O golpe de 1964, o 8 de janeiro e as resistências democráticas no Brasil
O golpe de 1964 foi seguido por anistia e impunidade, a tentativa de 2023 está sendo enfrentada com investigação rigorosa e responsabilização criminal, indicando um amadurecimento das instituições democráticas brasileiras
Os eventos de 31 de março de 1964 e 8 de janeiro de 2023 representam dois momentos de ruptura institucional na história brasileira, separados por quase seis décadas, mas unidos por uma mesma ameaça: o autoritarismo que desafia as estruturas democráticas. Enquanto o primeiro resultou em 21 anos de ditadura militar, o segundo foi rapidamente contido pelas instituições democráticas. A diferença mais significativa, contudo, emerge agora com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de responsabilizar criminalmente os organizadores e incentivadores dos ataques de 2023, contrastando com a impunidade que historicamente protegeu os responsáveis pelo golpe de 1964. Este artigo propõe analisar esses dois momentos através da perspectiva da “história vista de baixo”, buscando compreender não apenas as ações das elites políticas e militares, mas também a participação de cidadãos comuns e os processos de resistência popular que marcaram ambos os períodos.
Uma análise histórica completa desses eventos exige que olhemos além das decisões de elites e entendamos os processos sociais complexos nos quais diferentes classes exerceram papéis ativos. O golpe de 1964 não foi apenas militar, mas civil-militar, contando com amplo apoio de setores da sociedade civil. De modo semelhante, os eventos de janeiro de 2023 contaram com a participação de milhares de cidadãos comuns, motivados por narrativas específicas sobre a democracia e o processo eleitoral. Compreender essas dinâmicas sociais nos ajuda a enxergar a complexidade desses momentos históricos.
O golpe civil-militar de 1964 ocorreu em um contexto de Guerra Fria e de intensas mobilizações sociais no Brasil. As reformas de base propostas pelo governo João Goulart, especialmente a reforma agrária, despertaram temores entre as elites conservadoras e setores da classe média. Os militares agiram em aliança com setores empresariais, religiosos e midiáticos, construindo uma narrativa de que o país estaria sob ameaça comunista. Esta visão, contudo, desconsidera as especificidades da experiência social brasileira e a natureza das reformas propostas, que buscavam reduzir desigualdades históricas sem necessariamente implementar um regime socialista. Uma análise crítica nos permite enxergar além das justificativas oficiais, revelando os interesses de classe que motivaram o golpe.

Contrariando a narrativa de que o golpe foi aceito passivamente pela população, historiadores documentaram diversas formas de resistência imediata ao novo regime. O livro O fantasma da revolução brasileira, de Marcelo Ridenti, registra manifestações de trabalhadores, estudantes e intelectuais contra o golpe já nos primeiros dias de abril de 1964, embora tenham sido rapidamente reprimidas. Estas resistências iniciais, muitas vezes esquecidas pela historiografia tradicional, revelam que o processo histórico não foi linear nem inevitável, mas marcado por contestações e disputas. São fundamentais para compreender a formação da consciência política das classes trabalhadoras, que posteriormente organizariam formas mais estruturadas de oposição ao regime.
O regime militar brasileiro não se sustentou apenas através da repressão política direta aos opositores mais visíveis, mas também por meio de uma série de políticas econômicas e sociais que afetaram profundamente a vida cotidiana das classes trabalhadoras. A repressão aos sindicatos e o arrocho salarial foram tão importantes para a manutenção do regime quanto a censura à imprensa e a perseguição aos militantes políticos. Esta perspectiva nos permite compreender que a ditadura se estabeleceu não apenas nos espaços políticos formais, mas penetrou profundamente nas relações sociais e econômicas, transformando a experiência cotidiana dos brasileiros comuns. Conforme documentado por Maria Paula Nascimento Araújo em Memórias Estudantis, a opressão cotidiana gerou diferentes formas de resistência nas universidades, fábricas e bairros populares.
As manifestações culturais tornaram-se importantes espaços de resistência durante o regime militar. A música popular, o cinema, o teatro e a literatura se converteram em campos de batalha simbólicos onde se articulavam discursos contra-hegemônicos. Marcos Napolitano, em seu livro Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar, analisa canções como Apesar de Você, de Chico Buarque, ou peças como Calabar não eram apenas produtos culturais, mas expressões de uma consciência social em formação que articulava experiências comuns de opressão e aspirações por liberdade. A censura e a perseguição aos artistas demonstravam que o regime reconhecia o poder mobilizador dessas expressões culturais.
A transição para a democracia no Brasil foi marcada pela Lei da Anistia de 1979, que perdoou tanto os opositores do regime quanto os agentes do Estado responsáveis por violações aos direitos humanos. A anistia brasileira foi uma negociação entre as elites políticas, com pouca participação popular em sua formulação. Esta perspectiva é crucial para entendermos os limites da democratização brasileira: uma transição controlada “pelo alto” que, ao deixar impunes os crimes da ditadura, estabeleceu precedentes problemáticos para a nova ordem democrática. A ausência de justiça transicional não foi um acidente histórico, mas resultado de relações de poder desiguais que permitiram às elites militares negociarem os termos de sua saída.
A ausência de responsabilização pelos crimes da ditadura deixou sequelas profundas na democracia brasileira. A impunidade dos agentes da repressão contribuiu para a continuidade de práticas autoritárias e violentas nas instituições de segurança pública durante o período democrático. Esta análise nos ajuda a compreender como certas estruturas autoritárias persistiram mesmo após a redemocratização formal. A tolerância social com a violência policial e a permanência de “bolsões autoritários” em instituições do Estado não são anomalias, mas consequências diretas da forma como o Brasil lidou com seu passado ditatorial, conforme argumenta Paulo Sérgio Pinheiro em seus estudos sobre autoritarismo e transição democrática.
O crescimento de narrativas autoritárias no Brasil contemporâneo não surgiu repentinamente, mas se desenvolveu a partir de condições sociais e históricas específicas. A glorificação da ditadura militar começou a ganhar força em contextos de crise econômica e política, especialmente após 2013, quando a insatisfação com o sistema político foi canalizada para discursos antidemocráticos. Este processo não foi inevitável, mas resultado de lutas sociais e disputas narrativas sobre o passado. O negacionismo histórico em relação à ditadura militar funcionou como ferramenta para legitimar propostas autoritárias no presente, evidenciando como a memória coletiva é um campo de batalha político. Bryan McCann, em Hard Times in the Marvelous City, oferece uma análise perspicaz sobre como as crises urbanas alimentaram o ressurgimento de discursos autoritários no Brasil contemporâneo.
A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 representou um ponto de inflexão na vida democrática brasileira. O discurso antipetista e antipluralista serviu como base para um projeto político, que desde o início sinalizava desprezo pelas instituições democráticas. Este momento não foi apenas resultado de manobras políticas, mas expressão de contradições sociais mais profundas. O processo de erosão democrática que se seguiu —ataques à imprensa, às universidades, aos povos indígenas e a outras minorias — revela como o autoritarismo contemporâneo operou através de múltiplas dimensões da vida social, afetando as experiências cotidianas de diversos grupos. A obra O ódio como política, organizada por Esther Solano, traz análises importantes sobre a ascensão desse fenômeno político no Brasil.
Os ataques de 8 de janeiro de 2023 às sedes dos Três Poderes em Brasília representaram o ápice de um processo de radicalização antidemocrática que vinha se desenvolvendo há anos. Os eventos de janeiro evidenciaram a persistência de uma cultura política autoritária no Brasil, alimentada por anos de discursos que questionavam a legitimidade das instituições democráticas. As ações coletivas são informadas por tradições políticas e culturais que fornecem repertórios de ação. Os ataques não foram eventos isolados, mas expressões de um movimento social com identidade própria, mobilizado por narrativas específicas sobre fraude eleitoral e ameaças à ordem tradicional. Como apontam Rogério Sottili e Jurema Werneck em artigo na Folha de São Paulo, esses ataques poderiam ter resultado em uma “distopia autoritária” se tivessem sido bem-sucedidos.
Olhando para os eventos de 8 de janeiro, é importante considerar a participação de milhares de pessoas comuns nas invasões, além dos líderes e organizadores. Os participantes dos ataques não eram meros fantoches manipulados, mas agentes que atribuíam significados específicos às suas ações, com base em suas próprias leituras da realidade política. Essa perspectiva nos permite compreender como experiências sociais específicas e interpretações da realidade motivaram pessoas comuns a participar de um ataque às instituições democráticas.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de denunciar altos oficiais militares, um ex-presidente e outras autoridades pelos eventos de 8 de janeiro representa um ponto de inflexão na história brasileira. Pela primeira vez na história republicana, as mais altas autoridades do país serão responsabilizadas por tentarem subverter a ordem democrática, rompendo com o ciclo histórico de impunidade para golpes e tentativas de golpe. Esta ruptura com o padrão histórico de impunidade mostra que, embora existam estruturas que condicionam a ação humana, os agentes históricos têm a capacidade de romper com padrões estabelecidos e criar novos caminhos. A decisão do STF pode representar o início de uma nova tradição jurídica e política no Brasil, afastando-se do precedente de impunidade consolidado com a Lei da Anistia.
A diferença mais marcante entre os eventos de 1964 e 2023 reside na resposta institucional aos ataques à democracia. Enquanto o golpe de 1964 foi seguido por anistia e impunidade, a tentativa de 2023 está sendo enfrentada com investigação rigorosa e responsabilização criminal, indicando um amadurecimento das instituições democráticas brasileiras. Esta análise comparativa nos permite identificar não apenas continuidades, mas também rupturas significativas na história brasileira. A atual responsabilização dos golpistas sugere que, apesar de todas as fragilidades, a democracia brasileira desenvolveu anticorpos institucionais contra ameaças autoritárias que não existiam durante a crise de 1964. Como defendem as organizações internacionais, os crimes contra a humanidade e os atentados à democracia não devem ser objeto de anistia.
A responsabilização dos envolvidos em tentativas de ruptura institucional não representa apenas a aplicação da justiça em casos individuais, mas constitui um processo fundamental para o fortalecimento da cultura democrática. Quando a sociedade demonstra que atos contra a democracia têm consequências concretas, estabelece precedentes importantes para futuras gerações. O contraste entre a impunidade que marcou o pós-1964 e a atual responsabilização dos envolvidos no 8 de janeiro ilustra uma evolução significativa na maturidade institucional brasileira. Esta mudança não ocorreu espontaneamente, mas foi fruto de décadas de lutas sociais por memória, verdade e justiça que gradualmente transformaram a consciência coletiva sobre o valor da democracia.
A democracia não é um estado permanente, mas um processo que exige vigilância constante. A existência de tentativas de ruptura institucional, separadas por quase seis décadas, demonstra que as conquistas democráticas nunca estão definitivamente asseguradas. O recente enfrentamento judicial dos envolvidos nos ataques de janeiro representa um avanço significativo, mas não elimina os riscos de novos retrocessos. A responsabilização dos golpistas do presente, diferentemente da impunidade que os protegeu do passado, sinaliza um amadurecimento das instituições brasileiras. Contudo, a consolidação definitiva da democracia não depende apenas da punição exemplar em momentos de crise, mas da construção cotidiana de uma cultura política que valorize o pluralismo, respeite os direitos humanos e repudie qualquer forma de autoritarismo. Relembrar criticamente o passado e enfrentar com firmeza as ameaças do presente constituem, portanto, faces complementares do mesmo imperativo democrático: nunca mais ditadura.
Erik Chiconelli Gomes é pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP). Atualmente, é Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
Fontes consultadas
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Memórias Estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007.
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
MCCANN, Bryan. Hard Times in the Marvelous City: From Dictatorship to Democracy in the Favelas of Rio de Janeiro. Durham: Duke University Press, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar. São Paulo: Intermeios, 2017.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP, São Paulo, n. 9, p. 45-56, 1991. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i9p45-56
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
SOTTILI, Rogério; WERNECK, Jurema. O 31 de março, o 8 de janeiro e a distopia autoritária. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 mar. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/03/o-31-de-marco-o-8-de-janeiro-e-a-distopia-autoritaria.shtml. Acesso em: 31 mar. 2025.
Adoraria ver um debate desse escritor o Dr Helio Beltrao ou Dr Leonardo Correa. Seria muito agregador de conhecimento de nosso direito constitucional.