O inimigo está no poder
Hoje, provavelmente, todos terão medo de ir à aula, assim como amanhã e depois e todos os dias sequentes desta operação absurda
Nesta semana, uma fotografia sobre a ação militar na favela Kelson’s do Rio de Janeiro, feita por Leo Correa da Associated Press, circulou pelas redes sociais e sintetiza bem a política de segurança posta em prática pelo general Braga Netto, nomeado por Michel Temer para “resolver” o problema da violência no estado fluminense. No centro da foto, uma criança arrumada com carinho para ir à aula: seus sapatinhos polidos, sua meia branca limpa e seu uniforme passado mostram zelo e incentivo dos responsáveis pelo estudo daquela pessoa em formação. Naquela roupa engomada, todo planejamento de um futuro brilhante, que tem na educação sua base mais firme. A criança parece não ter mais que sete anos de idade e está de mãos vazias. Cadê a mochila escolar? Levaram para revista. No lugar de uma bagagem de conhecimento, um olhar sério, adulto demais para o tamanho daquela pessoa mirim, pesado sobre o militar ao seu lado que empunha uma arma maior do que a própria criança, eleita pelos soldados como “suspeita”, “culpada” pela violência de sua comunidade. Por quê? Por ser pobre, negra e por morar na favela.
A imagem transborda de crianças abordadas a caminho da escola, todas muito novas, todas com expressão corporal que diz muito sobre a condução da operação militar. Ombros caídos, olhares abaixados: a dignidade violada. Quase é possível ouvir o pensamento da criança central da foto, tentando entender por que diabos ela, naquela idade, naquela circunstância, chegando para mais um dia de aula, tem que mostrar sua mochila para um homem fardado com metralhadora na mão. É possível perceber ele se dando conta, mesmo em termos mirins, do que é o racismo, entendendo que, para esse governo reacionário neoliberal, ela é o inimigo e está na mira do exército. O seu crime foi sair de casa para ir à escola. Que audácia.
Hoje, provavelmente, todos terão medo de ir à aula, assim como amanhã e depois e todos os dias sequentes desta operação absurda. Melhor ficar em casa, sem perigo, sem constrangimento, sem ensino. Esse foi o grande aprendizado daquele dia: a educação não está aí para todos, a dignidade e o respeito também não. No canto direito da imagem, entre a arma e a farda do militar, uma pequena boca entreaberta de um menino que parece ter cinco anos. O órgão que nessa idade deveria ser para o riso, para a brincadeira, para proferir as primeiras descobertas na escola, estampa o medo e o abandono – medo de quem o deveria proteger, abandono por quem deveria garantir seu acesso à educação. No uniforme dos alunos, a marca desgastada do governo do Rio de Janeiro.
A imagem registrada por Correia é de uma violência que atinge nossa democracia já assassinada e que todo dia parece apodrecer um pouco mais. No alto da foto, o movimento cristalizado de um adulto mostra preocupação. A apreensão é perceptível. As veias lhe saltam no pescoço, a boca cerrada, a sobrancelha fechada. Deve ser pai ou professor ou funcionário da escola, revoltado com a ação, mas preocupado em conduzir da melhor maneira para a segurança das crianças.
Outras figuras presentes no instante congelado também contam o que se passou: à esquerda da foto, um rosto sério de mulher, que também deve ser da comunidade escolar, com boca aberta como se conversasse com as crianças. O corpo encurvado e os braços estendidos mostram que talvez ela esteja segurando a mochila de algum de seus estudantes – só um aluno segura a própria mochila, como se fosse abri-la para inspeção. No fundo da fotografia, um outro rapaz de mãos vazias e posição de espera, ao lado de um segundo militar armado. Cadê seus pertences?
A política de segurança posta em prática pelo general Braga Netto resume-se em amedrontar inocentes, com ameaça de violência. O perigo veste farda e a noção de cidadania é uma arma apontada para pobres e negros das favelas. Ordem e covardia. Não há nenhum branco na foto. Essa intervenção militar tem cor e classe, e não está aí para todos. Vivemos dias muito preocupantes.
Raisa Pina é jornalista, mestra pela Universidade de Brasília, pesquisadora e professora em artes e cultura