O fim do pleno emprego nas maquiladoras
Implantadas no México na década de 1960 e potencializadas pelo tratado de livre comércio com os Estados Unidos nos anos 1990, as fábricas de montagem de peças praticamente não são fiscalizadas e exploram a mão de obra local com abusos flagrantes e chantagens cotidianas
Crise? Qual crise? Ah, existe uma nova crise? Bem, em Tijuana nós jamais saímos dela!”, afirma Jaime Cotta, sempre sorridente. Apesar de todas as desgraças que passam por seu escritório, ele se esforça para manter o senso de humor. Em Tijuana, sem dúvida é ele quem melhor conhece as condições de vida nas maquiladoras, fábricas de montagem implantadas no México a partir da década de 1960 ao longo de 3 mil quilômetros de fronteira com os Estados Unidos. O que as levou ao México? Mão de obra barata, impostos praticamente inexistentes, autoridades que pouco fiscalizam e a vizinhança da primeira economia do mundo1. “Graças às maquiladoras, somos uma economia de pleno emprego”, repetiram, sucessivamente, os últimos governadores do estado da Baixa Califórnia.
Cotta começou a trabalhar como operário, e depois se tornou pesquisador e advogado. Seu Centro de Informações para Trabalhadoras e Trabalhadores (Cittac)2 é o único que auxilia as vítimas dessas fábricas há cerca de 20 anos. De funcionários demitidos àqueles que sofreram acidentes de trabalho, ou temporários sem direitos nem contratos, os abusos são flagrantes. Os trabalhadores que passam por seu escritório recebem aconselhamento e, em alguns casos, são orientados a abrir um processo judicial. Trata-se, portanto, do lugar ideal para sentir o “clima quente” dessa cidade de 1,4 milhão de habitantes.
Hoje, três operárias foram atendidas. Uma delas foi suspensa por dois dias por causa de uma peça mal feita entre as 700 que produz em dez horas de trabalho diário. “Eles querem me demitir, me perseguem o tempo inteiro e inventam mentiras”, afirma com os olhos baixos. No papel que mostra a Cotta, está escrito que ela “intencionalmente causou prejuízos à empresa”. A operária acrescenta que nessa maquiladora as “paradas técnicas” acontecem semanalmente e que, com um dia de trabalho remunerado a menos, o salário fica ainda mais insignificante – 755 pesos mexicanos por semana, cerca de R$ 98.
As chamadas paradas técnicas figuram entre as últimas “sacadas” dos proprietários dessas fábricas. O presidente mexicano, Felipe Calderón, promove-as em nome da luta contra as demissões em massa. O governo federal paga um terço dos salários, a maquiladora outro terço, e o assalariado… perde o último terço com esses dias, compulsoriamente não trabalhados! Em troca, as fábricas se comprometem a demitir um número de empregados proporcional – e não superior – à baixa da produção. Mas, como explica a presidente da Associação da Indústria Maquiladora e de Exportação de Tijuana3, Magnolia Pineda, “poucas empresas aceitaram entrar nesse programa pois consideram impossível não ter liberdade para demitir. Trata-se de uma restrição inaceitável”. Essas empresas, no entanto, recorrem mesmo assim às “paradas técnicas”, mas sem pagar sua parte no salário, ou seja, de forma completamente ilegal. E mais, “os assalariados compreenderam muito bem a situação; não houve nenhuma greve”, acrescentou a presidente dessa organização patronal.
De fato a agitação social não abalou essas fábricas, de produção terceirizada, que reexportam seus produtos para os Estados Unidos imediatamente após a montagem. De acordo com um estudo realizado em Tijuana4, apenas 18% dessas empresas têm alguma organização sindical, pejorativamente apelidadas de “fantasmas” pelos funcionários. Pineda constata que, em 50 anos de maquiladoras, jamais houve conflito. Contudo, não é exatamente a “compreensão” dos trabalhadores, mas sim o medo das represálias que faz com que a paz social continue reinando na cidade fronteiriça. Basta se dirigir aos parques industriais ao amanhecer para compreender isso.
Há vários meses, filas de trabalhadores se formam todas as madrugadas em frente às empresas – alguns chegam a dormir no local para ter mais chances. Às cinco da manhã, mesmo sem nenhum funcionário de recrutamento presente, estão todos aterrorizados: “Não fale comigo, não se aproxime de mim. Não posso te dizer nada”, murmura um deles para a reportagem. Outro afirma: “Você não tem o direito de estar aqui, é proibido. Sim, é verdade, é a rua, mas estamos em frente à fábrica e a rua também é ‘deles’”. Às sete horas, apesar de ninguém ter sido empregado e de já estarem todos a 500 metros da usina se aquecendo com um café ruim, eles ainda têm medo. Apenas uma mulher aceita contar que busca um trabalho há meses e que “não há nada”. Mas ela não quer dizer seu nome nem sua idade ou origem.
As maquiladoras sempre tomaram medidas para ocultar as informações. É preciso voltar ao escritório do Cittac para aprender um pouco mais sobre esse mundo tão secreto. Aqui, aqueles que um dia abriram a porta e aprenderam seus direitos não têm mais receio de falar.
Há anos o mesmo discurso é repetido: trabalhar nas maquiladoras é um inferno. E a nova crise só agrava esse cenário. No mercado há mais de 20 anos, Rogelio já passou por várias empresas da região: “Venho do Michoacán e quando cheguei aqui comecei a trabalhar para a japonesa Tabuki, onde montava alto-falantes; depois, na Tabushi, também japonesa, fazia cabos para a Canon; por último fui para a americana Sohnen, a pior de todas, onde consertava máquinas elétricas”. Na Sohnen, Rogelio fez cursos noturnos, que frequentava após dez horas diárias de trabalho, para se tornar técnico. Foi promovido e tinha um salário quase decente (1.700 pesos por semana, R$ 224), mas o ritmo era exaustivo. “Tínhamos 20 minutos para consertar uma máquina. Se não conseguíssemos, era preciso terminar à noite. Sem receber hora extra, é claro.”
Segundo seu supervisor, Rogelio não era rápido o suficiente. A verdade, porém, é que ele começou a organizar um sindicato com outros operários: eles haviam se reunido várias vezes em um parque e distribuíam panfletos na saída da fábrica. Os supervisores perguntaram aos outros trabalhadores se Rogelio era quem os incitava e, considerado pela diretoria como “o chefe”, uma bela manhã ele foi demitido e recusou o cheque irrisório de indenização que lhe ofereceram depois de anos na empres
a. Graças a uma batalha judicial travada pelo Cittac, Rogelio recebeu uma quantia maior.
A Sharp o contratou e o manteve durante algumas semanas, antes de tomar conhecimento de seu “passado terrível” e demiti-lo. Desde então, a indústria eletrônica de toda a península da Baixa Califórnia fechou as portas para Rogelio. Em 2007, ele conseguiu trabalho na Unisolar Ovonics, uma maquiladora americana de painéis solares. “O trabalho não é fácil. Há 16 fornos e nenhum exaustor, o calor é sufocante. A zona de cortes é a mais perigosa. Durante todo o dia você respira a poeira da fibra de vidro, que também cola na pele e cobre o corpo inteiro”, conta. As queixas dos trabalhadores não surtem efeito: “Toda vez nos repetem que temos sorte de ter trabalho em tempos de crise”.
Ameaças constantes de demissão
As ameaças de demissão tornaram-se mais sérias ao longo do ano. Junto com Manuel, um imigrante hondurenho, Rogelio levantou informações sobre a empresa para redigir um panfleto que eles distribuíram discretamente aos operários. Descobriram assim que o novo presidente da Unisolar Ovonics, Mark Morelli, foi recentemente parabenizado pelos bons resultados do grupo (“alta de 16% nos lucros”, precisa Manuel), antes de anunciar perspectivas radiantes para os painéis solares – graças à “consciência ambiental”! “Se acreditarmos no presidente, eles já têm encomendas garantidas até 2012. Então, por que nos ameaçar constantemente de demissão?”, indigna-se Rogelio. “A crise econômica existe de fato,” acrescenta Cotta, “mas ela é também um pretexto para manter os funcionários desmobilizados e deixar de lado qualquer possibilidade de aumento salarial”.
Para as organizações patronais, “em tempos difíceis” esse tipo de reivindicação seria “inoportuna”. Mas isso não é o mais importante, pois, de acordo com Claudio Arriola, presidente em Tijuana da Câmara Nacional da Indústria Eletrônica e das Telecomunicações (Canieti), mesmo que ainda restem alguns meses turbulentos, o crescimento econômico se aproxima. O presidente Calderón havia feito exatamente o mesmo discurso na véspera, afirmando que “os sinais de retomada se multiplicam”.
Se o otimismo domina a imprensa internacional, a realidade local parece colocá-lo à prova. A indústria eletrônica, setor que mais emprega na cidade, não está em alta. Há dez anos, os proprietários falavam de Tijuana como o “sul do Vale do Silício californiano”, a “capital mundial da televisão” e a “cidade do pleno emprego”. Os entusiastas das maquiladoras não se cansavam de elogiar um modelo que havia atraído milhões de dólares em investimentos estrangeiros, exaltando o fato de que sete em cada dez televisores vendidos nos Estados Unidos eram fabricados em Tijuana.
De 1994, ano de assinatura do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), a 2001, houve de fato uma expansão prodigiosa. O setor apreciava muito as pequenas mãos ágeis dos operários e as autoridades não fiscalizavam a utilização de produtos poluentes, principalmente o chumbo.
Às portas da Califórnia, as maquiladoras contratavam migrantes para produzir os aparelhos eletrônicos cujo consumo aparentemente jamais cairia. “De 1994 a 2000, tivemos uma economia de pleno emprego em Tijuana, com apenas 1% de desocupados”, explica Cuauhtémoc Calderón, pesquisador em economia do Colégio da Fronteira Norte de Tijuana. “Em toda a zona fronteiriça, as maquiladoras tornaram-se uma faixa de contenção da imigração. Mas esse modelo de empresa é totalmente isolado do resto da economia e não produz efeitos estruturais em outros setores: os materiais são importados, montados e exportados. As maquiladoras não puderam absorver a migração massiva a que assistimos e a desregulamentação brutal de nossa economia provocou o deslocamento de 500 mil mexicanos por ano, um fenômeno que um país normalmente vive apenas em tempos de guerra”, diz ele.
As primeiras falhas do modelo apareceram com o novo milênio: a recessão de 2001 nos Estados Unidos provocou a demissão de 200 mil trabalhadores nas maquiladoras da fronteira. Em 2002, o setor eletrônico demitiu 31% de sua mão de obra, sendo 27% em Tijuana. Isso porque, como explica Leticia Hernandez, especialista nas questões de investimentos, “Tijuana é totalmente dependente dos Estados Unidos. Até 2008, 78% do investimento direto estrangeiro destinado à zona de fronteira era americano”. E conclui: “Portanto, é evidente que a crise lá provocou um desemprego inédito aqui”.
No segundo semestre de 2009, a taxa de desemprego oficial em Tijuana (7%) está maior do que a média nacional (5%) e a economia informal ainda ocupa, como no resto do país, a metade da população ativa. O despertar é amargo: “Não houve transferência de tecnologia e, em quatro décadas, a criação de postos de engenheiros e técnicos foi decepcionante”, analisa a socióloga Cirila Quintero, especialista em maquiladoras, do Colégio Superior da Fronteira Norte de Matamoros. Em Tijuana, 13% dessas empresas não dispõem de nenhum engenheiro e 65% empregam de um a dez. Da mesma forma, 73% das maquiladoras em eletrônica não possuem centros de pesquisa e desenvolvimento, e metade dessas empresas monta apenas uma variedade de produto. “As maquiladoras sozinhas não criam desenvolvimento, mas apenas um crescimento desequilibrado que tem como principal consequência empregos precários e mal remunerados”, lamenta a pesquisadora.
Essa economia de exportação, totalmente dependente do grande vizinho do norte, já estava se desacelerando antes da crise. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 havia modificado o cenário. “Há dez anos observamos abusos cada vez mais escandalosos, além das demissões não indenizadas,” constata Cotta. “As fábricas se negam a pagar qualquer coisa e até mesmo a oferecer proteção contra os produtos perigosos. Mas como não há mais trabalho, as pessoas não d
izem nada.”
Sem escolha
Atualmente fala-se muito da Power Sonic, uma maquiladora que fabrica baterias para aparelhos eletrônicos. “Antes, ninguém queria trabalhar lá porque é preciso manipular chumbo o dia inteiro,” explica Rogelio. “Hoje, há fila na porta da fábrica todas as manhãs”. Aos 36 anos, com dois filhos e um financiamento para sua casa, Netzahualcóyotl afirma que não teve escolha quando perdeu seu emprego na Sohnen. Ele quer crer na qualidade do equipamento de segurança que utiliza: “Os chefes dizem que apenas quem não os utiliza corretamente fica doente”. Ele ainda não foi atingido – segundo os critérios da empresa, que realiza testes sanguíneos mensais. “Eles não nos dão os resultados, mas se a taxa de chumbo no sangue está muito alta, nos mudam de posto. É assim que sabemos quando estamos doentes.”
Componente essencial de todo equipamento eletrônico, o chumbo é onipresente, seja nos temores ou nos rios. Durante seis anos, o bairro de Chilpancingo, localizado abaixo dos parques industriais, lutou contra os resíduos de chumbo abandonados na natureza. Graças à ajuda de uma organização não-governamental (ONG) americana, a Environmental Health Coalition, em 2008 foram enviadas 3 mil toneladas de terra aos Estados Unidos para despoluição e 8 mil toneladas foram vedadas sob uma capa de concreto.
Quem arcou com os custos foram os governos dos dois países, e não as empresas. “Eles comemoravam diante da imprensa enquanto nós, durante anos, gritávamos à toa quando nasciam crianças sem cérebro ou que morriam precocemente. Infelizmente, isso não mudou nada, ainda não há um controle sério sobre os resíduos abandonados pelas empresas, nem sobre a saúde dos trabalhadores”, lembra Yesina Palomares, uma das colaboradoras da organização em Chilpancingo. Carmen, que trabalhava na Panasonic, é testemunha: “Eu selava chumbo nas placas eletrônicas e sentia nitidamente que respirava fumaça a cada operação”. Em seis meses, apareceram manchas em seu rosto, cansaço generalizado e dores nos rins. “O médico da Panasonic garantia que não era nada, e depois um clínico geral fez exames e me disse: ‘ou você para, ou terá uma leucemia em breve’”, conta.
Carmen obedeceu porque, na época, era possível mudar facilmente de maquiladora. Hoje é diferente. “Somos menos criteriosos”, afirma. No seu bairro, o número de desempregados vem aumentando desde o fechamento da Sony. Alguns de seus vizinhos decidiram voltar aos estados de origem. “Eu vim de Chiapas quando tinha 13 anos. Em três décadas aqui, nunca tinha visto ninguém voltar ao sul”, diz ela.
A crise é sentida em Tijuana em especial por aqueles que têm mais de 50 anos. Desde sempre, as maquiladoras contratam trabalhadores jovens. “As pessoas que atingiram essa idade realmente sofrem,” explica Netzahualcóyotl. “Trabalham como loucos para não ouvir ‘você não tem ritmo’. Têm a melhor produtividade da empresa, mas custam caro demais. Por mais que trabalhem duro, não adianta: serão demitidos.”
Foi o que aconteceu com Delfina, aos 54 anos: “Me lembro que no final eu fazia o trabalho de três pessoas, tinha dor de cabeça, meu nariz sangrava e meu supervisor estava o tempo todo atrás de mim, dizendo para eu me apressar. Depois decidiram nos fazer trabalhar de pé, porque sentados éramos menos eficazes. Não podíamos falar, ir ao banheiro, nem mascar chicletes”.
Delfina foi demitida sem explicações em novembro de 2008. Não recebeu qualquer indenização, nem mesmo sua última semana de trabalho foi paga. Prestou queixa e aguarda que o Conselho de Conciliação, o equivalente a um tribunal de pequenas causas trabalhistas, dê o veredicto. Atualmente ela sobrevive com apenas 200 pesos por semana (R$ 26), enviados por uma de suas filhas, que tem uma mercearia. E divide a quantia por três pessoas. “Fazemos duas refeições por dia”, afirma. Depois de 25 anos na maquiladora, Delfina não tem aposentadoria nem economias. Criou sozinha seus sete filhos e, como muitas mães solteiras, trabalhou à noite durante anos, enfrentando todo o tipo de percalços.
Na Mattel, fábrica de brinquedos, Delfina teve de lutar por seus direitos. “Quando a empresa em que eu trabalhava foi comprada pela Mattel, eles quiseram me demitir sem pagar meus direitos. Como eu recusei, eles me sequestraram.” Ela passou uma noite inteira trancada em um escritório com um guarda e foi obrigada a aceitar um cheque de 2 mil pesos (R$ 263) para poder sair na manhã seguinte. “Meus filhos estavam esperando, entende?” Com a ajuda do Cittac, ela denunciou na televisão e no rádio o ocorrido, mas ainda assim a Mattel não fez absolutamente nada. Além disso, a Justiça considerou que não houve qualquer “reclusão forçada”, pois não foi feito um pedido de resgate.
Hoje Delfina sabe que não encontrará trabalho em uma maquiladora. “É impossível na minha idade, pois nem os jovens eles contratam mais”, diz ela, mostrando seu enteado, desempregado aos 20 anos. “Há quem tente vender bugigangas, mas somos todos pobres aqui, não podemos comprar grandes coisas.” Seu bairro se parece com muitos outros de Tijuana: no início a ocupação da área era ilegal, depois foi regularizada. No entanto, as autoridades nunca asfaltaram as ruas e a comunidade teve que se organizar para obter água e eletricidade. Quando a casa de seu filho pegou fogo, os bombeiros não vieram e a família perdeu tudo. “Isso não é normal,” indigna-se, “mas a quem reclamar? A maquiladora em que ele trabalha não ajudou com nada, apenas seus colegas contribuíram. A solidariedade é a única coisa que ainda funciona aqui”.
*Anne Vigna é jornalista.