O libertador no trono do tirano
Mais de seis meses após a invasão do Iraque, são raras as reportagens que sugerem apoio ou adesão às forças norte-americanas. Prevalecem as críticas e expressões como “a situação está pior do que antes” ou “eles são como Saddam”…David Baran
Aqueles que denunciaram a ilegitimidade e a arrogância da guerra dirigida pelos Estados Unidos no Iraque encontram uma espécie de reconforto ou de confirmação na acolhida morna que a população reserva às forças invasoras. A constante atenção da mídia da qual o país continua a ser objeto veicula a imagem de uma população descontente, indignando-se com os erros cometidos, reivindicando direitos aparentemente conspurcados, expressando sua lucidez quanto às intenções do governo norte-americano… Raras são as reportagens sugerindo qualquer tipo de adesão aos projetos do invasor. As críticas prevalecem amplamente sobre a adesão. Surgem, com freqüência, expressões como “a situação é pior do que antes da guerra”, “os norte-americanos são como Saddam” etc.
Essas comparações são perturbadoras quando vêm de indivíduos que não tiraram nenhum proveito do regime anterior. Nunca os invasores, sensíveis à presença da mídia, cometerão crimes semelhantes aos do poder derrubado. A despeito das prisões arbitrárias, dos casos de tortura denunciados pela Anistia Internacional e das restrições impostas à imprensa, é difícil assimilar os maus tratos das forças de ocupação à conduta de um exército em campanha. Basta evocar as forças russas na Chechênia, os soldados israelenses na Palestina ou mesmo as forças norte-americanas no Afeganistão1…
Inércia e conformismo
Às vezes, repetem-se métodos do regime anterior: a destruição das plantações de Dhulu?iya lembra os palmeirais arrasados em 1991 pelo exército de Saddam
A repressão da oposição armada acarreta, evidentemente, inúmeros excessos. Os suspeitos presos são, amiúde, tratados com brutalidade. Durante as incursões do exército norte-americano, o mobiliário das casas revistadas é destruído, as economias em dólares dos moradores são, às vezes, pilhadas. Alguns iraquianos se queixam de haverem sido submetidos a uma humilhação extrema, o rosto esmagado pela bota de um soldado. Algumas práticas chegam a reproduzir os métodos do regime anterior: a destruição das plantações de Dhulu?iya, santuários de opositores armados, lembra os palmeirais arrasados em 1991 pelo exército de Saddam Hussein. A prisão, como moeda de troca, das mulheres de pessoas procuradas remete a um princípio de culpabilidade coletiva segundo o qual uma família e até uma tribo inteira podem sofrer as conseqüências pelo comportamento de um de seus membros.
Mas os opositores armados e seus partidários compreenderam que nunca seriam torturados segundo técnicas que desafiam a imaginação, que suas esposas nunca seriam violadas diante deles, que seus pais e filhos nunca seriam executados. Bem no fundo, cada um sabe que a era do terror acabou. Desse modo, os abusos contra os quais a mídia estrangeira fica indignada – e com razão – suscitam, no Iraque, pouco mais que um protesto de princípio. A defasagem entre as descrições jornalísticas de uma escalada da violência e a inércia dominante entre a população transparece, aliás, no sentimento alimentado, há meses, de uma insurreição iminente e cujo horizonte é continuamente adiado. Tudo isso não impede as testemunhas dos atentados antiamericanos de manifestarem sua alegria até diante das câmeras das televisões estrangeiras: ao ver caminhões queimados ou helicópteros derrubados, o sentimento dominante, com toda a evidência, não é a tristeza…
Os “muros de Berlim”
Mas os opositores perceberam que não enfrentariam uma tortura brutal, que suas esposas não seriam violadas, que seus pais e filhos não seriam executados
Donde um paradoxo: como uma população, em condições tão favoráveis ao protesto, pode se entregar a uma crítica rigorosa do invasor e, ao mesmo tempo, tolerar amplamente essa invasão? Para responder, é necessário levar a sério o paralelo efetuado espontaneamente pelos iraquianos entre o regime anterior e os novos dirigentes.
Em primeiro lugar, encontra-se o fato de que o governo civil e as forças militares norte-americanas adotaram e intensificaram a política, legalizada na época da tirania, de conferir status de santuário a locais, construções, territórios. Não só ocuparam os palácios presidenciais e os locais do Partido, como também tomaram posse de alguns hotéis, escolas e complexos habitacionais. As medidas de segurança garantindo a proteção desses locais estratégicos são draconianas. Atualmente, para enfrentar eventuais ataques com carros-bomba, Bagdá é cortada por imensas fortificações de concreto, apelidadas pelos iraquianos de os “muros de Berlim”. Atravessar essas barricadas implica procedimentos rigorosos de segurança e um status privilegiado.
O poder, refugiado nesses asilos, se mostra tão opaco quanto inacessível aos iraquianos comuns. As verdadeiras capacidades de decisão estão concentradas nas mãos de um único homem, Paul Bremer, isolado da população por seu próprio dispositivo de segurança e por um círculo de conselheiros que se parecem com os sicofantas da tirania. Todos vivem e operam protegidos por esses santuários, circulando entre um e outro em comboios armados cuja passagem provoca uma certa angústia entre os usuários comuns da malha viária. Dessa maneira, decisões radicais são tomadas à sombra das muralhas e são o resultado de processos políticos cujas modalidades se mantêm essencialmente obscuras.
Equívocos e interesses particulares
Tudo isso não impede as testemunhas dos atentados antiamericanos de manifestarem sua alegria até diante das câmeras das televisões estrangeiras
Arbitrárias na aparência, essas decisões dão igualmente a impressão de ser revogáveis ao sabor do acaso, de tal forma as contradições e recuos foram numerosos até agora. Os iraquianos continuam, pois, a viver a política baseada nos boatos, nas fugas reais ou imaginárias, nas teorias vagas. Vêem o atual governo em formação como uma instituição de fachada, submetida ao diktat da autoridade norte-americana, como os ministros eram antes, a Saddam Hussein. O afastamento estrutural do poder conjuga-se com a ausência de uma política séria de comunicação voltada para a população para criar um contexto favorável a todas as especulações sobre as intenções do invasor.
Os iraquianos projetam sobre os novos dirigentes uma cultura política herdada do regime anterior. Aí está um elemento de continuidade primordial, pois determina representações que concordam com a experiência vivida sob a tirania. Um equívoco exemplar pode servir para ilustrar essa situação: quando o exército norte-americano, convocando a população a colaborar na área da segurança para facilitar a reconstrução, colocou cartazes com o slogan “tragam-nos a paz, nós lhes traremos a eletricidade”, muitos iraquianos entenderam que a eletricidade estava disponível? e que os cortes eram apenas sanções. Pode-se imaginar o efeito dessa inabilidade numa cidade como Falluja, que se sente exatamente como objeto de afrontas injustificadas2.
O invasor, em seguida, se adapta ao regime anterior por sua propensão em defender prioritariamente seus interesses particulares, sob o disfarce de um discurso, na forma, sobre o interesse geral. A segurança dos residentes norte-americanos sob proteção diplomática, nova elite no poder, domina qualquer outra consideração. As forças de ocupação substituem, então, os iraquianos em postos mais arriscados, por soldados norte-americanos, principalmente nas barreiras. Das instruções para atirar, demasiado permissivas, resultam numerosas vítimas civis. Entretanto, esses sacrifícios são apresentados como necessários, num jargão que recusa qualquer diagnóstico que seja minimamente objetivo da oposição armada (leia, nesta edição, artigo de David Baran sobre a oposição armada). Esta é, sistematicamente, assimilada a uma agressão contra a própria população. No discurso oficial, os “ba?athistas3” e os “terroristas”, sob a designação genérica de bad guys, agiriam, antes de tudo, contra o povo iraquiano.
Os imperativos midiáticos
Como pode uma população, em condições tão favoráveis ao protesto, criticar com tanto rigor o invasor e, ao mesmo tempo, tolerar amplamente a invasão?
O Iraque também seria agredido, ameaçado por algum inimigo inatingível, fonte de toda estagnação. Só a eliminação de tal inimigo permitiria abrir uma nova era de progresso. O povo deve, portanto, compreender que seus sofrimentos são transitórios, enquanto o poder se dedica e se sacrifica por essa luta essencial. Encontra-se aí, em substância, o discurso mantido por Hussein a respeito do embargo. Para Bremer, “o que importa é a liberdade. [?] É essencial ir além da violência e da penúria e lembrar toda uma série de direitos que os iraquianos gozam hoje graças à vitória da coalizão4
“. Evidentemente, “a perda de vidas inocentes é uma tragédia para todos os afetados. Mas seu número é, na verdade, extremamente limitado5“. Na realidade, seu número continua desconhecido por falta de um dispositivo para calcular essas perdas e de pesquisas públicas sobre os “erros”.
De modo geral, o invasor nega firmemente qualquer responsabilidade na violência e nos distúrbios. Os imperativos midiáticos do governo norte-americano proíbem qualquer confissão de culpa. Ao contrário, ele vai buscar nos sofrimentos passados e presentes dos iraquianos fontes preciosas para fins de propaganda. As valas comuns, principalmente, foram abertas sem nenhuma classificação, em detrimento de uma documentação precisa podendo desembocar em processos. Pouco importa o processo de reconciliação nacional! Da mesma forma, os filhos de Hussein foram executados gratuitamente, quando a casa que ocupavam poderia ter sido cercada sem dificuldade.
Expectativas modestas e pragmáticas
A verdadeira capacidade de decisão está concentrada nas mãos de um único homem, Paul Bremer, isolado da população por um dispositivo de segurança pessoal
O sentido das provações sofridas pela população não é pervertido só pelos interesses superiores dos ocupantes. A polícia, apenas reativada, já está comprometida por suas tarefas de proteção das bases norte-americanas. Os serviços de informação, cuja ilegitimidade passada é um desafio para o futuro, reconstituem-se progressivamente sobre bases ambíguas. Falta supor que o calendário eleitoral se deva integrar à estratégia presidencial de George W. Bush, como sinal de uma “democratização” do Oriente Médio. Isso indica até que ponto o cenário político iraquiano está dominado por interesses específicos dos invasores. Enfim, o governo norte-americano em Bagdá colocou-se numa situação tão singular quanto inesperada, revestindo-se de inúmeras características da “presidência” (diwan al-re?asa), depositária da real autoridade sob o reinado de Hussein.
Tal separação se dá entre um poder efetivo, que dispõe de recursos espetaculares, e um aparelho de Estrado destruído. Enquanto a população está entregue a si mesma, os palácios abrigam os membros de uma casta privilegiada. Cercada por homens armados dedicados à sua causa, ela se apodera dos bens disponíveis segundo modalidades (despesas de funcionamento exorbitantes ou corrupção, para falar de modo claro) que não deixam de ser parecidas com a antiga lógica de predação.
A partir disso, chega-se então ao principal fator de continuidade com a tirania anterior. A população, esgotada pelo reinado de Hussein, preocupada antes de tudo com sua sobrevivência cotidiana, continua igualmente desmobilizada. Ela se diz impotente diante do poder. Seu sentimento em relação à sua própria pátria, a seus recursos e a seu destino lhe é demasiado familiar para lhe ser insuportável.
Desse modo, as expectativas expressas pelos iraquianos são de uma modéstia e de um pragmatismo quase inconcebíveis para observadores estrangeiros. Uma frase estereotipada pode ser suficiente para resumi-las: “Tudo bem, os norte-americanos querem explorar nosso petróleo. A gente já não aproveitava mesmo dele na época de Saddam; então, desde que nos deixem um pouco de petróleo…”
O medo do caos
A população, esgotada pelo reinado de Saddam Hussein, preocupada antes de tudo com sua sobrevivência cotidiana, continua igualmente desmobilizada
Em tal contexto, os progressos laboriosos realizados pelas forças de ocupação tiveram efeitos multiplicados. Inversamente, os inúmeros erros que elas cometem, alguns dramáticos, como a dissolução do exército, têm repercussões atenuadas. É verdade que importantes autoridades religiosas foram presas, assim como eminentes chefes de tribos. Os erros continuam. Casualmente, os passageiros de um carro são esmagados por um blindado… Mas nada parece poder desencadear verdadeiras rebeliões nem mesmo manifestações de mais de alguns milhares de participantes.
A idéia popular segundo a qual o ex-presidente iraquiano teria preparado o terreno para o ocupante não é, pois, sem fundamento. Seu reinado atingiu tão fortemente a integridade da população iraquiana, que ela só poderia ser reagrupada sob o nome de “nação” de maneira provisória. Atualmente, os iraquianos temem quase de forma unânime a partida antecipada dos norte-americanos, o que os faz terem medo das perspectivas de uma guerra civil. As forças de ocupação se beneficiam, assim, da mesma fonte de legitimidade que o regime anterior6, isto é, o medo do caos.
O paralelo com a situação anterior acaba aí. As forças de ocupação não têm vocação, diferentemente do regime anterior, para se impor a qualquer preço à população. A maior parte de suas tropas será retirada. O governo norte-americano encontrará meios mais sutis do que a ocupação para defender seus interesses no Iraque. E mais, seus objetivos atuais, graças às pressões que pesam sobre a equipe dos falcões, são portadores de esperança para a população iraquiana. Evidentemente, as preocupações eleitorais de Bush continuam a prevalecer, mas o sucesso de seu empreendimento lhe é indispensável… e este sucesso passará por uma transferência, com êxito, do poder aos iraquianos.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
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1 – Ler, de Jamie Doran, “Chacina no Afeganistão”, Le Monde diplomatique, setembro de 2002 e, de Laurence Jourdan, “Crimes impunis en