O Mal radical
Entramos na era da globalização, no perigoso período da reinterpretação generalizada dos fatos em que a crise do político, bem como a da arte contemporânea, sinalizam o contexto de uma exposição onde se associa Mickey à memória de AuschwitzPaul Virilio
“Nós ganhamos a guerra mas perdemos o pós-guerra”
(Simon Wiesenthal)
Após a II Guerra Mundial ocorreu primeiro o tempo do silêncio sobre o Holocausto. Em seguida, durante a guerra fria, veio o tempo dos testemunhos. Mas, recentemente, entramos numa terceira fase, puramente provocadora, em que, sob pretexto de “quebrar os tabus”, põe-se em dúvida o dever da memória, referindo-se aos excessos com que denominam “a indústria do Holocausto”, ou, pior ainda, como certos artistas judeus, como Scott Capuro, comediante de Nova York presente ao Festival de Edimburgo deste ano, que ridiculariza “os queixumes de seus correligionários com relação ao holocausto”. [1]
Entramos na era da globalização, que sucede à da dissuasão entre Leste e Oeste, no perigoso período da reinterpretação generalizada dos fatos em que a crise do político, bem como a da arte contemporânea, sinalizam — em Edimburgo por exemplo, para o caso do teatro, ou em Bordeaux, para as artes plásticas — o contexto de uma exposição onde se associa Mickey à memória de Auschwitz. [2]
O implícito dominando o explícito
Quanto às declarações intempestivas do rabino Ovadia Yossef, em Jerusalém, [3] elas demonstram, aparentemente, a gravidade do período da história onde o negacionismo é substituído por um novo tipo de revisionismo teológico tão delirante quanto o dos negadores do extermínio.
Para tentar evitar essa desinformação progressiva, é necessário ler Questions sur la Shoah, um ensaio de Gerard Rabinovitch em que o autor não se contenta em lembrar certos fatos incontestáveis, mas, precisamente, entreabre a questão sem resposta do Holocausto, a evidência do implícito dominando a do explícito, e submerge na interpretação racional de historiadores que tentam acumular argumentos com o fito de convencer — para encerrar de qualquer jeito o debate sobre a questão medonha do Mal, de um Mal radical que escapa tanto à ciência política como às teologias hebraica, cristã e islâmica.
O totalitarismo da clonagem
O otimismo de encomenda — que atualmente exige a campanha publicitária da industrialização da matéria viva pelas biotecnologias — não pode ser desenvolvido sem uma dolorosa revisão de nossa relação com o passado, na época em que o doutor Josef Mengele sucedia a sir Francis Galton, um dos pais da eugenia…
Como bem indica Gerard Rabvinovitch no final de seu livro, “os esboços totalitários do Lebensborn [4] estão presentes, quer se queira ou não, na procriação seletiva da medicina divinatória e, com muito maior razão, na anunciada clonagem”.
A crise do político
A autorização que o governo inglês se prepara para dar à clonagem terapêutica apenas confirma essas intenções, tanto mais que os deputados britânicos, convocados a se pronunciarem até o fim do ano, deverão fazê-lo de acordo com suas consciências, e não como é habitual em Westminster, segundo a orientação de seu partido…
Prova suplementar, se disso houvesse necessidade, da crise do político face às incertezas tecno-científicas.
Gerard Rabinovitch, Questions sur la Shoah , col. “Les Essentiels”, Milão