O novo belicismo do Canadá
Ratificado no cargo no ano passado, o premiê conservador Stephen Harper tenta deixar de lado a fama
de “simpático” de seu país para colocá-lo entre os figurões da política mundial. E a guerra no Afeganistão
parece ter sido a ocasião perfeita para essa nova posturaMarc-Olivier Bherer
Até recentemente, o Canadá era uma
potência medíocre que assistia passivamente ao declínio de sua influência global. Com uma política externa baseada na “compaixão”,
optava pelo multilateralismo como uma
maneira de se distinguir de Washington.
Agora, porém, tudo mudou. A ordem do dia é
endurecer o tom, a fim de recuperar o prestígio perdido o mais rápido possível.
Sem dúvida, essa transformação é consequência da militarização das relações internacionais nos últimos anos. Mas decorre
também da percepção do primeiro-ministro conservador, Stephen Harper, de que esse é o melhor terreno para enfrentar a hegemonia do Partido Liberal, predominante no
cenário político canadense desde sua fundação, em 1867. Parece ter funcionado: ao
apostar no recrudescimento da política externa para ampliar sua influência no país,
Harper foi reeleito em outubro de 2008.
A guerra no Afeganistão foi a ocasião
perfeita para a nova postura. Afinal, quando Harper chegou ao poder pela primeira
vez, em 2006, a política interna vivia um
período de calma. As contas públicas estavam positivas, o sistema financeiro americano ainda não havia desabado e a ameaça
separatista de Quebec parecia extinta. Era
um período de prosperidade sem igual.
Apenas o front exterior trazia grandes entraves, já que desde a invasão do Afeganistão, em outubro de 2001, o Canadá, então
sob governo liberal, participava ativamente do conflito.
Pouco depois da vitória de Harper, o Afeganistão reapareceu na ordem do dia. Dois
eventos coincidiram para lembrar os canadenses dessa guerra, frequentemente dita
“esquecida”: o primeiro, em fevereiro de
2006, foi o redirecionamento das tropas de
Cabul para Kandahar, província no sudoeste, considerada uma das mais violentas do
país; o segundo foi o debate sobre a prolongação da presença canadense na guerra. A
retirada estava planejada para daqui a alguns meses, mas Harper obteve três anos
suplementares com facilidade.
A rejeição dessa guerra pela opinião pública já vem de longa data, mas o primeiro-
ministro impede todos os debates, emprestando dos americanos slogans nacionalistas,
do gênero “sustentemos nossas tropas”. Tanto que o registro da “guerra contra o terror”,
caro a George W. Bush, não lhe desagrada.
Diplomacia mais robusta
Porém, o terrorismo não é sua principal
preocupação. Como reforça Duanne Bratt:
“ele desejava utilizar essa presença no Afeganistão para recolocar o Canadá no cenário internacional. Na sua visita ao Afeganistão (em março de 2006, sua primeira viagem
ao estrangeiro depois da eleição), Harper
afirmou que essa missão servia para defender os interesses do Canadá e testar sua liderança. Alguns dias mais tarde, em seu discurso de posse, o primeiro-ministro se
comprometeu a desenvolver uma diplomacia mais robusta, reforçar o exército e fazer
melhor uso do dólar canadense. Esse tipo de
retórica é frequentemente empregada pelos
chefes de estado canadenses. Mas, contrariamente aos seus predecessores, Harper
colocou os investimentos necessários para
respeitar seus compromissos”.
Dessa forma, pouco depois do início de
sua gestão ele aumentou consideravelmente
o orçamento do exército, de US$ 1,1 bilhão
por ano para US$ 17,1 bilhões. A quantia foi
colocada à disposição do Ministério da Defesa para compra de materiais bélicos.
Para o general canadense
Rick Hillier, os talebãs são
“assassinos detestáveis” e
as forças ocupantes, um
orgão do Estado como
outro qualquer, com o
“trabalho de matar”
Desde 1998, o Canadá se habituou a registrar grandes excedentes orçamentários. Mas mesmo após os atentados de 11
de setembro de 2001 e do aumento das
preocupações do ocidente com a segurança, essa liquidez ainda não tinha resultado numa alta significativa dos fundos
concedidos ao exército. Sob essa lógica,
em 2003, o primeiro-ministro liberal, Jean
Chrétien, sabendo que sua saída estava
próxima, se deu o luxo de não comprometer seu país no Iraque. Uma decisão que
Harper reprovava na época.
De qualquer forma, Chrétien fez a cama da revolução conservadora que Harper
desejava conduzir, enfraquecendo consideravelmente o estado construído pelos
liberais durante 30 anos: acabou com a dívida colocando em prática um rude programa de “desengorduramento” e deu aos
conservadores a liquidez necessária para
transformar o país.
Os anos de vacas magras coincidiram
com o declínio da doutrina militar canadense voltada para operações de manutenção da paz. Um dos últimos episódios com
essas características foi o genocídio de 1994 em Ruanda. Comandante das forças das
Nações Unidas naquele país, Romeo Dallaire declarou, em 2003, sua incapacidade de
impedir o massacre e mobilizar a comunidade internacional.
O antigo chefe das forças armadas canadenses, general Rick Hillier, se revelou um
ótimo parceiro para Harper. Ele foi o primeiro dos seus homólogos a se formar nos estados Unidos e a defender a cultura do combate e da “liberdade”, com um tom próprio dos
generais americanos – muito distante do
perfil geralmente adotado pelos militares
canadenses. Defendendo publicamente as
orientações seguidas por Harper, afirmou
em 2005: “Creio que o mundo espera mais
do Canadá; que o país tome para si mais responsabilidades. Mas essas responsabilidades e a oportunidade de influenciar o curso
das coisas somente são acordadas se há engajamento em uma missão específica”.
E essa missão era o Afeganistão. Com
frequência, Hillier emprega um tom belicoso, sem esquecer de evocar algumas fanfarronices texanas, e toma regularmente a palavra para pedir mais recursos. Os talebãs
são para ele “assassinos detestáveis e inescrupulosos”, e as forças canadenses “não
são um órgão do Estado como outro qualquer: nosso trabalho é matar”.
Colaboração estreita com os EUA
Hillier deixou o cargo em julho de 2008 e
foi substituído pelo general Walter J. Natynczyk, mais discreto, mas igualmente formado nos Estados Unidos. Uma nomeação que
persegue a integração, pelo exército canadense, da doutrina da “segurança” americana. Trinta anos antes, o Canadá era tido como um “refúgio contra o militarismo” de
seu vizinho…
Fiel ao ponto de vista dos conservadores
canadenses, Harper crê que a relação com
os Estados Unidos é vital para o país. O partido liberal não está longe de defender essa
ideia, mas, no seu seio, há ainda divergências sobre o quanto é necessário agradar
Washington. Para o primeiro-ministro, ao
contrário, uma colaboração estreita com os
Estados Unidos constitui a alavanca essencial para permitir que Ottawa faça diferença
de novo no mundo.
“A aceleração da mundialização permite
às novas potências, como a Rússia, China e
Índia se afirmarem. Ao mesmo tempo, 80%
do PIB canadense é vinculado aos Estados
Unidos e, cada vez mais, os americanos comercializam com outros países. A assimetria crescente das relações entre o Canadá e
os Estados Unidos inquieta Harper. Investir
mais no Afeganistão tornou-se para ele um
meio de compensar o hiato que se forma”,
explica Jean Daudelin, especialista em política estrangeira canadense e professor da Universidade de Carleton.
A iniciativa certamente deixa a Casa
Branca muito satisfeita, pois o apoio canadense alivia o já esgotado exército americano. E o reforço fornecido não se limita
apenas ao aspecto militar: ele legitima
igualmente esse conflito perante a opinião
pública nos Estados Unidos ao fazer o contraponto à guerra do Iraque, em que vários
países da coalizão inicial preferiram retirar suas tropas.
O cálculo efetuado por Harper lhe dá razão: ultimamente, o Canadá teve papel decisivo nos diferentes negócios internacionais. No ano passado, em Ottawa, uma comissão
independente condicionou a prolongação da
missão canadense no Afeganistão até 2011 à
chegada de reforços vindos de países aliados
para combater no sudoeste do país. O anúncio do envio de tropas suplementares pela
França não tardou. Reunidos em Bucareste,
em abril último, os membros da organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
acolheram calorosamente Nicolas Sarkozy.
“Stephen Harper julgou que os 700 militares que a França enviaria à fronteira paquistanesa permitiriam desafogar as forças
americanas”, analisa Christian Rrioux no
jornal de Montreal, Le Devoir. Essa decisão
marcou também o fim, segundo ele, das
“?tensões históricas? que opõem a França
aos Estados Unidos e ao Reino Unido”.
Logo depois, foi revelado no Canadá um
relatório secreto da Otan enfatizando a falta
de equipamentos e de preparo dos militares
franceses mortos numa emboscada, no Afeganistão, em 18 de agosto do ano passado.
Esse documento “vazou” no jornal de Toronto, The Globe and Mail de 21 de setembro,
na véspera do debate na Assembléia Nacional francesa sobre a manutenção de soldados no país. O primeiro-ministro François
Fillon denunciou, nessa ocasião, “a mentira
e a desinformação” do relatório da Otan. Todavia, ele anunciou o envio de tropas e materiais suplementares.
A imagem de “país simpático” que o Canadá mantém no exterior ajuda a legitimar
essas decisões. Se somente os Estados Unidos estivessem envolvidos no conflito, talvez a decisão francesa fosse diferente. Da
mesma forma, Harper endossa com assiduidade o papel de bom samaritano. Até mesmo se prontificou a fazer lobbies no exterior,
defendendo, por exemplo, um tratado de livre-comércio (TLC) com a Colômbia, que
envolvia principalmente os americanos.
Em novembro de 2008, o
país assinou um Tratado
de Livre Comércio com a
Colômbia para abrir as
portas sul-americanas às
empresas multinacionais
da mineração
O acordo abrirá o país sul-americano –
e seus recursos minerais – às multinacionais
sem que justos royalties sejam cobrados, o
que levará à ruína pequenos agricultores colombianos, que se tornarão incapazes de
fazer concorrência aos produtos subvencionados do Norte.
Esses fatos não foram ignorados pelo
Congresso americano, dominado pelos democratas e pouco inclinado ao livre-mercado. Bush batalhou firme para conseguir
a assinatura desse tratado. Harper se dirigiu diretamente aos membros do Congresso, numa visita a Nova Iorque, em setembro
de 2007, para pedir a ratificação do acordo.
Na ocasião, afirmou: “Se os Estados Unidos
viram as costas aos seus amigos na Colômbia, essa será a maior derrota para nossa
causa, que não importa qual ditador sulamericano poderia esperar nos infligir”. o
TLC entre Colômbia e Canadá foi assinado
em novembro de 2008, e o dos Estados Unidos até agora não foi ratificado pelo Congresso americano.
Força das convicções ideológicas
Durante a campanha eleitoral para as
eleições legislativas diferentes opositores
tentaram descrever Harper como um “Bush
bis”. Essa caricatura negligencia um aspecto
importante da sua personalidade: a força de
suas convicções ideológicas. Nunca um chefe de governo canadense tinha sido dominado por tais ímpetos. Sua cultura política é
profundamente impregnada pelos Think
tanks (centros de pesquisa e análise da conjuntura)- conservadores e próximos dos interesses privados. Harper, ele mesmo, dirigiu uma dessas organizações, de 1998 a
2002, que o acompanha desde o início de
sua carreira política: a Coalizão Nacional
dos Cidadãos.
A retirada das tropas canadenses do
Afeganistão está prevista para 2011. Mas
a chegada à Casa Branca de Barack Obama,
Marc-Olivier Bherer é jornalista.