termos imediatos, foi declarada uma moratória de fato, enquanto se procura quem deverá suportar o peso da desvalorização: “os de baixo” ou “os de cima”. As pressões antagônicas a que está submetido o presidente Eduardo Duhalde – o povo argentino, de um lado; e, de outro, o FMI e a Comissão Européia6
– salientam as contradições de um modelo instável.
(Trad.: Jô Amado)
1 – A justiça suíça bloqueou, no dia 21 de janeiro de 2002, duas contas bancárias vinculadas a Carlos Menem, com depósitos da ordem de 10 milhões de dólares. O ex-presidente foi liberado no início de dezembro de 2001, após 167 dias de prisão domiciliar que se deu em virtude de sua suposta responsabilidade na venda ilegal de armas à Croácia e ao Equador, entre 1991 e 1995.
2 – A título de exemplo recente, veja-se a ampla operação de conversão de créditos (megacanje), realizada em junho de 2001: ela permitiu a troca de obrigações com data de vencimento em 2005 (29,5 bilhões de dólares) por títulos novos, com prazo de vencimento maior (até 30 anos), mediante a oferta de taxas de juros mais rentáveis (15%, em média), aumentando, dessa forma, o peso da fabricação dos juros.
3 – Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Lat