O jogo duplo das classes médias
As classes médias definem-se por uma dupla relação, para com os de cima e os de baixo. Dominantes-dominados e dominados-dominantes, como o morcego da fábula, dizem: “Sou um pássaro, veja minhas asas; sou um camundongo, vivam os ratos!”Alain Accardo
Atualmente, é lugar comum da ciência política maníaca por pesquisas de opinião pública considerar que “a França quer ser governada pelo centro” e que, como no futebol, as batalhas pelo poder se ganham ou se perdem no “meio do campo”. Em termos mais sociológicos, essa constatação consiste em destacar a importância assumida pelo que se convencionou chamar de as “classes médias”. Deixando aos especialistas a preocupação do debate sobre os contornos exatos dessa enorme nebulosa, ressaltemos, aqui, que a noção de “média” aplicada a essas populações, mais do que em seu sentido habitual de localização – que designa um conjunto de posições intermediárias no continuum social -, deve ser entendida num sentido mais “dinâmico”, que reenvia às tensões contraditórias que trabalham permanentemente esse conjunto heterogêneo no interior do processo de “medianização”.
Em outras palavras, não é possível definir as classes médias contentando-se em situá-las em algum lugar do espaço que vai da base do edifício social, onde classes populares vivem com dificuldade sua vida de rejeitados, aos andares superiores, onde oligarquias de ricos governam à sua maneira e jogam dinheiro pelas janelas.
Complicadas estratégias de aliança
Uma vez que as diferentes frações das classes médias ocupam posições mais ou menos afastadas dos dois pólos – positivo e negativo – da acumulação capitalista e da dominação social, sua socialização nesse espaço intermediário submetido a uma dupla gravitação acarreta uma estruturação característica da personalidade entre seus membros. De fato, qualquer que seja sua posição nesse espaço, devem, constantemente, se definir por sua dupla relação para com os de cima e com os de baixo. Dominantes-dominados e dominados-dominantes, eles não param de declarar como o morcego da fábula: “Sou um pássaro, veja minhas asas; sou um camundongo, vivam os ratos!”
Donde o caráter fundamentalmente equívoco, ambivalente como diria a psicanálise, de suas relações, de um lado, com a burguesia e, de outro, com as classes populares. Em ambos os casos, pode-se observar uma relação contrastada de atração/repulsa que se manifesta em estratégias complicadas de aliança ou de oposição com o “burgo” e com a “prole”.
O fascínio pela burguesia
Dessa duplicidade decorre o caráter fundamentalmente equívoco, ambivalente, de suas relações com a burguesia, assim como com as classes populares
É assim que os membros das classes médias, muitas vezes egressos das classes populares ou temendo nelas mergulhar, se dividem entre a inclinação por uma ruptura distintiva irreversível com a massa indistinta e a tendência à solidariedade e à compaixão para com os pobres, às vezes tão próximos. A composição dessas duas tendências espontâneas gera inúmeras práticas de condescendência que consistem em se inclinar com benevolência sobre o destino das “pessoas do povo” para instruí-las, encorajá-las, inseri-las, curá-las, aconselhá-las, fazer-se seu porta-voz, particularmente no plano político, e utilizar em seu proveito o crédito da aliança com os mais dominados na competição com os mais dominantes.
Observa-se a mesma ambivalência na relação com a burguesia. Esta fascina, literalmente, as classes médias que sonham com o acesso à arte de viver na riqueza, tal como a fantasiam. Mas, na falta de meios efetivos para isso, os pequeno-burgueses, com freqüência, vivem a relação com seu modelo à moda bovarista do despeito amoroso que, em resposta à arrogância e à condescendência dos poderosos, pode transformar-se em ressentimento agressivo, ou até autopunitivo.
As expectativas pequeno-burguesas
De maneira mais geral, a ambivalência das classes médias está na raiz de sua relação com o mundo social existente. Retiram dele todos os benefícios e privilégios de que desfrutam e – talvez mais ainda que os benefícios reais, obrigatoriamente limitados, provenientes da relativa redistribuição dos bens materiais e simbólicos – a esperança de benefícios futuros ligados à sua possível promoção ou à promoção de seus filhos.
Ao mesmo tempo, os pequeno-burgueses que aspiram a entrar na grande burguesia não deixam de tropeçar de mil formas em obstáculos, quase sempre intransponíveis, que se opõem a isso, pois não é da natureza da mobilidade social – que se tem tendência a superestimar transformando-a em democracia – acarretar uma redistribuição geral dos capitais em cada geração nem conter os mecanismos de reprodução social.
As classes médias dividem-se entre a inclinação por uma ruptura irreversível com a massa indistinta e a tendência à solidariedade para com os pobres
As classes médias são, pois, estruturalmente destinadas a viver entre esperança e decepção, entre entusiasmo e desencanto, num sistema que, por natureza, só pode engendrar e exacerbar reivindicações que não pode totalmente satisfazer. A lógica objetiva de sua condição leva os pequeno-burgueses a desenvolver duas espécies de expectativas. Umas, proporcionais aos capitais de que realmente dispõem, as aspirações ortodoxas, se é que se pode chamá-las assim, têm todas as chances de ser satisfeitas – o que tem por efeito reforçar a adesão e alimentar o consenso. As outras, as aspirações heréticas, exorbitantes em relação aos capitais reais, têm toda a probabilidade de serem rejeitadas como sendo pretensões inaceitáveis – o que tem por efeito atiçar a frustração e alimentar a contestação.
Contestar no sistema, e não o sistema
Esse esquema de base é válido para todas as frações da pequena-burguesia. Segundo a natureza e o volume dos capitais possuídos, segundo sua situação atual e sua história social, cada fração – e, no interior de cada fração, cada categoria e, finalmente, cada indivíduo – desenvolvem, alternada ou simultaneamente, estratégias específicas inscritas na lógica desse duplo jogo cujo objetivo é levar uma existência socialmente gratificante.
Contudo, independentemente dessas variações, parece difícil imaginar que as classes médias, exceto minorias momentaneamente mais radicais, possam mobilizar-se contra o sistema a ponto de ameaçar sua existência. Em geral, a contestação, que às vezes pode expressar-se de forma violenta, é uma contestação no sistema, e não uma contestação do sistema. Donde o sucesso que encontram, junto a essas populações, as diferentes variantes (de direita e de esquerda) do pensamento neo-reformista que têm em comum considerar que todos os aspectos do funcionamento do sistema podem ser legitimamente discutidos, mas que o princípio propriamente dito de sua existência deve ficar fora dos limites da discussão legítima.
Uma colaboração complacente
A burguesia fascina, literalmente, as classes médias – que sonham com o acesso à arte de viver na riqueza, tal como a fantasiam
Em outros termos, as classes médias podem até lutar pela modificação de certas regras do jogo estabelecido, mas sem deixar de jogar o jogo que elas sequer imaginam que possa ser interrompido, de tal modo sua integração ao sistema é consubstancial ao seu ser social. Às vezes, as divergências sobre as regras do jogo acarretam, no calor dos combates, enfrentamentos espetaculares que podem iludir sobre a natureza e a força das oposições.
Mas divergência não é dissidência e, mediante algumas concessões arrancadas dos dominantes, tudo acaba entrando na ordem. As classes abastadas e dirigentes aprenderam, há muito tempo, a gerenciar os sobressaltos e os ataques bruscos das populações que atrelaram ao carro de sua dominação. Sabem não só manejar a cenoura e o porrete, como também pôr em funcionamento, quando a situação exige, estratégias de união sagrada que, sob a aparência de defesa dos valores universais, colocam as classes médias sob a bandeira da ordem estabelecida que deve ser protegida contra um inimigo decretado bárbaro e arcaico. Atualmente, sabem fazer isso até em escala internacional, sob uma bandeira estrelada, de preferência.
Porém, seria impossível aos dominantes instaurarem sua hegemonia sem a colaboração complacente e diversamente interessada das várias frações das classes médias e, singularmente, das corporações que asseguram funções de enquadramento, de direção, de formação e de informação etc., obrigadas a servir para se servirem.
A ordem estabelecida no inconsciente
É necessário insistir nesse aspecto das coisas e, particularmente, no fato de que, realizando esse trabalho de manutenção da ordem simbólica indispensável ao reino dos poderosos, os executivos e os outros auxiliares da dominação conseguem convencer-se de que, realmente, defendem valores universais de liberdade, de justiça e de humanidade. Eles não têm – exceto em um ou outro caso particular de cinismo – o sentimento nem, com mais razão ainda, a vontade de servir a um sistema de exploração, de opressão e de corrupção pois, a seus olhos, tal sistema, por mais que seja objeto de uma reflexão explícita, é globalmente benéfico e conforme ao credo do catecismo neoliberal de que estão impregnados.
Não é da natureza da mobilidade social acarretar uma redistribuição geral dos capitais em cada geração nem conter os mecanismos de reprodução social
Assim como o conjunto das classes médias, condicionadas no e pelo próprio sistema, não consegue conceber claramente sua natureza. Os próprios investimentos que fazem no sistema dissimulam sua percepção objetiva. E só podem percebê-lo através dos clichês mágicos que servem para suavizar a impiedosa concorrência social e o reino iníquo da força.
O que faz a força da ordem estabelecida é, justamente, o fato de não ser estabelecida apenas no exterior dos indivíduos, mas instalada, simultaneamente, em suas cabeças e em suas vísceras, entranhada, incorporada, tornada carne e sangue, consciência e, sobretudo, inconsciente. De modo que, para servi-la, não é necessário refletir sobre isso expressamente; basta, ao contrário, deixar-se levar pela espontaneidade de seus hábitos e pela lógica de seus investimentos.
Uma mediocridade insuperável
O que exige um duro esforço não é pensar na e com a lógica do sistema, mas, sim, pensar contra, isto é, contra seus próprios condicionamentos. É muito difícil realizar esse trabalho de sócio-análise. Poucas pessoas o fazem e, dentre as que o fazem, poucas têm perseverança para continuá-lo. Sem dúvida porque ele muda, para mais ou para menos, a vida do interessado, perturbando as pequenas conciliações feitas com o mundo.
De qualquer maneira, essa hipótese tem toda a probabilidade de ocorrer nas classes médias, cujos membros amam seu destino social pelo que ele lhes oferece e, ao mesmo tempo, o detestam por tudo aquilo em que os frustra (e, ao contrário da idéia bastante aceita, o que os faz sentirem-se frustrados não é o não poder consumir mais e, sim, o saber confusamente que estão destinados a uma insuperável mediocridade).
Sem excessos de lucidez ou heresias
Seria impossível aos dominantes instaurarem a hegemonia sem a colaboração complacente e diversamente interessada das várias frações das classes médias
Seja como for, a maioria se contenta com pensar suas experiências em particular e o mundo em geral ao menor custo intelectual e afetivo, por meio de um arsenal ideológico de mitos e de lugares comuns constantemente revivificados e reatualizados por mídias bastante representativas, no conjunto, da espantosa atividade intelectual de quebra-galho, ao mesmo tempo heteróclita e preguiçosa, que caracteriza a cultura das classes médias e faz delas os comparsas e as vítimas de todas as imposturas.
A cultura das classes médias, da qual a imprensa – jornais e revistas – se alimenta, tematizando-a, fornece uma espécie de pensamento-pronto testemunhando, na realidade, a renúncia a um pensamento que registra aquilo em que o mundo se tornou, como se a História tivesse atingido seu estágio terminal e não houvesse mais nada a fazer senão arranjar e administrar o existente, aqui e agora, o mais esteticamente possível. A vacuidade teórica e a indigência filosófica da visão midiática da História só são igualadas pela visão do establishment político em geral.