O judiciário pune duplamente presas que são mães
O Marco Legal, que visa proteger a maternidade de mulheres mães em conflito com a lei, é deturpado na medida em que justamente o fato de a mulher ser mãe é mobilizado – por meio de julgamentos morais do judiciário – para reforçar sua punição.
Estamos no Fórum Criminal da Barra Funda. Ana atravessa o corredor de cabeça para baixo, algemada, trazida por um policial da carceragem até a porta da sala da audiência de custódia, onde permanece imóvel com a cara virada para a parede. É jovem, negra, mãe de dois filhos pequenos, e aguarda a chegada do defensor ou defensora pública que fará sua defesa. A acusação é de tráfico de drogas.
Na audiência, declara ao juiz que trabalha como consultora de vendas e recebe pouco mais de um salário mínimo mensal para manter sua família. Diz que os policiais que realizaram sua prisão em flagrante a ameaçaram dizendo que, como se tratava da segunda vez, iriam “tirar seus filhos”, e que se não “entregasse os outros”, iriam forjar provas contra ela.
Por ser mãe de crianças menores de 12 anos de idade, Ana teria direito a que uma eventual prisão preventiva fosse convertida em prisão domiciliar, de modo a garantir que seus filhos pudessem permanecer sob seus cuidados em ambiente adequado. É isso que diz o Marco Legal da Primeira Infância.
O Ministério Público, no entanto, após ouvir o relato de Ana a questiona – como quem sugere que ela não seria uma “boa” mãe – : “Seus filhos estudam? Qual o nome da escola que frequentam? Qual foi a última reunião de pais e mestres que a senhora foi? Com quem estão seus filhos neste momento?”. Apesar das respostas de Ana em voz baixa, mas imediatas e precisas, o Promotor pede ao juiz que determine a prisão preventiva. Isso significa que Ana ficaria presa em um estabelecimento prisional, separada dos filhos, pelo tempo que demorasse seu julgamento.
A fundamentação do Promotor de Justiça: “A prisão domiciliar não subtrai do magistrado a análise da especificidade do caso, sua aplicação não é automática. Qual a preocupação da acusada com os filhos? Fez da casa onde mora com os filhos um verdadeiro centro de distribuição de drogas. Trata-se de mero vínculo biológico e deixa a prole aos cuidados da avó materna. Sua liberdade não é necessária à proteção da maternidade que alega, nem de sua prole”.
O juiz passa a palavra à Defesa, que pergunta se os pais das crianças a auxiliam. Ana responde que “O de 6 anos não. O de 15 tem uma pensão de 150 reais”. Conta também que é solteira, sai para trabalhar ou passear mas que, embora possa contar com o apoio da avó materna, os filhos ficam com ela.
Por fim, chega a vez do juiz se posicionar. Insiste novamente em questionar Ana “Com quem estão seus filhos neste momento?”, ao que ela responde envergonhada “Com a minha mãe desde ontem, quando fui presa”. A juíza então determina sua decisão:
Como bem ressaltado pelo representante do MP, embora haja comprovação de um filho menor de 12 anos, é certo que a substituição da prisão preventiva pela domiciliar não é automática. Por outro lado, à luz do HC Coletivo 143.614 do STF, saliento que a situação é excepcional, eis que a autuada é reincidente e com ela, em decorrência de mandado de busca e apreensão decorrente de prévia investigação, foram encontradas drogas em vultosa quantidade, (…) exercendo relevante papel na associação (…). No mais, a toda evidência, a autuada mantinha em depósito a imensa quantidade de entorpecentes na presença de seus próprios filhos, de modo que a prisão domiciliar não se revela adequada. Dessa forma, entendo que não é o caso de substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar, sendo certo que, segundo declarado pela autuada, seu filho menor de 12 anos está neste momento sob os cuidados da avó materna..
Pesquisa
O relato acima faz parte das observações da pesquisa Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres, realizada pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC. A pesquisa analisou os casos de 201 mulheres em audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda (primeiro contato de mulheres presas em flagrante com um juiz ou juíza), 200 mulheres presas preventivamente no Centro de Detenção de Franco da Rocha em São Paulo e 200 mulheres que recorreram aos tribunais superiores (STF e STJ) pleiteando a aplicação da prisão domiciliar.

O perfil dessas mulheres é o mesmo do de Ana, e o mesmo dos dados nacionais sobre encarceramento feminino: as mulheres selecionadas pelo sistema de justiça criminal são majoritariamente negras, jovens, pobres, mães, e marcadas por uma série de vulnerabilidades socioeconômicas. Estão sendo processadas e presas por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, especialmente o tráfico de drogas, com penas máximas de até 4 anos.
A maioria delas é a principal responsável pelo cuidado e sustento dos filhos e sua prisão gera uma série de impactos para seu círculo familiar e comunitário, sendo certo que essa responsabilidade acaba recaindo sobre outras mulheres que compartilham da mesma realidade e das mesmas dificuldades.
Por entender que o encarceramento reforça o ciclo de vulnerabilidades em que essas mulheres negras, pobres e jovens estão inseridas, e que é absolutamente ineficaz na redução dos índices de violência, bem como para qualquer tipo de “ressocialização”, o ITTC defende o fortalecimento de medidas desencarceradoras.
Foi no contexto de crescente atenção a esses temas que surgiu a Lei 13.257/16, chamada de Marco Legal da Primeira Infância, que ampliou as possibilidades de aplicação da prisão domiciliar para mães com filhos até 12 anos ou com deficiência e gestantes.
Impacto no desencarceramento
A promulgação da Lei, no entanto, teve pouco impacto no desencarceramento de mulheres. Como a prisão domiciliar não estava sendo aplicada, o coletivo CADHU e a Defensoria Pública da União entraram com um habeas corpus coletivo no STF. A decisão do Ministro Lewandowski, relator da ação, concedeu a prisão domiciliar para todas as mulheres nessa situação, porém foi mais restritiva que a lei, porque abriu a possibilidade de algumas exceções em que a prisão domiciliar poderia não ser aplicada: para crime cometido com violência ou grave ameaça, crime contra os descendentes, em “situações excepcionalíssimas”, sem explicar quais seriam.
Mesmo assim, a decisão continuou não sendo cumprida. Uma nova manifestação, de outubro de 2018, trouxe dados do DEPEN que apontam que só 1% do total de mulheres presas foi beneficiada pela prisão domiciliar entre fevereiro e outubro de 2018. Diante dos inúmeros exemplos de decisões que vinham utilizando de forma arbitrária essas exceções, e que foram apresentadas por diversas entidades que figuram como amucis cuirae no processo, nessa mesma decisão, o Ministro esclareceu que a existência de antecedentes criminais, a reincidência, a entrada de drogas em unidade prisional, a apreensão de drogas no domicílio, a ausência de comprovante de trabalho, entre outras, não configuram situações excepcionalíssimas que ensejariam a negativa do direito.
Diante desse cenário, a pesquisa do ITTC buscou entender como tem sido aplicado o Marco Legal pelos atores do sistema de justiça criminal. E os achados demonstram a forte resistência do judiciário em reconhecer o direito a essas mulheres.
A justiça nega o direito à prisão domiciliar
Durante a pesquisa de campo nas audiências de custódia, foram assistidas 201 mulheres. A maioria das mulheres eram negras (56,22%), jovens (53,24% com idades entre 18 e 29 anos; outras 31,84% de 30 a 39 anos, e somente 14,94% acima de 40 anos), pobres (74% mulheres que declararam renda mensal disseram ganhar até R$ 1.000,00), com baixa escolaridade (dentre as 95 mulheres que declararam ter estudado, 34,74% delas indicaram ter Ensino Fundamental incompleto e outras 30,53% Ensino Fundamental completo. Somente 6,32% delas indicaram ter Ensino Superior completo) e mães (66,17%).
Esse perfil reforça a constatação de que a maioria dos crimes que ocasionaram a prisão em flagrante são para a complementação de renda. A suposta prática de um crime patrimonial (furto, roubo, estelionato e receptação) correspondeu a 60,70% dos casos, seguido do crime de tráfico de drogas (32,84%). Contudo, embora nas audiências de custódia a maioria das mulheres tenha sido presa em flagrante por crimes patrimoniais, os crimes que sofrem uma maior punição e levam a um número elevado de prisões provisórias são aqueles relacionados ao comércio de drogas, evidenciando como a “guerra às drogas” se concretiza no Poder Judiciário.
Dentre as 201 mulheres assistidas, foram identificados 120 casos que consistiam em potenciais beneficiárias da prisão domiciliar, ou seja, eram mães de crianças menores de 12 anos, e/ou de filhos e filhas com deficiência, e/ou estavam grávidas, e/ou eram responsáveis pelos cuidados de outros. Esses 120 casos representam 59,70% do total de 201 mulheres.
Para esse primeiro banco de dados, houve determinação da liberdade provisória em 65 dos 120 casos, o que representa 54,17%. Assim, as 55 mulheres restantes (45,83% de 120) tiveram decretada a prisão preventiva. Contudo, destas, somente 9 tiveram a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar e 46 tiveram a conversão negada. Isso significa que, das 55 mães de crianças menores de 12 anos ou com deficiência, gestantes e/ou imprescindíveis aos cuidados de outros que tiveram a prisão decretada e poderiam tê-la substituída pela prisão domiciliar, 83,64% tiveram o direito negado.
Marco Legal
Ainda, embora seja uma determinação do Marco Legal, 20% dos boletins não tinham registro de informações sobre a existência de filhos e contatos de responsáveis, e mais da metade deles eram de mães com filhos. Assim, as autoridades policiais, a quem a lei prevê um papel importante na identificação desses aspectos, não incorporaram a proteção da maternidade e da infância em suas práticas.
Já na segunda etapa da pesquisa, foram analisados os processos de instrução de 200 mulheres atendidas pela Defensoria Pública no Centro de Detenção Provisória Franco da Rocha. O perfil das mulheres segue o mesmo padrão. A maioria delas é negra (62%), jovem (54% delas com idades entre 18 e 29 anos), pobre, e mãe (64%). E, ratificando os dados sobre o sistema prisional, a maioria das mulheres está sendo julgada ou foi condenada por crimes relacionados ao tráfico de drogas (57%), seguidos de crimes patrimoniais (32,5%).
Dentre as 200 mulheres cujos processos foram analisados, identificou-se que 107 delas que teriam direito à prisão domiciliar. Dessas, 17 permaneceram em liberdade, restando 90, das quais 18 tiveram a prisão domiciliar concedida em algum momento do processo. Ou seja, das 90 que tiveram a prisão mantida (67,3% do total de 107), 72 (80%) não tiveram o benefício da prisão domiciliar aplicado em algum momento do processo entre a decretação da prisão preventiva e a sentença.
Importante destacar que somente 43,93% das 107 potenciais beneficiárias da prisão domiciliar tiveram especificamente a questão da maternidade e da domiciliar discutidas no decorrer do processo. Tais números demonstram como o Marco Legal ainda não tem sido efetivamente incorporado na análise dos casos concretos, de modo a trazer à luz informações sobre a condição da mãe para proteger sua condição específica e de suas crianças.
Além disso, a partir da ficha de atendimento da Defensoria Pública, verificou-se que muitas delas sofreram vários tipos de violência: 27% afirmaram ter sofrido alguma violência, sendo que 11% correspondem a agressão física, 7,50% correspondem a mais de uma forma de violência perpetrada concomitantemente e 7,50% não descreveram a violência alegada.

Gênero é elemento central na violência
A maioria dos relatos apontam que o gênero é elemento central na violência perpetrada. Na última etapa da pesquisa foram analisadas 200 decisões do STF ou STJ, todas relativas a mulheres que teriam direito à prisão domiciliar. Na maioria dos casos (116) concedeu-se a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, o que corresponde a 58,00% das decisões. Do total de 200 mulheres potenciais beneficiárias, 11 não permaneceram presas. Das 189 mulheres restantes, 116 tiveram concedida a domiciliar e 73 tiveram o pedido negado. Assim, a taxa de concessões de prisão domiciliar nos Tribunais Superiores é de 61,37% e a de negativas é de 38,62%.
Chama a atenção que hajam mais concessões de prisão domiciliar nas instâncias superiores, ao passo que, nessas mesmas instâncias, há uma crescente descaracterização da pessoa ré, que passa a ter seu perfil socioeconômico e racial muito menos especificado, pela natureza dos recursos.
O afastamento gradual das características concretas, conforme “sobem” as instâncias judiciais, e o fato de que, quanto mais alta a instância, mais a mulher se torna “abstrata”, faz com que as mulheres se aproximem da “abstração” formal que é própria da igualdade jurídica que marca os textos legais. Assim, quanto mais “abstratas” essas mulheres, mais são reconhecidas enquanto mães (dentro de um ideal abstrato) a serem protegidas pela Justiça, fato muito distinto do que ocorre nas audiências de custódia, em que as mulheres encontram-se fisicamente diante dos juízes e juízas. Isso nos leva a supor que os elementos de raça e classe, quando mais evidentes, afastam mais a aplicação da prisão domiciliar, porque mais “nítidas” e acessíveis estão as características das mulheres para quem as julga.
Outro aspecto relevante é que a maioria das mulheres que acessam os Tribunais Superiores possui defesa particular. Apenas 26% das mulheres foram assistidas pela Defensoria Pública de seus respectivos Estados, enquanto 74% das mulheres possuíam advogado ou advogada constituído.
Assim, diferentemente do observado durante as audiências de custódia e no curso do processo de instrução e julgamento, a maioria das mulheres que alcança os Tribunais Superiores teve condições financeiras ou realizou um esforço financeiro para contratar advogado ou advogada que realizasse sua defesa nessas instâncias. Nesses casos foram observadas mulheres que eram funcionárias públicas, esposas de políticos ou acusadas de crimes de colarinho branco, o que não foi verificado nas etapas anteriores. Infere-se, portanto, que, embora nos Tribunais Superiores haja mais chances de se obter a prisão domiciliar, eles são menos acessíveis.
Por fim, existe também uma desigualdade regional no acesso à justiça. Verificamos que 52% dos processos originam-se em São Paulo, número que não acompanha a proporção de processos criminais existentes nos Estados, segundo os dados do relatório Justiça em Números elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça.
Julgamento moral
Existe um traço comum entre as três amostras analisadas pela pesquisa, que está relacionado ao tipo de argumentos utilizados para negar a prisão domiciliar. A criminalização de determinadas condutas (em especial o tráfico de drogas) se conjuga com a “cobrança” da adequação a um ideal de maternidade. Assim, a mulher é julgada não apenas por “infringir a lei”, mas por descumprir a conduta de “mãe” socialmente esperada e imposta.
Isso faz com que o Marco Legal, que visa proteger a maternidade de mulheres mães em conflito com a lei, seja deturpado, na medida em que justamente o fato de a mulher ser mãe é mobilizado – por meio de julgamentos morais – para reforçar sua punição. Frases como: “estava traficando em vez de cuidar dos filhos”; “deixou os filhos para cometer crime”; “mostra descaso com os filhos” foram reiteradas na observação em campo.
Contudo, ao dizer isso, os juízes e juízas não comprovam porque a mãe estaria sendo displicente (inclusive, se realmente fosse o caso, isso deveria ser discutido em processo próprio, fora da esfera criminal). O fato de cometer crime não quer dizer que a mulher não tenha cuidado com os filhos. Ademais, num contexto de responsabilidade exclusiva pelos cuidados e criação dos filhos, de ausência de emprego e oportunidades, de inexistência de serviços públicos como creche, escola, assistência social, e de falta de uma rede de apoio, muitas vezes é a própria busca por condições de sustento para as crianças que leva ao cometimento de crimes.
Ainda, houveram juízes e juízas que explicitamente davam uma “lição” para “corrigir” a conduta da mãe com frases como: “se você continuar cometendo crimes, não vai ter filho que te tire da cadeia!”, ou “você vai perder seu filho!”. Essa postura demonstra uma vontade de regular a maternidade da mulher através da sanção penal.
Vínculo
Outro aspecto relevante é a compreensão de que se há outras pessoas que possam ajudar nos cuidados (na maioria das vezes a mãe da mulher e avó das crianças), o vínculo com a mãe seria dispensável e não haveria razão para conceder a prisão domiciliar. Além de desconsiderar a importância do vínculo entre a mãe o filho, essa avaliação faz com que o Judiciário se arrogue o poder de transferir a outras mulheres – que não foram ouvidas, nem fazem parte do processo criminal – a responsabilidade pelos filhos da mãe presa. Com isso, é reproduzida e reforçada a ideologia machista – que tem efeitos concretos bastante penosos – de que os cuidados com outros são “naturalmente” femininos.
Assim, a pesquisa pôde verificar que há entre os juízes um anseio em “combater a criminalidade” impondo penas severas e punindo a mãe com o julgamento sobre o exercício de sua maternidade. Note-se que são apenas alguns tipos de crimes (sobretudo o tráfico de drogas), cometidos por uma parcela específica de mães (negras e pobres), que fazem com que a maternidade seja deslegitimada e considerada menos passível de proteção.
O fato ser mãe e cometer crime (representa uma “afronta” tão grande – se cometido por mulheres negras e pobres – ao papel ideal de mãe que a sociedade impõe) que faz com que ela não seja “merecedora” da manutenção do vínculo com seus filhos, e, portanto, tenha negado o direito à prisão domiciliar.
Maternidade sem prisão
Apesar de todos os obstáculos identificados pela pesquisa, também foram verificadas decisões dissonantes. Foi interessante notar que, quando a especificidades da maternidade são realmente observadas, os juízes e juízas muitas vezes optam por conceder a liberdade. Como a maioria das mulheres está presa por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, com penas menores de 4 anos, e sem nenhuma condenação anterior, a liberdade – segundo o Código de Processo Penal – deveria ser a regra. Num contexto em que as prisões provisórias são excessivamente utilizadas, levar em conta a condição de mãe da mulher potencializa decisões não privativas de liberdade.
Portanto, o Marco Legal da Primeira Infância, se realmente aplicado, possui um potencial desencarcerador. Contudo, é preciso dizer que a prisão domiciliar também tem suas limitações. Apesar de ser cumprida em casa, ela não deixa de ser uma prisão.
Muitas das decisões analisadas que concederam a prisão domiciliar não deixam claro se a mulher pode ou não desempenhar atribuições necessárias aos cuidados dos filhos como, por exemplo, trabalhar para sustentá-los, levá-los à escola, ir ao médico, ir ao mercado comprar as coisas necessárias pra casa, etc., ou então fixam parâmetros extremamente restritivos.
Desse modo, a mulher é impedida justamente de exercer a maternidade (que é o que o Marco Legal visa proteger) e isso pode levar ao risco de novas prisões, na medida em que, por exemplo, se a mulher for abordada na rua indo ao banco pagar boletos, ela poderá ser presa. Assim, a prisão domiciliar não deve limitar a liberdade para desenvolver atividades inerentes à reprodução de sua vida e de seus filhos e filhas, sob risco de perder sua própria razão de ser.
Por uma sociedade sem prisões
A população negra sofre com um profundo e histórico processo de violências a alijou do acesso a uma série de direitos e impôs o genocídio e o cárcere como regra para lidar com os conflitos sociais oriundo das profundas desigualdades raciais e sociais que marcam nossa sociedade. Para as mulheres negras e pobres isso se dá de forma particularmente violenta, na medida em que se soma às desigualdades de gênero. Sua maternidade é negada, pois que não possuem acesso à saúde, educação, creche, assistência social, vivem o abandono dos pais das crianças, são as maiores vítimas da violência doméstica e sexual, recebem os menores salários, nos trabalhos mais precarizados, e ainda correm o risco de ter a vida de seus filhos e filhas ceifados pela letalidade policial. Quando são presas, essa maternidade é cobrada do Judiciário (branco e elitista) e é mobilizada de forma moralista para reforçar sua punição.
Defendemos que a maternidade seja levada em conta para fortalecer o desencarceramento das mulheres alvo do sistema penal, pois, como dito anteriormente, a maternidade é incompatível com o cárcere.
Contudo, é preciso ampliar o olhar para a verdadeira barbárie que as prisões impõem à população por elas “selecionadas”. O cárcere é parte de históricas políticas repressivas direcionadas a uma parcela específica da população, e que não tem qualquer perspectiva de prevenir e combater conflitos e violência, mas, ao contrário, é agente ativo da construção dos mesmos.
Assim, esperamos que a pesquisa Diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância possa contribuir com reflexões para uma agenda mais ampla contra o encarceramento em massa, defendendo que o cárcere é incompatível com a sociedade que almejamos.
Irene Maestro S. dos S. Guimarães e Amanda Caroline A. P. Rodrigues são pesquisadoras do Programa Justiça Sem Muros do ITTC.