O impasse dos protetorados
No contexto da globalização mercantil e financeira, ressurge o sistema de protetorados, cujas tutelas monetárias, econômicas e militares espezinham o princípio da soberania dos Estados, assim como o do direito à autodeterminação dos povos.Catherine Samary
Apesar das manifestações hostis à nova ordem norte-americana – do Norte (curdo) ao Sul (xiita) do país -, os Estados Unidos parecem decididos a impor a condição de protetorado ao Iraque. E, apesar da exigência de um recurso às Nações Unidas, manifestada pela imensa maioria dos países – inclusive por alguns dos aliados de Washington nessa guerra de agressão -, o presidente George W. Bush pretende confiar as chaves de Bagdá a uma administração norte-americana que eventualmente contará com colaboradores locais.
Até aí, os neoconservadores, cuja influência é decisiva junto à Casa Branca desde o início de 2001, nada inventaram. Privados das colônias que fizeram a glória dos impérios europeus, os Estados Unidos não hesitaram, na virada do século 19 para o século 20, em administrar diretamente as neocolônias que foram Cuba e as Filipinas e, depois, o Haiti, a República Dominicana, a Nicarágua ou o Panamá (leia, nesta edição, o artigo de Maurice Lemoine).
No final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos voltariam a recorrer à figura do protetorado para garantir a transição democrática da Alemanha e do Japão. Embora seja um dado menos conhecido, Washington também sonhava em impor essa humilhação à França (leia, nesta edição, o artigo de Annie Lacroix-Riz).
Protetorados do pós-Guerra Fria
A volta em grande estilo da idéia de protetorados, na década de 90, não se deu, evidentemente, por acaso. Com a vitória norte-americana na Guerra Fria, fechou-se uma era em que qualquer crise, nacional ou regional, se resolvia no âmbito de uma queda de braço entre os Estados Unidos, uma autêntica superpotência, e a União Soviética que, na ausência dos outros atributos de um “Grande”, conservava seu poder militar. Esses confrontos nunca terminavam sem “acordos amigáveis” e partilhas da esfera de influência às custas dos povos envolvidos. Mas esse mundo bipolar tinha que levar em consideração a forte pressão exercida pelos movimentos de libertação social e nacional. Daí decorreu uma relativa consolidação dos Estados e a manutenção de conflitos “sob controle”, com as grandes potências tendo por aliados poderes de Estado (muitas vezes ditatoriais) dirigidos para uma lógica de desenvolvimento.
No Kosovo, eles renunciariam às suas prerrogativas transferindo-as, assim que possível, à União Européia, mas multiplicando as bases da Otan
Tudo isso mudou com o desaparecimento da União Soviética e de seu “bloco”, que pôs fim à onda liberal iniciada na década de 80. Sob a pressão da globalização e da União Européia, o Estado de bem-estar social foi desmantelado, enquanto o mercado e o lucro passavam a ser a prioridade, muito embora países ex-“socialistas” tivessem sérias dificuldades em se adaptar ao modelo ocidental. Em outros casos, foi pior: a vontade de controlar territórios etnicamente miscigenados e a ruptura das lógicas distributivas entre regiões ricas e pobres desencadearam sangrentas guerras locais – como na Iugoslávia. Alguns países do Terceiro Mundo desmoronaram com a ausência da ajuda que até então recebiam de Moscou e seus amigos, para os manter como aliados, ou de Washington e de seus amigos, para conter a influência soviética. O mesmo ocorreu com países que, como a Somália, pura e simplesmente “desapareceram”.
Diferentes escalas de protetorados
Que resposta foi dada a estes novos desafios? Em alguns casos, prevalece a indiferença após uma ajuda amplamente divulgada, como na Somália depois da efêmera e catastrófica intervenção norte-americana de outubro de 1993: isto porque a capacidade de “incomodar” que têm esses conflitos sobre o resto do mundo, ou sobre o ambiente regional em que ocorrem, é considerada pequena. Em outros casos, de importância secundária para Washington, o protetorado é confiado à ONU, como no Timor.
Acrescentam-se ainda os países – Kosovo, Afeganistão, Iraque – em que, conseguindo impor suas soluções pela força das armas, os Estados Unidos preferem infligir uma submissão que garanta que a “lição” não tenha sido inútil e onde investem em diferentes níveis, conforme o grau, maior ou menor, de importância estratégica. No Kosovo, eles renunciariam às suas prerrogativas transferindo-as, assim que possível, à União Européia, mas multiplicando as bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na região. No Afeganistão, delegariam a administração diária do país – inclusive a manutenção da ordem – à Força Internacional de Auxílio à Segurança, da qual a Otan acaba de assumir o comando, ao mesmo tempo em que prosseguiam o combate militar contra a Al-Qaida e seus aliados taliban. No Iraque, por outro lado, parecem decididos a manter em suas mãos as rédeas do poder econômico, político e militar.
Contradição aberta
A fórmula do protetorado, portanto, abrange situações extremamente diversificadas – e em evolução – que devem ser avaliadas a partir da pergunta: quem controla o quê? De qualquer maneira, não escapa à “contradição aberta”, enfatizada por Noam Chomsky, “entre as regras da ordem internacional estabelecida na Carta das Nações Unidas e os direitos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos1“: de um lado, a soberania dos Estados, que proíbe qualquer tipo de ingerência em seus assuntos internos; do outro, a soberania dos povos que, ao contrário, exigiria que se corresse em seu socorro e contra seu próprio regime, se necessário. No entanto, a geopolítica do caos2 da década de 90 parecia legitimar o “direito de ingerência”, muito em voga numa época em que as grandes potências já não eram criticadas por suas responsabilidades nessas novas “desordens” e, sim, pela “inação” decorrente do não-auxílio a povos em perigo.
No Afeganistão, delegariam a administração diária do país à Força Internacional de Auxílio à Segurança, da qual a Otan acaba de assumir o comando
Nos meios que se mobilizaram contra as limpezas étnicas seria enfatizado, por exemplo, que ao contrário do Iraque em 1990-1991, “na Bósnia não há petróleo” para explorar, mas vidas humanas e os seus valores a serem protegidos. A revolta contra a hipocrisia de um intervencionismo seletivo e cínico se tornaria a exigência – ingênua ou não – de uma intervenção militar por motivos “humanitários”.
“O que vem se esboçando sob nossos olhos, no âmbito da globalização mercantil e financeira, é um sistema de protetorados, de governadores e de procônsules. Essas tutelas monetárias, econômicas e militares chegam mesmo a responder a uma exigência de recolonização sob a forma de mandato. No cenário da globalização, pequenos países correm o risco de se verem reduzir, sob o disfarce de uma independência formal, ao papel de simples peões do grande jogo geoestratégico3.” Esse “tempo dos protetores”, analisado por Daniel Bensaïd, espezinha, evidentemente, o princípio da soberania dos Estados, assim como o do direito à autodeterminação dos povos.
Os semi-protetorados do Kosovo e da Bósnia
Abrindo a caixa de Pandora da proliferação de mini-Estados, as chamadas guerras interétnicas tendem a desacreditar a própria idéia do direito à autodeterminação, aqui entendido strictu sensu (a cada povo, no sentido étnico, seu Estado). Na ausência de relações de força que permitam aos povos decidir por si próprios a forma política mais adequada à defesa de seus direitos universais (sociais, culturais, políticos), as grandes potências se arrogam o direito de determinar quem está em condições de criar um Estado e em que bases o deverá fazer4.
Tanto para os que criticam esse tipo de ajuda quanto para os que dela desconfiam, o importante, portanto, é fazer um balanço desses “protetorados” caso a caso, comparando o conteúdo dos mandatos, as condições em que foram elaborados, a existência, ou não, de um organismo de controle etc. Só uma atitude crítica, mas aberta, permitirá que não se caia numa indiferença criminosa (basta pensar em Ruanda), nem na cegueira de um “imperialismo humanitário” supostamente “benigno5“, cujos remédios são muitas vezes piores do que a doença. Apesar de alguns pontos em comum, o Iraque não é o Afeganistão – sem falar do Kosovo e, é claro, da Bósnia.
Essas duas últimas experiências merecem uma atenção especial. Esses dois semi-protetorados puseram fim às guerras e iniciaram um processo de reconstrução, já há vários anos, a partir da criação de instituições políticas e de eleições. Mas, obedecendo a que tipo de dinâmica?
Legitimação da expansão da Otan
No Iraque, Washington parece estar decidido a manter em suas mãos as rédeas do poder econômico, político e militar.
Embora pusessem fim às guerras, os acordos de Dayton, de 1995, sobre a Bósnia-Herzegovina, bem como a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU, de junho de 1999, sobre o Kosovo, não questionaram as lógicas antagonistas em questão. Os quase-protetorados passam, então, a exercer seu controle sobre um todo incoerente. E é por isso que esses acordos continuam sendo constantemente questionados. Inclusive porque a presença e a ajuda maciça internacional não cumpriram com suas promessas – tanto no que se refere à proteção das populações, quanto ao desenvolvimento econômico.
Para legitimar a expansão da Otan, apresenta-se freqüentemente a “eficiência” protetora como uma “evidência” que a distinguiria das Nações Unidas. Essa ilusão alimentou-se com o fato de a potência atlântica ter multiplicado suas tropas na Bósnia após a conclusão de um verdadeiro cessar-fogo, enquanto os capacetes azuis da ONU contavam, em plena guerra, com um simples mandato (absurdo) de “manutenção da paz”, eventualmente acrescido por um direito limitado à “legítima defesa”.
Na prática, os Estados Unidos começaram por se posicionar à distância da gestão da crise iugoslava, que consideravam estrategicamente secundária, embora assessorassem e armassem tropas que, supostamente, equilibrariam as forças sérvias: o exército croata e o de Sarajevo, assim como o Exército de Libertação do Kosovo (UCK), em 1999. Colocaram a Otan como força de ataque aéreo em duas circunstâncias: na Bósnia, como “braço armado da ONU”, antes do acordo de 1995; e depois, na guerra travada contra a Iugoslávia, sem autorização da ONU, de março a junho de 1999.
Realpolitik flexível
Portanto, a Otan só agiu militarmente nas zonas de conflito balcânicas depois da assinatura dos acordos entre todos os protagonistas – inclusive a Macedônia, após os acordos de Ohrid, de 2001. Numa perspectiva de longo alcance, tratava-se de garantir a expansão da Aliança Atlântica rumo aos países da Europa Oriental e dos Bálcãs, implantando bases em vários deles, inclusive portos para a frota norte-americana. Porém, em casos de tensão violenta, Washington preferia contar, nos locais de conflito, com efetivos militares que não fossem os seus, ou seja, retirar-se o mais rápido possível: os soldados norte-americanos passaram, então, as tarefas a tropas locais, ou européias, enquanto os Estados Unidos enviavam as suas para regiões do mundo consideradas mais decisivas…
A fórmula do protetorado abrange situações extremamente diversificadas – e em evolução – que devem ser avaliadas a partir da pergunta: quem controla o quê?
Prevaleceu, assim, uma realpolitik bastante flexível, adaptando-se às circunstâncias. Depois de quatro anos de guerras de limpeza étnica na Bósnia e do fracasso dos planos de paz da ONU e dos negociadores europeus, o presidente William Clinton esforçou-se, por exemplo, para retomar a iniciativa diplomática e recolocar a Otan em cena, após a dissolução do Pacto de Varsóvia (1991). O compromisso procurado em Dayton6 decorria do equilíbrio entre as forças antagônicas em conflito, apoiando-se nos Estados fortes da região. Além de Alija Izetbegovic, presidente da Bósnia-Herzegovina em guerra, os Estados Unidos convidaram, respectivamente, os presidentes dos dois Estados vizinhos: Slobodan Milosevic, falando “em nome de todos os sérvios”, e Franjo Tudjman, “de todos os croatas”.
Essa opção, aliás, confirmou a importância dos acordos entre esses dois dirigentes quanto ao desmembramento étnico da Bósnia7 e à visão que tinham as grandes potências por ocasião da “estabilização” regional – fatos que continuam sendo incômodos para o atual processo em Haia8. Os dirigentes bósnio-sérvios Radovan Karadzic e Ratko Mladic, condenados pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, foram afastados. No entanto, a República Srpska, homologada pelos acordos de Dayton, foi obra deles. É verdade que se reafirmavam os objetivos de um retorno dos refugiados e da consolidação das principais instituições do país. Mas os senhores da guerra locais conservavam a maioria de seus poderes, inclusive seus exércitos.
Avalização da limpeza étnica
Dayton, portanto, não teve vencedores nem vencidos. Para a população civil, foi um alívio, pois os acordos põem fim aos combates. Mas eles avalizavam todas as limpezas étnicas, assim como simplificavam as questões territoriais mais conflituosas da região: o massacre, pelas forças sérvias, no enclave de Srebrenica, de maioria muçulmana, que não foi defendido pelas tropas internacionais, nem pelas de Sarajevo; o silêncio sobre a ofensiva realizada durante o verão de 1995, pelo exército croata, contra os sérvios de Krajina, sem grandes protestos por parte de Belgrado. Isso porque, paralelamente, Dayton silenciava sobre o Kosovo.
O “direito de ingerência” legitimou-se em uma época em que as potências já não eram criticadas por suas responsabilidades nessas novas “desordens” e, sim, pela “inação”
Esse silêncio gerou uma radicalização política entre a população albanesa da província. Desde a repressão do início da década, os albaneses vinham boicotando pacificamente as instituições sérvias, na esperança do reconhecimento de sua “república”, autoproclamada e presidida por Ibrahim Rugova. Um projeto independentista ameaçado pela consolidação, em Dayton, da posição internacional de Milosevic (e, conseqüentemente, das fronteiras da Sérvia), convalidada pela suspensão das sanções e dos acordos de reconhecimento recíproco assinados com os Estados vizinhos. Foi a partir de então que o UCK intensificou seus esforços de internacionalizar o conflito por meio da violência. Ao tentar eliminar esse grupo com a ofensiva realizada no verão de 1998, Milosevic só conseguiu torná-lo cada vez mais popular.
Albaneses excluídos das negociações de paz
Após terem aceitado o desmembramento da Federação, as grandes potências procuraram conter – e tentam fazê-lo até hoje – os movimentos separatistas na Bósnia e no Kosovo, temerosos de que eclodisse uma desordem envolvendo também a Macedônia. Na conferência de Rambouillet, na primavera de 1999, elas propuseram, para o Kosovo, um projeto de autonomia que a parte sérvia aceitou – embora tenha rejeitado, por outro lado, a presença de forças militares no território. Os albaneses, por sua vez, rejeitavam a própria autonomia. Madeleine Albright, secretária de Estado de Clinton, aproveitou esse impasse para, com o apoio do UCK, impor à União Européia um novo cenário, sem a ONU, mas com a Otan… O bombardeio de Belgrado, na seqüência, teve como objetivo impor a aceitação de forças da Otan no Kosovo9. Para conseguir a assinatura albanesa, Washington fez uma vaga promessa de “levar em consideração”, em seu devido tempo, a realização de um plebiscito de autodeterminação.
Embora representem 80% da população do Kosovo, os albaneses foram excluídos das negociações que puseram fim à guerra porque a resolução 1244, assinada pelo presidente iugoslavo, confirmava o respeito pelas fronteiras da República Federal da Iugoslávia. No meio tempo, o marco alemão tornou-se a moeda do Kosovo, que passou a ser provisoriamente administrado pela Missão das Nações Unidas (Minuk), sob a proteção das tropas da Otan.
Contra-limpeza étnica e guerra civil
Pequenos países correm o risco de se verem reduzir, sob o disfarce de uma independência formal, ao papel de simples peões do grande jogo geoestratégico
Recebidas como libertadoras pelos albaneses, estas últimas permitiram, efetivamente, a rápida volta de centenas de milhares de albaneses expulsos da província pelas forças sérvias. Representavam a esperança de uma futura independência, no contexto de uma deterioração das relações da Sérvia com as grandes potências e às custas de uma “democracia pelas bombas”, radicalizando mais do que nunca os antagonismos políticos – não só em relação aos sérvios, mas também a todos, albaneses ou não, que fossem suspeitos de aceitar o diálogo com eles10. Desnecessário seria dizer que os 40 mil soldados sob o comando da Otan não conseguiram impedir a contra-limpeza étnica de que foram vítimas dezenas de milhares de sérvios e de ciganos, nem conseguiram deter o início de uma guerra civil – semipolítica, semimafiosa – entre albaneses. Também na Bósnia-Herzegovina foi camuflado o fracasso de uma presença militar que supostamente duraria um ano, transformando-a de Força para a Efetivação dos Acordos (IFOR) em Força de Estabilização (SFOR).
A estratégia de “saída da crise” rumo a uma desobrigação significou, em ambos os casos, a delegação, às forças locais (em muitas circunstâncias, ex-milícias ultranacionalistas convertidas em forças policiais), da tarefa de restabelecer a ordem nos locais conflituosos. Seria essa, com certeza, a única lógica viável, num longo prazo, que poderia prever uma saída do status de protetorado e a emergência de um Estado de direito. Na condição de que as realidades sócio-econômicas locais incentivassem a esperança de uma estabilização política. O que, infelizmente, não foi o caso.
“Síndrome de dependência”
Oito anos após Dayton, três quartos da população da Bósnia vivem abaixo do limiar de pobreza e o desemprego atinge 40% das pessoas em idade de trabalhar – no Kosovo, são mais de 60%. A criminalidade e a corrupção acompanham a pobreza, a incerteza institucional e a presença internacional. Uma “síndrome de dependência” instalou-se por toda parte, vinculando-se organicamente ao próprio protetorado. “As organizações internacionais (…) são parte do problema, e não da solução”, avalia o economista Zarko Papic11. Elas têm, acrescenta Papic, “interesse em se manter e desenvolver”. Ao mesmo tempo, o salário de um mero motorista ou de um intérprete de uma organização internacional afasta qualquer pessoa de um emprego “normal”… caso este exista.
Mas o fracasso está intrinsecamente vinculado à lógica neoliberal desta presença que leva a rejeitar “investimentos em empresas estatais, mesmo que estas sejam potencialmente rentáveis12“. Tanto os acordos de Dayton quanto o projeto de Rambouillet (mas também os acordos de parceria com a União Européia e as “ajudas”) impõem “economias de mercado” associadas às privatizações… Organizam a destruição das proteções sociais sem contribuir com a implantação de outras e, sim, da corrupção. O presidente do Banco Central, nomeado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), incentiva taxas de juros exorbitantes, impedindo qualquer tipo de modernização. Isto porque os Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) supostamente tomariam o lugar das ajudas e dos financiamentos públicos.
Bósnia dividida em entidades étnicas
As chamadas guerras interétnicas tendem a desacreditar a própria idéia do direito à autodeterminação, aqui entendido a cada povo, no sentido étnico, seu Estado
Na ausência de um esclarecimento do próprio status do Estado, que supostamente decide e protege a propriedade, tudo está longe de ser confirmado… Este problema, que se coloca para o conjunto da ex-Iugoslávia, se agrava com a instabilidade de uma Bósnia proclamada “uma”, mas dividida em entidades étnicas, assim como pela ausência de um status definitivo para o Kosovo: Belgrado invoca a resolução 1244 para impedir que ali se realizem privatizações. Paralelamente, a incerteza sobre a devolução dos bens dos refugiados torna precário o retorno de quase um milhão de pessoas para a Bósnia-Herzegovina13.
Nessa situação caótica, a volta às comunidades ainda pode parecer a medida de proteção com maior credibilidade. Consolida, simultaneamente, os votos “nacionalistas” e os agrupamentos territoriais. Na Bósnia, essa é também uma maneira de responder à arrogância dos poderes internacionais, que se comportam como invasores, e de contestar uma “democracia imposta” por um alto-representante14 que seleciona os “bons” candidatos e demite os que foram eleitos. Ao contrário de seu antecessor, o atual titular do cargo, Patty Ashdown, parece procurar – como ocorria no início do protetorado – o apoio dos partidos nacionalistas… Mas querer consolidar uma “cidadania universal” – e não identidades etnonacionalistas – num determinado território, sem fazê-la acompanhar por medidas de proteção física e social para todos, seja qual for a nacionalidade, conduz, necessariamente, ao fracasso.
Protetorado sem fim
A chegada ao poder de Vojislav Kostunica reavivou os temores de um separatismo bósnio-sérvio. E a transformação da Iugoslávia na União da Sérvia e de Montenegro reacendeu a questão do status do Kosovo. Até o momento, os Estados Unidos e a União Européia vêm protelando, por unanimidade, o debate sobre esse assunto para mais tarde15. Antes de ser assassinado, em março de 2003, o primeiro-ministro sérvio, Zoran Djindjic, tinha partido para o ataque: aproveitando-se da ausência de proteção por parte dos sérvios e da recusa albanesa em aceitar o retorno de qualquer tipo de tropas sérvias (o que, entretanto, foi previsto pela resolução 1244), ele defendia um modelo cipriota, ou seja, uma partilha étnica do “Kosovo-Metohia”. Uma parte ficaria com a Sérvia e a outra se tornaria independente, ou se uniria à Albânia.
Junto com a criminalidade e a corrupção, uma “síndrome de dependência” instalou-se na Bósnia e no Kosovo, vinculando-se organicamente ao próprio protetorado
Agora que o estado de urgência acaba de ser decretado na Sérvia, Hashim Thaci, ex-chefe guerrilheiro do UCK, propõe, sob pressão internacional, uma moratória da independência16. Irá o novo Exército Nacional Albanês (AKSh) – que já vem anunciando uma “ofensiva da primavera” para a “unificação das terras albanesas” – aceitar essa reviravolta? Michael Steiner, o atual chefe da Minuk, acaba de anunciar o início de uma considerável transferência de competências para instituições do Kosovo. Mas, a “portas fechadas”, não se poderia dizer que se caminha para um atoleiro, para um protetorado sem fim e sem estabilidade regional?
A fórmula do Timor
Esse balanço, tanto na Bósnia quanto no Kosovo, não parece, nem de longe, positivo. Não que isso condene qualquer forma de protetorado. O Timor Leste é prova disso: após um genocídio que eliminou um terço da população e, em seguida, a ocupação impiedosa imposta a esse pequeno país (1975-1999), a proteção da ONU permitiu-lhe, em várias etapas, livrar-se da dependência da Indonésia, de seu exército e de suas milícias, decidir, por meio de um plebiscito, a independência e, finalmente, construir as bases da nação. No dia 20 de maio de 2002, após dois anos e meio como protetorado da ONU, nascia a República de Timor Lorosa?e, elegendo presidente, com 83% dos votos, o líder da resistência, Xanana Gusmão17…
O relativo sucesso dessa experiência teve, sem dúvida, características específicas. O protetorado instaurado em Timor atendia a sérias exigências da opinião pública, tanto local quanto em escala internacional. Não só não acobertou os crimes cometidos pelos invasores indonésios, como os condenou sem qualquer ambigüidade. Estava a cargo das Nações Unidas e era por elas administrado. Foi instituído com duração limitada, precedida pela expressão da vontade popular de independência e concluída por eleições democráticas. Durante a gestão da ONU, o protetorado tomou para si todas as questões fundamentais para depositar nas mãos da população de Timor as oportunidades do futuro. Eis aí uma fórmula que, com certeza, agradaria ao povo iraquiano…
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Noam Chomsky, “Bombing and human rights: behind the rhetoric”, in Ethical imperialism, coordenado por Ken Coates, revista The Spokesman 65, ed. Russell Press Ltd., Nottingham, 1999.
2 – Ler, de Ignacio Ramonet, Géopolitique du chãos, ed. Folio, Paris, 1999. O livro também foi publicado no Brasil (Geopolítica do caos), pela editora Vozes, em 2000.
3 – Ler, de Daniel Bensaïd, Contes et légendes de la guerre éthique, ed. Textuel, Paris, 1999.
4 – Ler, de Barbara Delcourt et Olivier Corte, Ex-Yougoslavie: droit international, politique et idéologies, ed. Bruylant, Universidade de Bruxelas, 1998.
5 – Ler, de Mary Kaldor, “A Benign Imperialism”, revista Prospect, Londres, abril de 1999.
6 – Ler, de Ivo H. Daalder, Getting to Dayton – The Making of America?s Bosnia Policy, ed. Brooking Institution Press, Washington, 2000.
7 – Ler, de Diane Masson, L?utilisation de la guerre dans la construction des systèmes politiques en Serbie et en Croatie, 1989-1995 e, de Marina Glamocak, La transition guerrière yougoslave, ambos editados por L?Harmattan, Paris, 2002. Para uma abordagem diferente, ler, de Diana Johnstone, Fool?s crusade, ed. Pluto Press, Londres, 2002.
8 – Ler, de Catherine Samary, “L?histoire yougoslave jugée” e, de Xavier Bougarel, “Du bon usage du Tribunal pénal international”, Le Monde diplomatique, abril de 2002.
9 – Joël Hubrecht, em seu livro Etablir les faits (ed. Esprit, Paris, 2001) omite esses fatos.
10 – Ler, de Jean-Arnault Dérens, “Adieu au Kosovo multiethnique”, Le Monde diplomatique, março de 2000.
11 – Citação de Zarko Papic no l