O medo da multidão
O neoliberalismo ataca o Estado e busca suprimir os bens públicos, que se transformam em negócios privados. Só quem paga tem acesso. O que antes era considerado um direito e também um salário indireto, pois compunha os bens e serviços necessários para a vida, transformou-se em mercadoria. E os trabalhadores, precarizados, não conseguem pagar a conta.
A revolta é da multidão anônima. Não há lideranças nem envolvimento de partidos políticos. São milhões de pessoas que protestam em um número crescente de países.
Os governantes, temerosos das mobilizações, se preparam para o confronto e a repressão, como é o caso do Brasil, e também amenizam suas medidas de espoliação, adiando aumentos previstos em serviços públicos e na gasolina, por exemplo. Paulo Guedes, o ministro da Economia brasileiro, encara essas mobilizações como algo que atrapalha e adia seu plano de reformas.1
As manifestações são combinadas nas redes sociais, começam pacíficas e a violenta repressão policial provoca reações que levam as multidões para o confronto e abre espaço para opositores mais radicais que depredam o metrô, incendeiam edifícios públicos, saqueiam supermercados e lojas, bloqueiam avenidas.
Algumas dessas manifestações, como a dos coletes amarelos, na França, comemoraram mais de um ano de protestos contínuos, todos os sábados, que agora se tornaram outra vez multitudinários. Desde maio de 1968 não se viam protestos tão amplos como o das últimas semanas. O foco está na destituição de direitos promovida pela reforma da previdência. Lá também a repressão policial é forte e encontra reações dos manifestantes, que incendeiam carros, quebram vitrines, atacam bancos, o que já vem de anos e tem se tornado uma das características radicais nos protestos em Paris.
O Chile está conflagrado desde outubro de 2019, com mobilizações maciças em todas as cidades mais importantes, mobilizações que continuam apesar do assassinato de dezenas de pessoas, das centenas de feridos, dos milhares de cidadãos e cidadãs presos.
E, das reivindicações pontuais, como o cancelamento do aumento no preço dos combustíveis, as mobilizações vão se transformando, vão se politizando, e não se satisfazem mais com concessões tímidas feitas por governos amedrontados. Passam a querer mudanças profundas, uma nova ordem política. É a demanda – agora atendida no Chile – por uma nova Constituição.

Essas maiorias buscam se defender de um ataque sistemático a seus direitos, um acúmulo de perdas e sacrifícios que tornam cada vez mais difícil a vida cotidiana. Elas sofrem com a precarização do trabalho e o desemprego, com a redução dos salários, com cortes no orçamento da saúde e da educação, com a reforma trabalhista, com a reforma da previdência, com o aumento do preço dos serviços públicos, enfim, com a mercantilização do que eram bens públicos providos pelo Estado.
Muito daquilo que foi construído a duras penas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial foi privatizado. O Estado de bem-estar social sofre um desmonte radical. Em países como o Brasil, as políticas que buscavam universalizar direitos estão sendo atacadas. É o caso do Sistema Único de Saúde (SUS).
O neoliberalismo ataca o Estado e busca suprimir os bens públicos, que se transformam em negócios privados. Só quem paga tem acesso. O que antes era considerado um direito e também um salário indireto, pois compunha os bens e serviços necessários para a vida, transformou-se em mercadoria. E os trabalhadores, precarizados, não conseguem pagar a conta.
As demandas se politizam também diante de dois fatores: uma desigualdade que vem se tornando a cada dia mais aguda e visível, e políticas de terror para submeter os pobres a maiores privações.
É o mundo do apartheid reafirmando as discriminações de toda ordem, expulsando os mais pobres das áreas que ocuparam para moradia ou para trabalho, retirando-lhes a dignidade, ocupando militarmente as favelas, transformando-os em criminosos a serem combatidos, párias em sua própria sociedade.
No caso do Brasil, a opressão e a violência determinadas pelas elites e avalizadas pelas classes médias empobrecidas garantem a apropriação por poucos do que, de direito, é de todos. Onde existe saneamento? Onde estão as escolas e as creches? Onde a polícia zela pela segurança dos moradores? Vem daí o ódio contra todo um sistema político e jurídico que só favorece os ricos; contra a polícia que reprime violentamente todo protesto, invade residências, tortura e assassina friamente favelados, em sua maioria negros, jovens e pobres.
As mobilizações dos últimos meses em países da América Latina, da Europa e da Ásia têm o mesmo caráter. Clamam por justiça, democracia e direitos. É a globalização que também cria uma realidade comum vivida por toda parte.
Vivemos em uma sociedade organizada para espoliar as maiorias em favor dos interesses das grandes corporações. Nossa tarefa é desvendar aquilo que se naturalizou, isto é, a maneira e os processos de como o capital e as leis que ele impõe determinam as possibilidades de reprodução da vida social em todas as suas dimensões.
A recusa dos mecanismos de poder que impõem a dominação é uma reação importante e poderosa que estabelece limites à espoliação. Sozinha, porém, ela só se configura como protesto.
A defesa da democracia das elites e da propriedade fazia que os protestos levassem a reformas, como propunha a social-democracia, mas não a mudanças estruturais que permitam a criação de uma nova sociedade, orientada para atender às necessidades das maiorias. E mesmo essa democracia das elites vai desaparecendo. Sem maiores ameaças a seu domínio, as elites não fazem mais concessões, não se dispõem a um novo pacto social; preferem os governos autoritários.
“É na defesa da vida que se constituem as multidões, na defesa do comum, somando as subjetividades singulares que se identificam pela pobreza e pelo amor na reprodução do comum… Teremos de descobrir a passagem da revolta para a instituição revolucionária que a multidão pode pôr em movimento”.2
1 “Bagunça na América Latina fez governo desacelerar reformas, diz Guedes”, Congresso em Foco, 1º dez. 2019.
2 Michael Hardt e Antonio Negri, Bem-estar comum, Record, Rio de Janeiro, 2016, p.11.