O mundo segundo Washington
Três características definem o novo paradigma da construção do Império que os Estados Unidos procuram nos impor: um unilateralismo crescente, uma subversão profunda das regras internacionais e uma militarização sistemática das divergênciasSami Naïr
Substituir o antigo paradigma da guerra total contra o comunismo pelo da oposição frontal a países que, por uma razão ou outra, os Estados Unidos vêem como obstáculos à construção de seu Império: esse é o sentido profundo da ação de Washington. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, a guerra contra o terrorismo tornou-se o instrumento de uma estratégia de dominação planetária e, acima de tudo, de confronto direto com alguns Estados do hemisfério Sul. Três características definem o novo paradigma que Washington procura impor: um unilateralismo crescente, uma subversão profunda das regras internacionais e uma militarização sistemática das divergências. Como pano de fundo, pode-se legitimamente perguntar se este paradigma corresponde a uma verdadeira estratégia de captação de recursos energéticos mundiais ilustrada pela vontade, entre outras, de conquistar a qualquer preço o petróleo iraquiano.
Se a II Guerra Mundial deu aos Estados Unidos uma vantagem considerável no cenário internacional, sua vitória contra o “socialismo realmente existente” conferiu à sua liderança uma legitimidade maior ainda. O que explica a timidez das resistências por parte dos países mais desenvolvidos. Inversamente, não é por acaso que o único país aliado – no caso, a França – que ousa enfrentar Washington, havia decidido, desde o pós-guerra, criar meios de se defender sozinho contra qualquer agressão estrangeira…
O caso do Tribunal Penal Internacional
Os EUA também desafiam a justiça, se ela não se submeter estritamente aos seus interesses, como é o caso do Tribunal Penal Internacional
Nenhum campo da vida internacional escapa ao unilateralismo dos Estados Unidos. Na origem das principais convenções que permitem bloquear ou vigiar o armamento dos países da comunidade internacional, Washington se recusa, em matéria química e biológica, a submeter-se aos mecanismos de controle previstos pelo protocolo de 1995, no âmbito da Convenção de 1971. Esta recusa o levou, inclusive, a pedir a dissolução da Comissão encarregada, desde 1995, de elaborar mecanismos de controle. Da mesma forma, o Senado excluiu, em1999, qualquer ratificação do tratado de limitação de armas nucleares.
Os Estados Unidos também desafiam a justiça internacional, se ela não se submeter aos interesses estritamente norte-americanos. Os tribunais para a ex-Iugoslávia ou para Ruanda lhes pareceram “aceitáveis” porque suas competências são restritas e podiam contribuir para eliminar regimes hostis. Os norte-americanos e os britânicos desejam, inclusive, criar um tribunal contra o Iraque. Mas o mesmo não ocorre com o Tribunal Penal Internacional (TPI). Previsto pelo acordo de Roma de 1998, ele lhes parece autônomo demais ao pretender julgar todos os criminosos de guerra – ainda que inúmeras cláusulas limitem sua capacidade de intervenção e julgamento. Porém, o governo norte-americano não conseguiu impedir que o Tribunal obtivesse as 60 assinaturas necessárias, em abril de 2002, nem que iniciasse seu funcionamento em julho: limitou-se a informar o secretário-geral da ONU que os Estados Unidos não se consideravam mais ligados, de forma alguma, aos objetivos daquele acordo1 . Em seguida, os Estados Unidos obtiveram – através da ameaça de se retirarem de todas as operações da ONU pela manutenção da paz – uma decisão do Conselho de Segurança, em 13 de julho de 2002, garantindo a impunidade de seus soldados perante o Tribunal Penal Internacional (TPI).
O descaso das instâncias internacionais
O protocolo de Kyoto, limitando a emissão de gases que provocam efeito-estufa, foi assinado por Clinton. Bush decidiu não submetê-lo ao Congresso
Isso, contudo, não lhes bastava. Pressionaram intensamente os países europeus – especialmente os candidatos à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – para que assinassem, juntamente com eles, acordos bilaterais de não-extradição a pedido do Tribunal Penal Internacional. Em agosto de 2002, a Romênia cedeu e foi criticada pela União Européia que, por sua vez, acabou adotando finalmente um texto2 definindo as condições segundo as quais seus membros poderiam assinar com Washington acordos bilaterais concedendo imunidade às pessoas sob jurisdição norte-americana.
E o protocolo de Kyoto? Assinado pelo governo Clinton, ele estabelece a limitação, nos países industrializados, para a emissão de gases que provocam efeito-estufa e deixa aos países em desenvolvimento mais espaço para construir suas economias. O governo Bush decidiu não submetê-lo ao Congresso. É verdade que a União Européia tenta, atualmente, mudar a posição norte-americana, mas sem grande esperança: em julho de 2001, os Estados Unidos ainda se opunham categoricamente ao plano do G8 para uma energia mais limpa…
A economia, o social e os direitos humanos sofrem esse descaso sistemático por parte das instâncias internacionais. As leis norte-americanas de extraterritorialidade – Helms-Burton, para Cuba, e D?Amato, para a Líbia e Irã – sancionam, dentro do continente americano, as empresas estrangeiras que mantêm relações com aqueles países. Um outro exemplo: no início de maio de 2002, os Estados Unidos decidiram, violando as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), aumentar as tarifas aduaneiras para proteger seus produtores de aço. Paralelamente, o governo federal aumenta consideravelmente seu auxílio à agricultura.
A intervenção ilegal e absurda no Iraque
No âmbito social e dos direitos humanos, Washington nunca ratificou os textos da ONU – nem sequer o protocolo de 1989 que impede a execução de menores
No âmbito social e dos direitos humanos, Washington nunca ratificou os textos da ONU, nem a Convenção dos Direitos da Criança (1989), nem o acordo sobre os direitos econômicos, sociais e culturais (1966), nem a Convenção sobre a eliminação de qualquer forma de discriminação contra as mulheres (1979) e tampouco o protocolo de 1989 que completava o acordo para impedir a execução de menores – ainda praticada nos Estados Unidos, na Arábia Saudita, no Irã, na Nigéria e na República do Congo…
Desde 1945, os Estados Unidos são os principais promotores do direito internacional. Espaço de neutralização recíproca das duas superpotências, este sistema perdeu, com o desaparecimento da União Soviética, sua importância para Washington. Ainda permite, por certo, conter Estados recalcitrantes, mas se torna incômodo quando os interesses norte-americanos exigem o uso da força. Daí o motivo do pouco caso cada vez mais freqüente do governo Bush em relação a seus princípios fundamentais. Embora o princípio da não-ingerência, tanto quanto o do não-recurso à força, sempre tenham fundamentado a ordem internacional, os Estados Unidos não se sentem mais obrigados a respeitá-los quando contradizem seus objetivos.
O caso iraquiano é emblemático: tendo decidido, sem que resolução alguma da ONU o autorizasse, derrubar o regime de Saddam Hussein, os Estados Unidos pretendem, inicialmente, intervir – de forma completamente ilegal – e induzem a comunidade internacional a implorar que desconheçam o Conselho de Segurança. Concordam em respeitar o direito internacional, mas desde que uma resolução do Conselho de Segurança (1441) lhes possibilite interpretar a seu modo o direito de fazer a guerra. No meio tempo, reúnem tropas em torno do Iraque e se dedicam a bombardeios diários.
A perigosa evolução da prepotência
O caso iraquiano é emblemático: os EUA pretendem intervir e induzem a comunidade internacional a implorar que desconheçam o Conselho de Segurança
Para dar respaldo teórico a tudo isso, o documento estratégico publicamente divulgado pela Casa Branca em setembro de 20023 expõe o novo conceito de “guerra preventiva”. “Devemos adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e aos objetivos de nossos adversários atuais. Os Estados corruptos e os terroristas, para nos atacar, não pensam em agir segundo os métodos clássicos. (…) Os Estados Unidos são, há muito tempo, favoráveis a uma reação antecipada quando se trata de responder a uma ameaça à segurança nacional. Quanto mais grave for a ameaça, maior é o risco da inação – e mais importante é tomar as medidas preventivas para assegurar nossa defesa, mesmo se subsistirem dúvidas sobre o momento e o local do ataque inimigo. Para impedir ou prevenir que tais atos sejam perpetrados, os Estados Unidos se reservam a possibilidade, de eventualmente, agir por antecipação4“.
Em outras palavras, basta que Washington qualifique este ou aquele país como ameaça para se sentir no direito de agir contra ele. A concordância do “alvo” com os apelos da comunidade internacional (como é o caso do Iraque, curvando-se a todas as exigências dos inspetores) não muda coisa alguma. Washington manipula o direito internacional para encobrir suas agressões com um véu de justiça. Esta pretensão dos Estados Unidos de atacar livremente outros países acentua a perigosa evolução das relações internacionais. Embora inúmeras vozes se ergam contra o princípio da intervenção preventiva, o primeiro-ministro australiano John Howard já sugeriu a possibilidade de operações militares preventivas no exterior em caso de ameaça terrorista ao seu país5…
Uma queda pelo uso da força
Basta que Washington qualifique este ou aquele país como ameaça para se sentir no direito de agir contra ele – é este o conceito de “guerra preventiva”
Esta evolução acarreta a militarização sistemática dos conflitos, a serviço da qual o governo norte-americano utiliza duas vias: a multilateral, através do recurso ao capítulo VII da Carta da ONU autorizando o uso da força; e a unilateral, quando deseja agir sozinho (Afeganistão) ou não consegue reunir a comunidade internacional (Iraque 1998). Até 1990, o recurso ao capítulo VII era extremamente raro, pois a ordem bipolar bloqueava o emprego da força nas relações internacionais. Foi reabilitado por ocasião da primeira guerra contra o Iraque (1991). Desde então, inspira cada vez mais as decisões do Conselho de Segurança, inclusive a resolução 1441, sobre o desarmamento do Iraque.
Na verdade, os Estados Unidos são contumazes, de longa data, no uso unilateral da força: intervenção em Granada, na Nicarágua, no Panamá, na Somália; a operação Raposa do Deserto contra o Iraque, em 1998, os bombardeios diários, desde então, nas zonas de exclusão aérea desse país; bombardeios no Afeganistão e no Sudão em represália aos atentados contra as embaixadas norte-americanas de Nairobi e Dar Es Salam (1998); e, finalmente, a guerra do Afeganistão… Evidentemente, o princípio de legítima defesa (artigo 51 da Declaração da Carta do ONU) dava cobertura “legal” a esta última intervenção, mas Washington recusou-se a pedir à ONU autorização para o bombardeio.
Essa militarização se faz acompanhar por importantes modificações da doutrina e da estratégia militares. Desde o colapso da URSS, os Estados Unidos determinam um novo inimigo: os rogue States (Estados delinqüentes) que representam o “eixo do Mal”. Reestruturaram seu aparelho militar para poder enfrentar dois conflitos importantes, em um primeiro momento, e depois, após o 11 de setembro de 2001, quatro conflitos médios e, ao mesmo tempo, uma importante ofensiva e ocupação de uma capital inimiga para ali instalar um novo governo. A doutrina militar antecipa, desse modo, os golpes dirigidos ao princípio da soberania dos Estados. Quanto à estratégia militar, ela foi reorientada. Tem o objetivo de poupar os norte-americanos e privilegia, para isso, campanhas de bombardeio com a conseqüente multiplicação de vítimas civis: o reverso da “morte zero” para os norte-americanos é a “morte total” para o inimigo. Em terra, o comando norte-americano utiliza preferencialmente tropas constituídas pela oposição ao regime combatido (UCK, no Kosovo; Aliança do Norte, no Afeganistão).
A submissão dos países ricos
A força dos EUA não provém apenas de sua excepcional vantagem econômica, financeira, tecnológica e militar: também resulta da submissão voluntária dos países mais poderosos.
Além disso, o Pentágono banalizou a arma nuclear. Enquanto a doutrina clássica a reservava a ataques da mesma natureza e, portanto, a países que também possuíssem a arma nuclear, a nova doutrina – exposta na Nuclear Posture Review – prevê, agora, a utilização do arsenal nuclear em situações de conflito clássico contra países que não possuam esta arma. O tempo da paz pela dissuasão terminou.
Dois objetivos – dominar os recursos energéticos e exercer um controle maior sobre o planeta – estão no coração da estratégia norte-americana. Agindo assim, os Estados Unidos assumem o risco de mergulhar o mundo em um caos cada vez mais profundo. Sua prioridade atual é, evidentemente, disciplinar os países árabes considerados, segundo os parâmetros ideológicos dos fundamentalistas que reinam em Washington, os mais recalcitrantes, principalmente por deterem as principais riquezas de petróleo e gás para o século que se inicia. Com sua teoria do “choque de civilizações”, Samuel Huntington oferece legitimidade ideológica a essa reorientação. Contudo, o enfrentamento com o mundo árabe-muçulmano só pode acentuar o desespero de nações já profundamente humilhadas, criando condições para o recrudescimento do terrorismo.
É preciso ainda avaliar que a força dos Estados Unidos não provém apenas de sua excepcional vantagem econômica, financeira, tecnológica e militar: também resulta da submissão voluntária dos países mais poderosos. Essa cumplicidade internacional com a instalação da ordem norte-americana é tão nefasta quanto a própria ordem. Toda a história do século passado tem exemplos de sobra de que somente o multilateralismo e o respeito pelas regras do direito internacional podem criar condições para a paz e o desenvolvimento.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 – Le Monde, 8 de maio de 2002.
2 – Posi?