O julgamento no STF e as expectativas brasileiras
O deferimento do pedido formulado pela Defensoria Pública de São Paulo pode resultar na completa extinção das penas impostas pela Lei de Drogas ao usuário
Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, em resposta a pedido formulado pela Defensoria Pública de São Paulo no RE 635.659, tenta julgar a inconstitucionalidade de punir o porte de drogas para consumo pessoal. O anúncio de que o processo seria recolocado em pauta em maio de 2023 causou imenso movimento da sociedade civil brasileira.
Passados doze anos, sequer se pode falar que vivemos no mesmo Brasil de quando o julgamento foi iniciado. Desde então o cenário alterou-se muitíssimo: em 2015, regulamentamos a prescrição e comércio de cannabis medicinal no país.
No Brasil temos o costume de dizer que o STF, muito mais do que ser um órgão judicial, é também um órgão político. Como instância final do Judiciário brasileiro, muito mais do que julgar processos, o Supremo pode ditar os caminhos a serem tomados pela política pública.
A própria composição da corte reflete essa questão. Os ministros são indicados pelo presidente da República e têm participação ativa na pauta de julgamento do tribunal. É comum que o ministro realize pedido de vistas de um processo, peça mais tempo para estudar o caso e proferir seu voto. Até 2022 o pedido de vistas não tinha limitação de prazo, o que causava lentidão sistêmica de processos de alta complexidade social.
O deferimento do pedido formulado pela Defensoria Pública de São Paulo pode resultar na completa extinção das penas impostas pela Lei de Drogas ao usuário. As penas previstas na Lei de Drogas envolvem desde uma simples advertência até uma imposição de comparecimento a programa educativo sobre os efeitos das drogas. Porém, nada de prisão.
A maior crítica da legislação antidrogas brasileira é que ela não estabelece requisitos objetivos para diferenciar o uso pessoal do tráfico. São inúmeros os casos que chegam aos tribunais brasileiros em que se busca a condenação por tráfico de drogas ou porte para uso de pessoas detidas com quantidade ínfimas de drogas, às vezes menos de um grama de substância ilegal.
Em razão da importância do tema debatido nesse processo, o STF reconheceu a sua Repercussão Geral, instrumento voltado para decidir temas repetitivamente debatidos nos tribunais. Isso significa que a decisão proferida no caso será aplicada em todos os processos judiciais brasileiros que envolvem o tema.
A questão penal do Brasil é gravíssima. Em 2022 o número de presos no país totalizou 661 mil pessoas. Conforme o Departamento Penitenciário Nacional, nesse mesmo ano o número de pessoas presas por assuntos relacionados a drogas totalizava 197 mil, quase um terço do total.
Uma pesquisa feita pelo Ipea concluiu que a maioria dos processos por tráfico de drogas acontece após apreensões de quantidades pequenas das substâncias. Em 58,7% dos casos por tráfico de maconha, por exemplo, foram apreendidas menos de 150 gramas.
O Instituto concluiu, por exemplo, que se o STF usasse o mesmo limite determinado em Portugal para uso pessoal (25 gramas de cannabis), 27% dos condenados no Brasil teriam direito à revisão da sua pena.
Todos esses números revelam o maior absurdo da política antidrogas brasileira: um número relevante de apreensões envolve pequenas quantidades de produto ilegal. Pune-se mal. Um desperdício da atenção das forças policiais e de dinheiro público.
Dada a lentidão histórica do STF no julgamento de casos sensíveis e de amplos efeitos sociais, o maior receio da sociedade civil que luta por uma política mais inteligente quanto às drogas é que mesmo em pauta o processo não seja julgado e finalizado tão rapidamente.
Apesar disso, nos últimos anos o Judiciário brasileiro deu decisões históricas em relação à cannabis no Brasil. Um exemplo disso é que mesmo sem a existência de uma lei que autorize o cultivo pessoal medicinal, por exemplo, os tribunais brasileiros têm permitido e protegido pacientes que cultivam cannabis com prescrição médica.
O julgamento do RE 635.659 representa um marco importante para uma compreensão jurídica mais inteligente da maconha e outras drogas no Brasil. Demonstra também que a sociedade brasileira está cada vez mais atenta à política de drogas e seus efeitos nefastos na sociedade.
De qualquer forma o assunto da maconha no Brasil segue em alta. Com o aprofundamento da regulação da cannabis medicinal desde 2015, o país tem se aberto pouco a pouco às empresas do setor e já demonstra a força e tamanho do mercado brasileiro, que avidamente busca por uma ampliação do acesso à maconha em geral.
Murilo Meneguello Nicolau é advogado especialista no setor da cannabis, formado em direito pela PUC/PR e mestrando em direito negocial com foco na regulamentação da cannabis pela UEL/PR.