O lucro comanda os bancos de genes
Os diagnósticos genéticos trazem benefícios importantíssimos à saúde, mas correm o risco de constituir uma violação da privacidade e servir de instrumento de discriminação para os portadores de determinadas características genéticasDorothé Benoit Browaeys , Jean-Claude Guillebaud, Jean-Claude Kaplan
Conhecer o futuro é um sonho tenaz… Uma fascinação que pode levar à exclusão. A medicina preventiva, com os testes genéticos capazes de detectar o sinal de uma doença futura — provável ou inelutável, tratável ou não — nos mergulha brutalmente na ficção científica. Com a temível responsabilidade que surge para aqueles que detêm o conhecimento.
Se a previsão é benéfica quando permite a prevenção, torna-se perigosa quando nos obriga a revelar o prognóstico fora do campo privado. Já se constata que, na França, todo indivíduo deve informar seu plano de saúde da maneira mais precisa possível. Além disso, o código penal, no seu artigo 225-1, legitima os questionários de saúde para contratos de seguro, constituindo-se em “exceção ao princípio de não-discriminação para os contratos de seguro”. As conseqüências anunciam-se graves se toda a informação genética passar a ser exigível.
Cartas ameaçadoras
Sobre o assunto, a história da Sra. Y.Q. é exemplar. Em 1997, depois de um exame genético que ela havia pedido, anunciaram-lhe que ela trazia a mutação responsável pela doença de Huntington. Assim, por volta dos quarenta anos, ela iria sucumbir inelutavelmente a uma demência que a mataria. Ela ignorava, é claro, as conseqüências em cascata desta revelação sobre sua apólice de seguro. Quando as primeiras falhas aconteceram, ela teve de parar sua atividade profissional. O Crédit Mutuel [1] ameaçou então anular seu seguro de vida, feito para cobrir suas prestações imobiliárias. Motivo invocado: ela não havia “informado sobre o teste realizado antes de assinar o contrato”, lê-se numa acusadora carta datada de 26 de maio de 1997.
Rapidamente mobilizada, a associação Huntington-França reagiu: “Em nenhum caso, seguradoras, empregadores (…) precisam tomar conhecimento de testes pré-sintomáticos feitos por uma pessoa por sua própria iniciativa”, escreveu Louise-Marie Marton, da Comissão Huntington-França, numa correspondência de 11 de fevereiro de 1998, pois “a lei da bioética protege as pessoas candidatas a um teste de pesquisa: estes testes devem permanecer totalmente confidenciais. Os médicos dão os resultados verbalmente ao candidato.”
Discriminação nos empregos
Foi então necessária a pressão das famílias de doentes para evitar o pior. Um outro caso da mesma ordem, também ligado à doença de Huntington, envolveu na mesma época a Caisse Nationale de Prévoyance (CNP). Os seguradores franceses se empenharam, é claro, em proibir qualquer utilização de testes genéticos, mas esse litígio mostrou que as regras estão longe de serem claras. Daí um vazio jurídico tal que, no dia 3 de abril de 1998, o presidente do Tribunal de Justiça de Toulouse, Marcel Foulon, convidou os representantes das associações de doentes a “fazerem tudo para se defenderem em situações ambíguas”.
Os empregadores poderiam também querer tirar proveito dos diagnósticos prévios para traçar o “perfil genético” de um candidato e eliminar os pretendentes “ineptos” a postos de risco. Em alguns casos, entretanto, a providência se justifica. Companhias aéreas norte-americanas, por exemplo, procuram descobrir as vítimas de anemia drepanocitária entre os negros — a doença dos glóbulos vermelhos atinge uma pessoa em 12 nessa categoria da população norte-americana — porque aí se trata de evitar qualquer mal-estar ligado a uma hipoxia [2] durante o vôo. O importante é que a investigação seja conhecida pelos interessados. Não foi esse o caso de sete funcionários do Laboratório Nacional de Berkeley, que prestaram queixa contra seu empregador por “violação dos direitos civis e do direito à intimidade” depois de descobrirem que haviam feitos neles, sem seu conhecimento, testes de detecção da anemia drepanocitária.
Ascendência genética pode ser suspeita
Estes testes são feitos com fins cada vez menos confessáveis nos Estados Unidos. Calcula-se que 30% das contratações são feitas após pesquisa de informações genéticas. As associações judias norte-americanas se mobilizam para alertar contra a discriminação que os bancos e companhias de seguro serão tentados a fazer depois da identificação de várias mutações que predispõem ao câncer do seio na população ashkenaze. Um sexto dos judeus originários da Europa Oriental vítimas de câncer seriam portadores destas “mutações características”. Desse modo, a ascendência judia poderia tornar-se suspeita aos olhos dos “avaliadores de risco”.
Diante de tais ameaças, quais as salvaguardas possíveis? Na França, desde 1995, o Comitê Consultivo Nacional de Ética estipulava que “a utilização de informações genéticas com fins de seleção ou discriminação na vida social e econômica (…) conduziria a ultrapassar uma etapa de extrema gravidade rumo ao questionamento dos princípios de igualdade de direitos e de dignidade”, e recomendava uma proibição total dos testes genéticos. Mas esta posição de princípio se encontra progressivamente corroída por um “efeito de continuum”. Portanto, a exploração dos genomas não representaria novidade, a se acreditar no Conselho de Estado cuja Assembléia Geral adotou, em 25 de novembro de 1999, um estudo sobre a revisão das leis de bioética. [3]
Questionários ilegais
Os relatores explicam que “discriminações lícitas já são praticadas e são fundamentadas no estado de saúde. As informações médicas (antecedentes familiares, hipercolesterolemia, hipertensão arterial) que os planos de saúde têm o direito de solicitar remetem indiretamente a características genéticas. Portanto, está longe de ser evidente que os testes genéticos representam uma etapa radicalmente nova, como é correntemente afirmado”.
Quanto a saber se o legislador deve intervir, o Conselho de Estado decide pela negativa: “Se quisermos excluir toda discriminação fundada no patrimônio genético, jogaremos na ilegalidade a prática dos questionários de saúde pedidos pelas seguradoras”. Como conclusão, a alta jurisdição exclui a possibilidade de um associado “esconder do plano de saúde o resultado de um teste de predisposição a que ele tiver sido submetido antes da conclusão do seu contrato”. Existiria, portanto, a obrigação de revelar tudo que a seguradora quisesse saber…
O privilégio dos “sortudos biológicos”
Se os donos de plano de saúde quiserem avaliar os riscos e exigir uma lealdade contratual, o resultado é que o sistema acaba inexoravelmente por taxar os menos afortunados e privilegiar os “sortudos biológicos”. Os médicos geneticistas sabem muito bem disso, e se cercam de precauções a fim de evitar qualquer vazamento de informação para os planos de saúde. “Somos obrigados a funcionar fora do quadro legal”, explica Patrick Calvas, especialista da doença de Huntington no Hospital Purpan, de Toulouse, acrescentando: “As pessoas que nos consultam são gente sadia, que por causa de uma doença genética em um parente próximo, querem conhecer sua condição, por exemplo, por ocasião de um projeto matrimonial. Para evitar todo traço suspeito desta medida, damos o resultado oralmente e indicamos que essa visita está relacionada a perturbações funcionais benignas. Assim, para poder resguardar este exercício legítimo, precisamos mentir por omissão.
O mal-estar é real entre os 70 laboratórios de genética molecular da França, de tanto os médicos serem colocados em situações delicadas. A falta de clareza dos financiamentos também complica a tarefa deles. Nascido de projetos de procriação, o diagnóstico genético não tem um estatuto definido e se efetua pelas tabelas dos exames pré-natais. No entanto, desde 1996, perto de 10 mil análises genéticas de adultos foram praticadas fora da perspectiva do nascimento e por um custo de 10 milhões de francos. Diversos clínicos genéticos expuseram as dificuldades de sua prática num Livro Branco [4] redigido no final de 1998. Mas os poderes públicos, tendo de classificar estes atos na nomenclatura dos atos de biologia médica, ficaram surdos. “Nada mudou”, relata um dos autores do documento, Michel Goossens, do Hospital Henri Mondor, em Créteil, que solicitou “todas as tutelas possíveis, que se limitaram a passar a ’batata quente’. Os laboratórios privados bloqueiam o sistema para evitar que estes atos fiquem reservados ao sistema hospitalar”, acrescenta. As despesas desses exames também continuam a ser assumidas globalmente pelos hospitais e às vezes pelos pacientes. Exceção feita para os exames de detecção de câncer.
“Utilização clínica” dos testes
O governo lançou em fevereiro de 2000 um programa de cerca de 750 milhões de francos por ano (cerca de 125 milhões de dólares) que será mantido pela Caisse Nationale d’Assurance Maladie (CNAM) e pelo Estado para “permitir ao conjunto de pessoas envolvidas um acesso a consultas de oncogenética de qualidade”, segundo os termos de Dominique Gillot, secretária de Estado da Saúde. A medida visa a “preparar a utilização clínica” dos testes de predisposição ao câncer do seio, do ovário e do colo do útero. “Esta decisão surpreende quando se sabe que os testes genéticos ligados aos cânceres são ainda precários”, avalia Goosens: “A maior parte dos genes correlacionados aos cânceres foi patenteada por empresas norte-americanas. Este financiamento aparece como fruto de um lobby [5] dos centros anti-câncer.”
Por outro lado, o desinteresse dos poderes públicos pelas doenças hereditárias monogênicas — para as quais os testes são amplamente válidos — leva a uma grande desigualdade de acesso das famílias aos tratamentos. “Limitados em nossos recursos, declinamos as demandas onerosas demais, principalmente para as doenças raras, de origem desconhecida”, lamenta Goossens. “O diagnóstico torna-se todavia essencial para ajustar as terapias,” sustenta Eric Molinié, diretor da Association Française contre les Myopathies (AFM). “O exemplo da miopatia de Duchenne, com 95 mutações possíveis em causa, mostra a importância da investigação molecular.”
Mercado de exames genéticos
O hiato é flagrante entre a prudência dos geneticistas — preocupados em aplicar testes confiáveis e interpretações rigorosas — e a pressão das empresas privadas que disputam o enorme mercado da detecção. É fácil prever a fascinação e a demanda do público por um instrumento pretensamente capaz de esclarecer o “destino biológico”. [6] Aliás, “para determinar o perfil de risco genético, pouco importa que o perigo seja ou não real; o que conta é o modo como este perigo é percebido”, lê-se num documento divulgado pelo dono de plano de saúde Swiss-Re, intitulado “A engenharia genética e o plano de saúde. O peso da opinião pública”. Portanto, a pertinência dos exames não importa muito para as empresas, bastando vender uma “pitada de clarividência”!
Com os instrumentos genéticos será feita a triagem do conjunto da população, cujas disparidades invisíveis serão agora reveladas. “Essas discriminações irão permitir identificar as pessoas mais ameaçadas por certas afecções. Os indivíduos, desde o seu nascimento, vão sofrer uma penalidade, sob a forma de apólices de seguro majoradas”, anuncia Pierre-André Chiappori, economista da Universidade de Chicago. [7]
A investigação genética abala, dessa forma, a ignorância simétrica entre segurados e seguradoras, indispensável à repartição dos riscos. A incerteza tem uma vantagem: deixa aberta a possibilidade de fazer um plano de saúde. “A felicidade, aqui, está na ignorância. Quando a gente descobre… é tarde demais!” avalia Chiappori. E conclui: “Suponhamos que a detecção se contente em revelar o inelutável: nada de prevenção, nem de terapia. Nesse caso, a decisão do exame só pode ser nociva ao bem-estar coletivo.”
Planos de saúde
Tanto é assim que os fenômenos de anti-seleção não deixarão de aparecer: as pessoas dotadas de “genes bons” poderiam fazer valer seus trunfos constituindo uma “Associação de pessoas geneticamente corretas”, segundo a expressão do professor Axel Kahn, [8] com seu próprio plano de saúde e seu “passaporte” para o emprego.
Os próprios planos de saúde estão em perigo. Especificar o risco não adianta, de fato, nem ao cliente nem ao dono do plano de saúde, pois se chega a um tal aumento das tarifas (para riscos aumentados) que elas se tornam exorbitantes e os contratos não são assinados. “É preciso excluir toda utilização de dados genéticos para assinar os contratos, e mesmo retroceder nas investigações atuais, por exemplo, às perguntas sobre antecedentes familiares”, avalia Claude Henry, do Laboratoire d’Économétrie de l’École Polytechnique de Paris. “É a única solução para salvar os planos de saúde, que estão ameaçados de total desorganização”, afirma ele.
André Chuffart [9], vice-presidente médico-estatista da Companhia Swiss-Re e presidente do Grupo de Bioética do Comité Européen des assurances (CEA) tenta, entretanto, ser otimista, assinalando recentes evoluções bastante positivas: “Atualmente, rejeitam-se somente 1% das pessoas para seguros de vida e prêmios suplementares são pedidos para 3 a 4% dos contratos. Certas companhias se especializam, aliás, na cobertura de doenças como os cancerosos em regressão. O verdadeiro problema não é tecnológico: é antes, saber até onde se pode ir na vida privada. Todas as investigações funcionais (ultra-sonografia, coelioscopia, scanners…) estão em jogo.”
Essa constatação não leva em conta outros aspectos, todavia inquietantes. Em fevereiro passado, por exemplo, a companhia de seguros AXA anunciou a duplicação das prestações do seguro funeral feitas por cerca de 7 mil pais de crianças deficientes. Diante do reboliço público provocado por esse aumento, a companhia teve que voltar atrás. O delito de “gene ruim” vai caminhando. Na França, o fenômeno poderia se ampliar perigosamente se sua cobertura de saúde passasse para o setor privado, como é o caso nos Estados Unidos. Não se saberia conciliar medicina acessível a todos e busca de lucro.
“Vida inaceitável”
Cancerosos, soropositivos, pessoas em convalescença já conhecem enormes pressões financeiras. “Só uma reflexão de ordem política permitirá evitar que as desigualdades de oportunidades biológicas se juntem às desigualdades sociais e econômicas”, escreve Fabienne Daull, do Centre de Bioéthique da Université Catholique de Lyon. [10]
Ora, o Conselho de Estado, nas análises apresentadas acima, se resigna à supremacia da lógica econômica. Tal resignação comporta o risco de acelerar os mecanismos de normalização e a exclusão, por taxação, dos fracos. Médicos responsáveis por diagnósticos genéticos errados sobre crianças antes do nascimento, já vêm sendo processados sob a alegação de “vida inaceitável ou parto inaceitável”. Para certos biólogos, como Thomas Tursz, diretor do Instituto Gustave Roussy, “estes processos constituem um novo risco que explica as enormes quantias, de bilhões de dólares, que os planos de saúde realizam atualmente para cobrir os imprevistos da biotecnologia”.
É preciso se render à evidência: os pesquisadores que desenvolvem as aplicações da genética não são os donos do jogo: “Suas técnicas são objeto de investimento maciço pelas financeiras”, constata Michel Tibon-Cornill