O legado do bolsonarismo na política mineral brasileira
Os dados do relatório “Dinamite Pura” indicam que a política mineral é um dos grandes desafios de governabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não será possível cumprir as metas de desmatamento zero e de redução das emissões de gases que provocam a emergência climática sem retomar a governança sobre o setor mineral
Vários ministros que participaram da gestão de Jair Bolsonaro — além do próprio ex-presidente — ganharam destaque com declarações grotescas. O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por exemplo, pregou a “boiada” em defesa do crime ambiental. Já a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e atual senadora Damares Alves propagou mentiras horríveis sobre abuso sexual de menores de idade na Ilha de Marajó. Paulo Guedes, vivendo em uma realidade paralela no Ministério da Economia e ignorando mais de 30 milhões de brasileiros passando fome, disse que seria ovacionado ao passear no supermercado.
Bem mais discreto e estratégico, o almirante Bento Albuquerque, que atuou como ministro de Minas e Energia de Bolsonaro entre janeiro de 2019 e maio de 2022, passou quase incógnito. Albuquerque, que teve que lidar com o crime da Vale em Brumadinho nas primeiras semanas de governo, foi um dos principais operadoradores da política mineral que expandiu o garimpo ilegal em terras indígenas, esvaziou as agências federais de controle e estendeu o tapete vermelho para o lobby da mineração transnacional nos últimos quatro anos.
O ex-ministro, porém, só ficou famoso ao se envolver na escandalosa tentativa de burlar a Receita Federal no caso do contrabando de joias presenteadas pelo governo saudita ao casal Bolsonaro, revelado no início de 2023. O nome de Bento Albuquerque, até então praticamente desconhecido do grande público, apesar das graves consequências de sua gestão à frente do MME, ganhou manchetes e virou alvo de inquéritos policiais. Seria irônico, se não fosse duplamente trágico.
Como tudo que o bolsonarismo tocou, o legado da política mineral do último governo é de destruição, materializando-se na crise humanitária em curso nas Terras Indígenas Yanomami, na invasão de garimpeiros, na ausência de fiscalização de barragens e no descontrole generalizado do uso de terra para empreendimentos de mineração. É o que detalha o relatório “Dinamite Pura: Como a política mineral do governo Bolsonaro (2019-2022) armou uma bomba climática e anti-indígena”, lançado no final de março pelo Observatório da Mineração e Sinal de Fumaça – Monitor Socioambiental.
O relatório, em edição bilíngue (português e inglês), apresenta uma linha do tempo das principais medidas administrativas e legislativas implementadas na gestão Bolsonaro. O levantamento mostra o resultado da combinação explosiva entre o desprezo pelos direitos territoriais e humanos e uma sofisticada estratégia de influência corporativa, descrevendo como o ex-presidente impulsionou medidas iniciadas ainda no governo Michel Temer, no intuito de aumentar a participação do setor mineral no PIB dos atuais 3% para 10% — a um altíssimo custo socioambiental.
Ao narrar os fatos em ordem cronológica, “Dinamite Pura” desenha um contraponto à imagem de “ineficaz” frequentemente associada à gestão Bolsonaro. Na política mineral, ficam explícitas as duas faces da doutrina de choque aplicada com eficiência pelo bolsonarismo no poder.
Por um lado, o apoio escancarado aos garimpeiros, que tiveram trânsito livre nos gabinetes palacianos em Brasília, voaram em aviões da FAB e integraram comitivas oficiais do governo em rodadas internacionais de negócios. É provável que o “garimpo” tenha sido o setor com maior crescimento político e econômico durante a última legislatura. O quadro fascista se completa com a banalização do genocídio indígena por omissão deliberada e a postura inerte das Forças Armadas em relação aos mais de 2.500 pontos de garimpo ilegal e tráfico de ouro na Amazônia brasileira — mesmo com decretos de Garantia de Lei e Ordem em pleno vigor na região.
Por outro, a execução de um plano que incluiu reuniões com representantes de instituições da indústria mineral, encontros com embaixadores e CEOs das maiores empresas transnacionais da mineração, contratação de consultoria da OCDE para, literalmente, “guilhotinar” regulamentações, além de stands e rodas de conversa no Prospectors & Developers Association of Canada (PDAC), maior evento de mineração do mundo realizado anualmente no Canadá. O poder econômico do setor também se refletiu em forte articulação no Congresso Nacional, ilustrada pelo lançamento da Frente Parlamentar da Mineração em junho de 2019, reunindo centenas de deputados e senadores.
Essa reunião de lobistas acaba de passar por um rebranding, assumindo o nome de “Frente Parlamentar da Mineração Sustentável”, liderada por políticos que atuam abertamente a favor da mineração e do garimpo, como o senador Zequinha Marinho (PSC/PA). O evento de lançamento correu sob aplausos de grandes empresas como Vale, Mosaic Fertilizantes, Gerdau, AngloGold Ashanti, Anglo American, Hydro, Lundin Mining, Alcoa, BHP Brasil e com as bênçãos do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que representa 90% da grande mineração praticada em solo brasileiro.
A mudança na organização do lobby mineral no Congresso, apostando forte no greenwashing “sustentável”, indica a nova correlação de forças a partir do terceiro governo Lula. O Ibram, liderado pelo experiente político Raul Jungmann, se aproximou do atual governo do PT desde a transição. Enquanto o combate ao garimpo ilegal foi eleito como prioridade do governo Lula, contando com o apoio do instituto, o grande lobby mineral é tratado de forma bem diferente e fez parte de uma “missão internacional” enviada ao PDAC 2023 no Canadá, formada por representantes do governo, executivos de mineradoras e organizações patronais, para abrir novas frentes de exploração no Brasil. Exatamente a mesma estratégia adotada nos últimos quatro anos de Jair Bolsonaro.
Os dados do relatório “Dinamite Pura” indicam que a política mineral é um dos grandes desafios de governabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não será possível cumprir as metas de desmatamento zero e de redução das emissões de gases que provocam a emergência climática sem retomar a governança sobre o setor mineral.
Isso vai muito além da desintrusão garimpeira e da demarcação e proteção das terras indígenas, como já começou a acontecer. Passa, especialmente, pelo enfrentamento do poderoso lobby global da indústria de mineração, pelo licenciamento ambiental livre de vícios e interesses, com fiscalização em todas as instâncias e o respeito à consulta livre, prévia e informada, além da garantia de participação social nas decisões sobre a política mineral nacional.
Até o momento, com exceção do garimpo, Lula, o Ministério de Minas e Energia liderado por Alexandre Silveira (PSD), a Agência Nacional de Mineração e o Serviço Geológico Brasileiro vão na direção contrária.
No Congresso, é preciso engavetar projetos de lei que reafirmam a bomba climática e anti-indígena detalhada pelo relatório “Dinamite Pura” – caso do PL 191/2020, que autoriza mineração, garimpo, agronegócio e hidrelétricas em terras indígenas, e do PL 2159/2021, considerado o pior texto já feito para o licenciamento ambiental. Rever as premissas do Novo Código de Mineração encaminhado na Câmara, elaborado por deputados aliados ao lobby mineral, também é fundamental.
Em 2021, mais de 760 mil pessoas foram afetadas por projetos e conflitos relacionados a garimpo e mineração no país. Os impactos diretos e indiretos da mineração, porém, atingem toda a sociedade. Pelo menos metade do ouro exportado pelo Brasil tem origem suspeita. Nós já sabemos o que o governo passado fez na política mineral brasileira. Resta saber o que o governo Lula, o Congresso e toda a sociedade farão para interromper e reverter esse ciclo de destruição e pilhagem do patrimônio nacional.
Maurício Angelo é diretor do Observatório da Mineração e pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.
Rebeca Lerer é jornalista e coordenadora do Sinal de Fumaça – Monitor socioambiental.