O Império ilude a si mesmo
Como a CIA e outras agências foram manipuladas, nas guerras contra Vietnã e Iraque, para produzir as “informações” que interessavam à Casa Branca e iludir a opinião pública. Por que esta deformação pode ser catastrofica para os próprios planos militares dos EUAGabriel Kolko
Scott Ritter, antigo oficial do serviço norte-americano de informações navais, juntou-se, em setembro de 1991, às equipes de inspeção das Nações Unidas encarregadas de verificar se o Iraque havia eliminado suas armas de destruição em massa (ADM) e projéteis que permitissem enviá-los sobre seus alvos. Ritter recebeu informações seguras dos serviços estadunidenses, britânicos e israelenses. Ele constatou que o Iraque rendeu-se às exigências de desarmamento das Nações Unidas, em meados nos anos 90.
No entanto, a partir de 1991, todas as administrações americanas perpetuam a ficção de que Bagdá possui ADM. O objetivo da Casa Branca, como Ritter percebe, é a “troca de regime [1]”. No que diz respeito às ligações entre Al-Qaeda e Saddam Hussein, poderia existir o risco de o primeiro aprender com o segundo o manuseio das ADM – este é o motivo anunciado por George W. Bush para justificar sua guerra. No final de setembro de 2001, Ritter soube que a verdade era exatamente o contrário: o regime laico do Iraque opunha-se determinantemente ao fanatismo islâmico de Bin Laden. Além disso, os serviços de informações do Pentágono haviam constatado que a fonte desta acusação de conluio era falsa [2].
Realidades construídas
Crises, perigos iminentes, ameaças para a segurança interna e os interesses vitais da nação? Pelo menos desde 1947, esses conceitos integram a política externa dos Estados Unidos. Eles serviram para mobilizar uma opinião pública indecisa e, ainda mais importante, um Congresso solicitado a autorizar as enormes despesas necessárias para sua implantação. Em tal contexto, a realidade não tem importância. Os exageros calculados, até mesmo as meias-verdades, são práticas comuns a todos os presidentes, desde que Harry Truman, em março de 1947, expôs a célebre doutrina que leva seu nome. Ela pintava as crises na Grécia e na Turquia com as cores mais inquietantes para a paz do mundo. Segundo o sub-secretário de Estado Dean Acheson, o Congresso e o povo americanos não estavam “suficientemente conscientes” da amplitude das despesas necessárias para enfrentar aquilo que se anunciava como uma crise de longa duração em toda a Europa e em outras partes do mundo.
Os exageros calculados, até mesmo as meias-verdades, são práticas comuns a todos os presidentes
George Kennan, o principal teórico do isolamento da potência soviética, opôs-se à doutrina Truman; até o secretário de Estado George C. Marshall considerava que o presidente exagerava a gravidade da situação. Apesar do desaparecimento do bloco soviético, perdura este hábito de exagerar os fatos, de evocar ameaças “sinistras” pesando sobre a paz mundial [3].
A partir de 1947, segundo a opinião de Walter C. Matthias, responsável até sua aposentadoria (em 1973), pelas estimativas da poder soviético pela CIA, “um interminável debate a respeito das intenções da União Soviética opôs as agências de informações civis e militares [4]”. Para justificar as despesas maciças de armamento, era necessário pintar os objetivos da URRS sob as mais alarmantes cores e, portanto, acentuar as capacidades soviéticas, mais do que as pretensões do regime. As intenções para a liberalização da URSS ficaram, desta forma, em silêncio, a importância do cisma sino-russo grosseiramente subestimada e, como destaca Matthias, “a partir de 1968, nossos julgamentos razoáveis e equilibrados sobre a União Soviética foram, cada vez mais freqüentemente, colocados em discussão [5]”. Este contexto ajuda a compreender a guerra do Vietnã, e também a maior parte dos demais aspectos da política externa e militar dos Estados Unidos a partir de 1946.
O presidente republicano Richard Nixon nutria, em relação à CIA, uma profunda antipatia e, em 1973, demitiu o diretor da agência, Richard Helms, que se recusava a admitir que a agência servisse de cobertura para o roubo de Watergate. Os principais conselheiros do presidente democrata James Carter confessavam, por sua vez, que as estimativas da CIA os “perturbavam”, não tanto por serem “inexatas”, mas porque não lhes pareciam “pertinentes” [6].
Os antigos agentes da CIA que publicaram suas memórias concordam sobre a falta de confiabilidade das avaliações
Análise sob medida
Em 1981, Ronald Reagan nomeia para o principal cargo da Agência William Casey, que “discutia com seus analistas, combatia-os, gritava com eles” [7]. Ele conduziu, então, sua própria política externa destacando: “Nosso programa de avaliação tornou-se uma poderosa alavanca que permite influenciar as decisões políticas” [8]. O resultado desta política da CIA levava ao exagero sobre uma ameaça cada vez mais virtual: em 1989, ela ainda não havia, de forma alguma, suspeitado do colapso do bloco soviético.
Os antigos agentes da CIA que publicaram suas memórias concordam a respeito da falta de confiabilidade das avaliações da agência. Apesar de ter, em seus quadros, um pessoal altamente qualificado, apesar das imensas quantidades de informações das quais ela dispunha, nunca, desde 1946, houve em Washington um sistema de informações confiável, “independente”, capaz de orientar com sabedoria a política externa do país. Ao contrário, a representação do mundo aparecia então determinada por idéias preconcebidas ou por interesses de grupos fechados, tendo por conseqüência os resultados que conhecemos, no Vietnã, no Iraque, em outros locais.
Deformavam-se os dados das informações para fins políticos antes da guerra do Vietnã; continua-se a fazê-lo. O trabalho da CIA só é verdadeiramente levado a sério quando se trata de permitir ao seu braço paramilitar [action wing] de prosseguir em suas missões subversivas no exterior. Evidentemente, qualquer atividade de informação e de coleta de informações é parasitada, sujeita a manipulações. Os conhecimentos objetivos são menos considerados que as estratégias políticas.
Com base em suposições absolutamente irrealistas, os norte-americanos retomaram o bastão da missão francesa na Indochina
Com o pé no Vietnã
Na Indochina, o governo dos Estados Unidos podia contar com excelentes peritos nas realidades locais. Em 1949, George W. Allen é chamado para os serviços de informações do Pentágono e é, rapidamente, deslocado para Paris, para ajudar nos esforços de preservação de seu império colonial. A leitura de suas memórias é edificante. Ele lembra, por exemplo, que o presidente Dwight Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles eram hostis à assinatura, pela França, de um cessar-fogo com o inimigo, que acabava de vencer a batalha de Dien Bien Phu. Os Estados Unidos se opuseram aos acordos de Genebra de 1954 e, “na base de uma série de suposições (?) absolutamente irrealistas”, retomaram o bastão da missão francesa na Indochina, uma decisão destinada ao fracasso [9].
Para começar, o governo norte-americano impediu a elaboração das cláusulas dos acordos de Genebra que previam eleições a fim de abrir o caminho em direção à unificação do país. Simultaneamente, violou as disposições relativas ao desarmamento das partes. Assim começou o engajamento americano no Vietnã. Este durou mais de vinte anos, culminando em 1968, com o envolvimento de mais de 500 mil soldados na guerra mais longa e mais cara da história dos Estados Unidos.
A cada etapa, no entanto, os analistas da CIA previram aquilo que viria a acontecer. A chamada crise do Golfo de Tonkin em agosto de 1964 “surpreendeu” Allen, pois ele sabia que Saigon e Washington conduziam, nessa época, missões clandestinas na região com a esperança de preservar o regime sul-vietnamita [10]. Ele imaginou, em primeiro lugar, que um serviço militar ignorava o que o outro tramava, pois declarou: “Eu não tinha compreendido a que ponto a administração [de Lyndon Johnson] procurava um pretexto para intensificar nossa intervenção”. O mesmo se deu nos acontecimentos de Pleiku em fevereiro de 1965, que serviram de pretexto para “represálias preventivas: os ataques de Pleiku legitimaram uma intensificação do conflito já planejado” [11].
Ao longo da aventura no Vietnã, comunicados de vitória se sucediam, principalmente para manipular a opinião pública
Sucessão de erros e mentiras
Em 1998, a CIA publicou uma história do período de 1962-1968 [12]. Ela demonstra que o chefe do Pentágono, Robert McNamara (que seria em seguida presidente do Banco Mundial) queixou-se a posteriori de não ter podido dispor de peritos do Vietnã aos quais pudesse se dirigir. Essa afirmação, porém, não procede. Na verdade, ele havia se recusado a ouvir esses especialistas. Além dos muitos fracassos em Washington, ele foi, acima de tudo, incapaz de compreender a doutrina militar dos comunistas ou a calcular exatamente seu número. Por sua vez, a administração Johnson insistiu em apoiar o ditador corrupto Nguyen Van Thieu, esperando, dessa forma, colocar um ponto final na instabilidade política em seguida ao assassinato do presidente Ngo Dinh Diem (em novembro de 1963), com a aprovação dos Estados Unidos. Por fim, as tropas de Saigon treinadas e equipadas por Washington para combater a guerrilha agiram como se se tratasse de uma guerra convencional. Resultado de todos esses erros: em 1975, o regime fantoche de Thieu implodiu sob os olhos de uma administração Ford totalmente impotente.
Mas, ao longo dessa aventura, comunicados de vitória se sucediam, principalmente motivados pelo desejo de manipular a opinião pública. Pois se responsáveis políticos, militares e agentes da CIA em campo viviam de ilusões e acreditavam sinceramente nesses relatórios errados, a maioria sabia que sua carreira dependia de seu grau de otimismo. O exemplo mais visível desses enganos interveio no momento da controvérsia sobre “o equilíbrio das forças”, que precedeu a ofensiva de Têt em fevereiro de 1968. Quanto mais eram atribuídas fraquezas às tropas inimigas, mais os militares podiam pretender ter cumprido sua missão. Eles se recusaram, por esse motivo, a levar em consideração as diversas forças locais do adversário, ignorando mais de 300 mil homens como se nada fossem. Admitir sua existência, reconheceu o general Creighton Abrams em agosto de 1967, teria levado a “sombrias” conclusões [13]?
A CIA manifestou suas objeções, mas ratificou esta intriga. O resultado foi que, com a confissão de Allen, o fracasso de Têt foi ainda mais retumbante que “a campanha psicológica de exagero conduzida no outono de 1967”, que havia conquistado um papel central na campanha de reeleição de Lyndon Johnson [14]. Foi após a ofensiva de Têt que os Estados Unidos começaram a compreender que não ganhariam a guerra.
A maioria dos altos funcionários confirma que os governantes esperam informações que sirvam para atingir seus objetivos
Informações, só as convenientes
Ford e Allen chegaram à mesma conclusão, e este último a resumiu da seguinte forma: “Nossos dirigentes têm tendência a criar ilusões para eles próprios” [15]. No entanto, dentro da CIA, diversos agentes bem informados mostravam-se tão críticos do episódio indochinês quanto seus adversários declarados. Artigos publicados dentro da agência admitem com uma franqueza desconcertante que “uma grande parte das informações” coletadas pela CIA são “para falar a verdade, uma palhaçada” [16]. O caráter confuso e inepto de certas operações especiais dos serviços de espionagem ou do Pentágono é claramente admitido também [17]. E se, por um lado, há quinze anos, os progressos da tecnologia decuplicaram a quantidade de dados dos quais dispõem os agentes do serviço de informações, longe de facilitar a pesquisa e a análise, esta profusão tornou sua exploração ainda mais difícil – e mais suscetível de ser, por vezes, desconectada com o tema, ou ainda falsa.
Sabe-se que as idéias preconcebidas, o interesse pessoal e as ambições políticas, especialmente a preocupação de serem reeleitos, dissuadem os dirigentes a levar em consideração informações que não querem ouvir. A maioria dos altos funcionários admitiu este tipo de situação e confirmou que aqueles que tomam as decisões esperam, sobretudo, informações para que possam atingir seus objetivos. Desta forma, os responsáveis políticos fazem uma triagem, pois não apenas confiam em seu próprio julgamento, como também têm seu plano para levar a contento. Poucos altos funcionários do serviço de informações admitem que seu conhecimento possa impedir o prosseguimento de uma política má ou perigosa. O caso do Iraque trouxe uma prova a mais.
As diferenças culturais e políticas entre o Vietnã e o Iraque são significativas, e a situação geo-estratégica inteiramente diferente. Os Estados Unidos encorajaram e apoiaram materialmente Saddam Hussein durante todo o período de sua guerra contra o Irã (1980-1988) – apesar do escândalo do Irãgate [18] -, por medo de que o Irã estabelecesse na região do Golfo a hegemonia xiita. O temor permanece, e com razão: se a maioria xiita tomar o poder no Iraque, o que parece provável, o Irã verá triunfar suas ambições geopolíticas na região. Mas, apesar desse paradoxo fundamental da posição americana, o que torna pouco provável a emergência de uma real democracia, os Estados Unidos continuam a repetir numerosos erros que resultaram em seu fracasso na Indochina.
Bush resolveu contar qualquer coisa ao Congresso e à população para conseguir sua adesão, mas o sucesso dura pouco tempo
Fracasso previsível
A coleta de informações funcionou de forma bastante medíocre tanto no Iraque quanto no Vietnã. E é justamente porque essas duas guerras terminaram mal para os Estados Unidos que sabemos muito mais que de hábito a respeito do que os serviços de informações têm a dizer.
Mesmo se as verdadeiras razões da intervenção militar americana no Iraque sejam diversas, é sabido que uma certa mentalidade dos meios dirigentes teve um papel chave. Donald Rumsfeld, atual secretário de Defesa, a resumiu, sugerindo ao presidente Bush, desde sua eleição, que a política externa da nova administração deveria mostrar-se menos reativa, devia “voltar-se para o futuro” [19]. Bush não pensava diferentemente. Mais uma vez, o serviço de informações não possuía relevância sobre as decisões importantes. A administração instalada não somente recusou-se a levar em consideração o que os diferentes serviços lhe ensinavam, como também, de forma consciente, deformaram suas análises. Se a semelhança com o Vietnã é óbvia, é porque a política externa dos Estados Unidos foi sempre elaborada dessa maneira.
Antes mesmo de chegar ao poder, esta administração estava resolvida a se mostrar mais agressiva. E, como no Vietnã, os Estados Unidos foram ao encontro das surpresas e dos fracassos imprevistos. Mas de nenhuma forma imprevisíveis: relatórios detalhados fornecidos por Ritter e por outros especialistas do armamento iraquiano foram descartados em benefício de “informações” extremamente duvidosas, das quais as mais bizarras foram concebidas por “Curveball”, um iraquiano considerado pelos serviços de informações alemães como indigno do menor crédito. A CIA fez também circular notas de precauções contra alguns de seus informantes, que considerava de moral duvidosa [20]. A administração Bush, por sua vez, também negligenciou outros avisos, formais, de peritos que previam um futuro caótico para o Iraque após a queda de Saddam Hussein, passível de levar a uma guerra civil. Para o grande público, a CIA permanece como fonte da maioria das mentiras das quais a Casa Branca se serviu para justificar a guerra contra o Iraque [21]. Mas, na realidade, a administração Bush adotou o comportamento de seus antecessores em matéria de política externa: contar qualquer coisa ao Congresso e à população para conseguir sua adesão. O sucesso de tal empreendimento tem tempo curto?
A superioridade militar favorece a idéia de que as dificuldades sociais e políticas desaparecerão por si próprias
Supremacia militar
Atualmente, só resta ao presidente Bush queixar-se, como em 14 de dezembro de 2005, afirmando que “muitas de nossas informações revelaram-se falsas”. E a entoar, uma vez mais, a velha ladainha invocando o desejo de Washington de buscar construir “um Iraque livre e democrático”, enquanto ninguém em sua gestão acredita mais em tal possibilidade. O único objetivo visado daqui para frente pela Casa Branca é resgatar o presidente, e também seu partido de um erro desastroso, tanto militar quanto politicamente.
Todavia, tanto no Vietnã como no Iraque, outros fatores aconteceram, além da simulação dos dirigentes. Por exemplo, nos anos 1960, o Pentágono já havia ficado cego pelo poder de fogo de suas armas, por sua superioridade tecnológica e pelo domínio aéreo. Esta suficiência é um traço nacional característico, que os fabricantes de armas apressam-se a encorajar sempre. Ela favorece a idéia de que as dificuldades sociais e políticas desaparecerão por si próprias, uma vez que o inimigo seja destruído por uma ação que tenha, segundo as palavras do secretário de defesa, Rumsfeld, “chocado” e “aterrorizado” (operação shock and awe).
No Iraque, como no Vietnã, a tecnologia mostrou-se extremamente frágil e a logística, um pesadelo. Precisamente porque se tornou infinitamente mais complexa, a tecnologia fracassou no Iraque em maiores proporções, enquanto problemas essenciais e perfeitamente previsíveis, como a escassez de água, mostraram-se espantosamente dispendiosos e difíceis de serem resolvidos [22]. O que resultou disso foi que a guerra do Vietnã e depois a do Iraque atingiram somas inesperadas, tanto em razão da confiança depositada em uma tecnologia onerosa, quanto por causa de intermediários incompetentes e corruptos.
Para financiar a aventura no Vietnã, Johnson foi obrigado a renunciar a boa parte de seu programa de “guerra contra a pobreza”
Custo alto
As conseqüências para a sociedade norte-americana foram severas. Para financiar a aventura indochinesa, Lyndon Johnson foi obrigado a renunciar a uma boa parte de seu programa de “guerra contra a pobreza”, levando Martin Luther King a concluir: “As bombas que caem sobre o Vietnã explodem em nossas cidades”. A guerra no sudeste da Ásia contribuiu igualmente para o enfraquecimento do dólar e o abandono de Washington de seu padrão-ouro [23]. Já a guerra no Iraque coincide nos Estados Unidos com os déficits comerciais e financeiros maciços. Até o outono de 2005, ela tinha custado, no mínimo, 225 bilhões de dólares, ou seja, em dois anos e meio, a metade do custo do envolvimento americano no Vietnã em nove anos. Certas estimativas chegam a considerar uma soma total de mil bilhões de dólares, o que constituiria um recorde histórico [24].
As duas operações exigiram um aumento quase constante do número de tropas, apesar de seu poder de fogo. Quando os efetivos militares engajados no Vietnã atingiram os 500 mil homens, a opinião nos Estados Unidos voltou-se contra o presidente, e seu partido foi expulso da Casa Branca. No caso do Iraque, a hostilidade da opinião, senão pela guerra, pelo menos a forma que ela adquiriu, manifestou-se muito mais rapidamente. No final de 2005, perto de dois terços dos americanos desaprovavam a conduta das operações, e 58% estimavam que o presidente não tinha boas razões para manter as tropas em campo. Enfim, em fevereiro último, 63% pensavam que o objetivo visado no momento não justificava nem a perda de vidas americanas nem o custo financeiro. E 48% chegaram a pedir um retorno imediato dos efetivos engajados [25].
O que acontece nos domínios políticos, econômicos e sociais é ainda mais decisivo que as considerações militares. Aquilo que era verdade para o Vietnã, em 1975, ainda o é para o Iraque. Uma guerra se ganha politicamente ou não se ganha. Ora, em Washington, os dirigentes não levam jamais em consideração os avisos de seus especialistas quando estes lembram os limites do poder militar. A posição do presidente em negligenciar as realidades políticas locais em benefício da supremacia da força das armas (a vergonha da derrota) torna-se quase sempre a primeira preocupação, qualquer que seja a duração do conflito.
O exército iraquiano, destruído pelos EUA, está em vias de ser reconstituído com a ajuda dos antigos oficiais sunitas
Encruzilhada no Iraque
No caso do Vietnã como no do Iraque, a opinião pública, primeiramente mobilizada, baseada nas meias-verdades cínicas, terminou por não mais acreditar em uma única palavra do que os oficiais lhe passavam. No entanto, muitos homens importantes tornaram-se, com o tempo, incapazes de distinguir entre realidade e ficção. Os dirigentes norte-americanos acreditavam sinceramente que se os comunistas ganhassem no Vietnã, os “dominós” cairiam e a China tomaria o sudeste da Ásia. Da mesma maneira, a guerra no Iraque, mesmo tendo sido bem justificada pela idéia de que o regime de Bagdá possuía armas de destruição em massa e tinha ligações com a Al-Qaeda, nenhum fato jamais veio corroborar essas afirmações que, logicamente, comprometeram o crédito de todos os discursos oficiais posteriores.
Três anos após o início do conflito, 160 mil soldados americanos e aliados estão estacionados no Iraque, muito mais do que o presidente Bush havia imaginado. Como no Vietnã, sua moral é baixa e continua a se enfraquecer. Mas, visto o nível de resistência, efetivos importantes serão requisitados durante anos. Na Indochina, o presidente Nixon havia desejado “vietnamizar” a guerra, transferindo o ônus dos combates para o imenso exército do presidente Thieu. Essas tropas, sob comando católico, estavam desmoralizadas. Elas não agüentaram muito tempo tal peso.
Quanto ao exército iraquiano, os Estados Unidos começaram por dissolvê-lo. Ele está em vias de ser parcialmente reconstituído com a ajuda dos antigos oficiais sunitas de Saddam Hussein. Esta decisão, tomada em desespero de causa, constitui uma reviravolta completa. A idéia de que uma tal força possa atingir os objetivos proclamados por Washington, ou ser militarmente eficaz, parece totalmente quimérica. Exatamente como no Vietnã, onde os budistas eram hostis à minoria católica, da qual eram provenientes os dirigentes impostos por Washington, o Iraque é um país dividido no plano religioso. Os Estados Unidos devem, a partir de agora, escolher entre o risco de prováveis desordens causadas pela insuficiência das tropas americanas, e aquele de uma guerra civil, se os iraquianos forem armados.
Com o tempo, a política interna torna-se mais importante que o resto: foi assim no Vietnã e será, sem dúvida, no Iraque
Credibilidade em baixa
O resultado das eleições exacerbou essas rivalidades. Os xiitas representam três quintos da população, seus dirigentes têm suas próprias idéias e programas políticos. Se eles tomarem o controle do exército ou do estado, provavelmente o poder do Irã aumentará na região. Apesar dos numerosos avisos dos especialistas, a administração Bush percebe mal a complexidade dos problemas políticos os quais ela deve enfrentar. O Afeganistão está lá, no entanto, para lembrar que, em última análise, os sucessos militares dependem da política e não o inverso.
Tanto no Iraque como no Vietnã, os Estados Unidos subestimaram o tempo de sua presença no local, e se iludiram quanto à eficácia de seus aliados. Os esforços da administração Bush não têm maiores chances de vitória que aquelas de seus predecessores na Indochina. O Vietnã conhecia profundos abismos religiosos, mas o Iraque é ainda mais fracionado, e a perspectiva de uma guerra civil parece iminente. Entretanto, se no Vietnã os comunistas chegaram ao poder, no Iraque é o caos total que se anuncia.
Em um memorando confidencial datado de outubro de 2003, Rumsfeld admitiu que “nos faltam instrumentos de medida que nos permitam saber se nós ganhamos a guerra planetária contra o terrorismo, ou se nós a perdemos”. Isso implica em dizer que certos membros influentes da administração Bush têm, há muito tempo, menos confiança em suas ações do que no momento em que principiaram essa guerra [26]. Mas, como no Vietnã, é muito tarde para mudar de rumo. Neste momento, a credibilidade militar dos Estados Unidos parece estar em jogo.