O mundo ideal dos hobbits
Com 150 milhões de exemplares vendidos, O Senhor dos Anéis é uma obra que, após algumas décadas, em vez de sair de moda, ganha importância. Ela parece ter encontrado, até nutrido, um imaginário coletivo cada vez mais comum. Seu sistema de valores implanta uma moral política repleta de ambiguidades
Provavelmente ninguém é obrigado a acreditar que John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) seja o autor da “obra mais rica e complexa do século XX”,1 mas a verdade é que a trilogia Senhor dos Anéis vendeu 150 milhões de exemplares, com a ajuda das adaptações de Peter Jackson para o cinema: US$ 3 bilhões pela projeção em salas e 17 Oscars, isso enquanto se espera a série da Amazon, que pagou tranquilamente US$ 250 milhões pelos direitos. Ao que tudo indica, Tolkien é um dos astros de nossa época, e sabemos bem que nada é mais brilhante no imaginário de uma época que o imaginário artístico que ele inaugura.
R. R. Tolkien parece, no entanto, dependente de um clichê fora de moda. Conheceu as duas guerras mundiais, mas quase toda a sua vida foi dedicada ao estudo e à escrita. Professor em Oxford, especialista em filologia e literatura inglesa arcaica, sabia gótico (língua morta falada outrora pelos godos), nórdico antigo (língua escandinava medieval) e finlandês. Além disso, era um apaixonado pelas epopeias nórdicas, o Edda, o Kalevala… Em suma, um erudito que estreou na literatura infantil com O hobbit (1937) e depois, durante cerca de duas décadas, elaborou sua trilogia (1954-1956). Nada de espantoso, portanto. Afinal, Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo nome de Lewis Carroll, também foi professor em Oxford (de matemática) e se consagrou, da mesma forma, com histórias infantis. Uma curiosidade a propósito de Tolkien: ele era católico, religião minoritária no Reino Unido, e católico fervoroso.
A universidade e os fiéis foram duradouramente marcados pelo que se chamou de o “Movimento de Oxford” em torno de John Henry Newman (1801-1890), um eclesiástico anglicano que, de forma retumbante, se converteu ao catolicismo. Suas reflexões sobre a entrega pessoal, o papel da intuição direta na fé etc. alimentaram os questionamentos de muitos cristãos, sobretudo britânicos. Newman foi ordenado cardeal pelo papa Leão XIII, cuja encíclica Rerum Novarum (1891), retomada por Pio XI (1922-1939), definiu a posição da Igreja Católica em relação ao trabalho: apoio ao sindicalismo, mas oposição ao socialismo, e proposta da célula familiar como modelo de organização da sociedade. Essa concepção engendrou uma teoria econômica, o “distributismo”, favorável à propriedade privada atribuída a grupos em vez de indivíduos e, relativamente à terra e às ferramentas, defensor do retorno às corporações de ofício. Propunha a extinção dos bancos (exceto os mutualistas) e uma sociedade de camponeses e artesãos tendo a família como unidade social básica – sem extremismos políticos.
Tolkien teria sido sensível às ideias desse movimento, alimentando a convicção de que o espírito é mais forte que a matéria e cultivando um antiestatismo inabalável. Entretanto, foi igualmente influenciado pelo universo do grandioso William Morris (1834-1896),2 pintor e romancista inspirado por uma Idade Média idealizada, tradutor de sagas islandesas e defensor ativo do retorno a um artesanato que oferecesse beleza a todos. Morris, fundador da Liga Socialista juntamente com Eleanor Marx, precursor da renovação das artes aplicadas, foi também autor de um dos primeiros romances de “fantasia”, A fonte no fim do mundo.
Reflexões teológicas e sensibilidade aos mitos, a uma Idade Média lendária, eis o que uniu um grupo de amigos, os Inklings, que de 1930 a 1940 passaram a se encontrar num bar de Oxford para ler seus escritos e discuti-los. Entre eles, J. R. R. Tolkien, Clive Staples Lewis e Charles Williams. Professor em Oxford, C. S. Lewis era anglicano e a parte de sua obra que faz a apologia cristã continua em moda no Reino Unido. Mas ele é famoso principalmente por suas Crônicas de Nárnia (1949-1954), livros infantis que mostram animais, magia etc., em uma grande luta do Bem contra o Mal. Membro por pouco tempo dos rosa-cruzes e também anglicano, Charles Williams fundou uma espécie de seita cristã, Os Companheiros da Coinerência. Escreveu, sobretudo, um romance fantástico, A guerra do Graal, transbordante de luz, pondo em cena iniciados brancos contra magos negros… Os Inklings eram, assim, um bando de crentes, sábios e apaixonados que se apegavam ao registro do “maravilhoso”, propício a despertar a sensibilidade aos mistérios e à graça – além de transmitir uma mensagem cristã num mundo descristianizado.

Esses desafios, essas convicções e esses debates é que animam O Senhor dos Anéis. Não conseguiríamos reduzir a trilogia a uma ilustração qualquer de teses. Mas ela exibe uma estética e um conjunto de valores que oferecem uma visão de mundo política e espiritual. Relembremos por alto a história: o Senhor das Trevas forjou o Anel, instrumento de poder absoluto com o qual reduzirá todos à escravidão, mas não o possui mais. Um hobbit, depositário do Anel, tem por missão destruí-lo, atirando-o no lugar onde foi feito. Acompanhado por vários aliados, a Sociedade do Anel, ele procura alcançar seu objetivo em meio a perigos inumeráveis, o menor dos quais não é a atração do Anel. O objetivo acaba sendo alcançado e, entrementes, um rei sedutor recupera seu trono…
Guerra contra o espírito do Mal e relato de uma busca espiritual, tormentos da consciência e homenagem à obstinação da força do amor, que pode superar o interesse egoísta dos mortais (revivendo também a Natureza implacável), “O Senhor dos Anéis é, bem entendido, uma obra fundamentalmente religiosa e católica”, como escreveu Tolkien a um amigo jesuíta. “A princípio, de maneira inconsciente; depois de uma revisão, consciente.”
No entanto, com seu poder inventivo, jovial, que permite evitar alegorias diretas, Tolkien revela ao mesmo tempo aquilo que parece seu mundo racionalmente ideal, o do povo que empreende a busca, os hobbits – “homenzinhos” ou semi-homens –, uma variedade humana modesta, alegre, que não tem por assim dizer nenhum governo, respeita espontaneamente as regras antigas, imutáveis, e, exceto nas fronteiras, não precisa das forças da ordem. Personagens que serão mais ou menos copiados depois pela “fantasia”. Esse mundo, acentuadamente medievalizante, aceita a magia, mas ignora a ideia de progresso, tecnologia, senso histórico. Longe das “forjas sombrias” que caracterizam o império do Mal, artesãos e camponeses vivem felizes, amantes da boa mesa e das belas histórias, indiferentes ao que precisa ser “sempre contado, medido”. De resto, o verdadeiro herói do relato é um jardineiro…
Esse modelo de sociedade autoprotegida, comedida, enraizada em sua memória e sua pátria, feudal mas sem feudos, zelosa apenas dos pequenos prazeres da vida, atenta a tudo que é verde e dá frutos, foi bem-recebido pelos contestadores dos anos 1960 e, no campo oposto, pelo Movimento Social Italiano (MSI) neofascista, que organizou entre 1977 e 1981 os “acampamentos hobbits”. A trilogia é hoje muito cara a numerosos leitores de sensibilidade ecológica. Essa aspiração a um universo rural retrógrado, autárquico, desconfiado da técnica e da perda de contato com as verdades da natureza provavelmente não vai se extinguir tão cedo, depois da crise sanitária atual. Seria bom lembrar que a Sociedade do Anel, em sua luta contra as potências da morte, restabeleceu um rei.
Evelyne Pieiller é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Lloyd Chery, “Ce que les fans du ‘Seigneur des Anneaux’ doivent à Christopher Tolkien” [O que os fãs do Senhor dos Anéis devem a Christopher Tolkien], Le Point, Paris, 17 jan. 2020. Disponível em: www.lepoint.fr.
2 Ver Marion Leclair, “William Morris, esthète révolutionnaire” [William Morris, esteta revolucionário], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.