O futuro do passado
Confira resenha do romance Arrigo, livro de estreia na ficção do sociólogo Marcelo Ridenti; obra foi lançada este ano pela Boitempo
Marcelo Ridenti é conhecido como um dos nomes mais importantes da sociologia da cultura no Brasil. Notadamente quando o assunto é a cultura das esquerdas brasileiras. Se no seu doutorado estudara os “fantasmas da revolução” que rondavam as oposições à ditadura militar, em livros como o imprescindível Em busca do povo brasileiro ou Brasilidade revolucionária, Ridenti nos guia em um passeio pelas mais diversas vertentes da esquerda política e cultural nos anos 1960 e 1970. Sem falar de seu trabalho mais recente, O segredo das senhoras americanas, em que analisa as complexidades envolvidas nos embates da chamada “guerra fria cultural”.
Trata-se, portanto, de um perito nas tramas dos movimentos contestatórios brasileiros, assim como de seus laços internacionais. Mas eis que Ridenti, professor titular da Unicamp, mobiliza esse mesmo cabedal para fazer sua estreia na ficção com o romance Arrigo, recentemente lançado pela Boitempo Editorial.
Agora, vemos em operação não o sociólogo interessado na depuração do material acumulado, que visualiza condicionantes sociais e simbólicos em meio aos dilemas do engajamento político, e sim o ficcionista que se vale dessa mesma matéria política e cultural a fim de imaginar personagens e diálogos cujas semelhanças com figuras e acontecimentos reais não são mera coincidência, ao mesmo tempo em que revelam um registro próprio da realidade. Como sabe Ridenti, a arte não apenas reproduz como também, ao seu modo, recria o real.
O romance é atravessado pela personagem do título. Pela história de Arrigo, contada pelo narrador/personagem responsável por escrever suas memórias, o livro vai avançando pelas intempéries vivenciadas pela esquerda brasileira ao longo do século XX, da greve de 1917 em São Paulo – da qual seu tio Mário, anarquista de origem italiana, fora protagonista – às últimas eleições presidenciais, passando pelo período varguista, pelo golpe de 64, pela ditadura militar, pela abertura democrática e por tantos outros eventos marcantes.
Como tomamos conhecimento desde o início, o narrador – pesquisador da esquerda brasileira cujo nome não nos é revelado – se encontra involuntariamente trancado dentro do apartamento de Arrigo, no “edifício Esplendor”, em São Paulo. Em sua companhia, o corpo inerte do “velho guerreiro”, apenas aparentemente falecido.
É nesse cenário algo surreal que as aventuras políticas e afetivas de Arrigo e de seus companheiros e companheiras vão sendo reavivadas naquilo que foram, mas também no que poderiam ter sido, caso as utopias aspiradas tivessem sido efetivadas. Com essa estratégia narrativa, Ridenti logra estabelecer uma tensão permanente entre o presente do narrador e o passado político e cultural rememorado.
Assim, ao invés de atravancar o dinamismo da história, os brevíssimos capítulos que vão se sucedendo em frases curtas e certeiras jogam o leitor para dentro de experiências que, afinal de contas, compuseram a cultura moderna no Brasil. Porém, o fazem a partir de uma forma literária própria, na qual os espectros do passado coletivo são frequentemente interrompidos pelo narrador, como que a nos lembrar que é à luz do presente, o nosso, que esse passado adquire sentido.
É nesse vai-e-vem temporal que, como diria Walter Benjamin, o passado se apresenta “saturado de tensões”. De onde os recorrentes pesadelos do protagonista, assombrado por acontecimentos que, não raro, busca denegar, inventando outros desdobramentos possíveis. As elucubrações são especialmente ativas em relação a Lino, velho amigo trotskista que, sob as divergências entre as forças antifranquistas na guerra civil espanhola, Arrigo ajudou a matar, em um tiroteio em que militantes fascistas também se envolveram.
A fim de aplainar o sentimento de culpa pelo ocorrido, que o visita em pesadelos regulares, Arrigo vai repassando em instantâneos ao longo da história como seria o futuro de Lino se ele não houvesse sucumbido às balas na Catalunha. Ora acredita que voltaria a encontrá-lo na luta, que afinal era a mesma, contra o capitalismo. Ora, numa versão mais apaziguadora para si mesmo, especula se o amigo não se mudaria para os Estados Unidos, tornando-se mais um trotskista “vira-casaca”, daqueles que fizeram da União Soviética o “inimigo principal”, incapazes de perdoar a “traição” na guerra civil espanhola. “Se era para sobreviver a fim de seguir um caminho desses, então foi melhor Lino ter morrido na Espanha” (p.244), Arrigo chega a pensar, num consolo apenas momentâneo.
A narrativa vai se tornando mais sóbria, quando não sombria, na medida em que vamos avançando no século XX. É como se, a cada passo percorrido, com o passado se aproximando do presente, as expectativas fossem esmorecendo, num epílogo a um só tempo digno e melancólico. A partir dos anos 1980, em que pese o sopro de esperança estimulado pelos novos movimentos e organizações – dentre elas, é claro, o PT – que surgiam no rescaldo da abertura democrática, o hiato geracional e político vai se aprofundando.
Não por acaso, não era sobre o presente que Arrigo mais gostava de falar: “melhor se lembrar dos anos de luta contra autoritarismos explícitos” (p.245), dizia ele, que se sentia cada vez mais uma “peça de museu” diante das novas gerações universitárias e/ou militantes que ainda o convidavam para palestrar sobre suas experiências. Após aventuras políticas, culturais e sexuais aos montes, prisões, torturas e muita violência, em diferentes tempos e espaços, Arrigo parece enredado em um passado que passou, mas que, na forma de sonhos ou pesadelos, acaba por compor o seu próprio presente.
O mundo já era outro, e “até a parteira da história já morreu de velha e a criança não nasce”, nas palavras irônicas de Aurora, a mais importante e definitiva companheira de Arrigo e umas das muitas personagens femininas do romance. Como o anjo da história de Paul Klee/Walter Benjamin, evocado pelo narrador logo no início de seu confinamento forçado no apartamento do edifício Esplendor, Arrigo parecia condenado a olhar os escombros e as ruínas do passado, “levado pela tormenta do futuro, cujos ventos não sopraram na direção esperada” (p.15).
A esse respeito, o destino dos papeis e documentos de Arrigo, aparentemente destruídos por uma inundação no sítio em que vivia Aurora, em Vinhedo, no interior paulista, serve como metáfora de uma experiência coletiva que vivenciava os seus estertores. E que, portanto, estava se tornando parte de uma tradição cuja memória só estará a salvo se for permanentemente reativada, na contramão do conformismo que sempre busca apaziguá-la.
Aí está, aliás, uma das grandes qualidades do romance: o “realismo” do conteúdo não anula a potência imaginativa da forma. Com isso, o que parece – à luz do itinerário de Arrigo – um permanente estreitamento do horizonte de expectativas se revela igualmente, ao fim e ao cabo, uma renovação política e geracional da qual o protagonista também toma parte, muito embora a vivencie como prelúdio do seu próprio fim – real e metafórico. Até os seus últimos dias, Arrigo ainda declarava que “nunca vai se convencer de que o futuro será a perpetuação da barbárie em sociedades produtoras de mercadorias” (p.243).
Rememorada a partir do presente, trata-se de uma esperança coletiva que o agora romancista Marcelo Ridenti nos apresenta sem abafar as suas nuances e complexidades, de maneira a nos indicar que o futuro almejado por Arrigo ainda está em nosso horizonte, desde que seja reinventado. Com este livro, Ridenti nos concede rédea solta para imaginar o modo como esse reposicionamento atualizado do passado pode ser concebido, fazendo de Arrigo a alegoria de uma utopia que, de escombro em escombro, teima em não se deixar abater. Ao menos enquanto os dominantes continuarem dominando.
Fabio Mascaro Querido é professor livre-docente de Sociologia da Unicamp.