O novo fundamentalismo
À noite, assistindo ao excelente documentário de Silvio Tendler sobre o geógrafo Milton Santos1, deparei com uma frase instigante. Em meio a suas reflexões geniais sobre os horrores da globalização neoliberal e a possibilidade de outra globalização (a globalização dos povos), o grande intelectual, há pouco falecido, de repente afirma: “O consumo tornou-se o maior de todos os fundamentalismos”
Noutro dia, parado em frente a uma banca de jornal do centro de São Paulo, procurando saber como nosso periódico se apresentava em meio àquele mar de publicações, escutei sem querer a seguinte afirmação: “Essa aí teve sorte. Escapou daquela porcaria e vai viver em um país bem melhor”. “Porcaria” não foi exatamente a palavra empregada: utilizo-a aqui em respeito ao leitor. Logo descobri do que se falava. À minha frente, um jornal estampava na primeira página a história de uma menininha chinesa supostamente abandonada pelo pai na Austrália.
Olhei de esguelha para saber quem falava. Era um rapaz, com não mais do que vinte e poucos anos. A gravata e o crachá indicavam que trabalhava em alguma “firma”. O tecido da camisa informava que ainda se encontrava longe do topo da pirâmide. O ar atrevido, “proativo”, dizia que estava se esforçando bastante para chegar lá. Fiquei irritado com sua frase. Quis retrucar. Mas, em uma fração de minuto, meu pensamento tomou outro rumo. Perguntei-me que ideologia perversa era aquela que fazia com que um “brasileiro” (o “homem cordial”, segundo o estereótipo criado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda) se tornasse tão insensível ao drama daquela menina. E, em sua desvirtuada escala de valores, posicionasse a possibilidade de viver no “paraíso capitalista” acima do amor. Saí de perto e deixei o assunto para trás.
À noite, assistindo ao excelente documentário de Silvio Tendler sobre o geógrafo Milton Santos1, deparei com uma frase instigante. Em meio a suas reflexões geniais sobre os horrores da globalização neoliberal e a possibilidade de outra globalização (a globalização dos povos), o grande intelectual, há pouco falecido, de repente afirma: “O consumo tornou-se o maior de todos os fundamentalismos”. Lembrei-me imediatamente do jovem da banca de jornal. Sim, estávamos assistindo à formação de uma nova geração de fundamentalistas. E, antes que tivesse tempo de exercer a autocensura, meus pensamentos já haviam produzido o clichê desse personagem emergente: ele não vestia túnica, mas se orgulhava de sua gravata; não lia os versículos do sagrado Corão, mas seguia religiosamente os ensinamentos da revista semanal de maior circulação; não peregrinava a Meca, mas juntava dinheiro para viajar à Disneylândia; não amarrava explosivos em torno da cintura, mas achava normal que os Estados Unidos despejassem toneladas de bombas sobre as cabeças dos iraquianos.
A palavra “fundamentalismo” incorporou-se à linguagem cotidiana a partir da prática espetaculosa de minorias religiosas fanáticas. O termo é intrinsecamente incorreto. Porque não há nada que se afaste mais dos fundamentos radicalmente libertários das grandes tradições espirituais do que a visão dogmática e o comportamento sectário desses grupos infelizes. A partir de uma leitura superficial que priva os textos fundadores de sua multidimensionalidade polifônica (capaz de suscitar numerosos níveis de interpretação), esses agrupamentos formulam seu credo monocórdio e passam a agir com a inabalável certeza de serem guiados por Deus.
Embora a mídia enfatize as ações muitas vezes cruéis dos fanáticos muçulmanos, há “fundamentalismos” de todos os matizes, como o demonstrou exaustivamente Karen Armstrong2. No dia 25 de fevereiro de 1994, o mundo enojou-se com o ataque de um “fundamentalista” judeu à Mesquita de Hebron – ato que tirou a vida de 29 palestinos no momento da prece e profanou a santidade de um local sagrado também para o judaísmo3. O “fundamentalismo” cristão – agora sabemos bem – foi um dos sustentáculos ideológicos da política de apartheid na África do Sul4. E até mesmo o hinduísmo, tradicionalmente inclusivo, produziu sua versão “fundamentalista”, o Vishwa Hindu Parishad (Conselho Mundial Hindu)5.
Por mais mortíferas que sejam as ações do “fundamentalismo” religioso, porém, elas têm-se mostrado incomparavelmente menos letais do que as práticas do emergente fundamentalismo neoliberal ou neoconservador. Basta mencionar algumas cifras:
• Número total de vítimas dos atentados de 11 de setembro: 2.993 mortos (inclusive os 19 seqüestradores) e 24 desaparecidos6.
• Número de civis iraquianos mortos durante a Guerra do Iraque: de 73.498 a 80.1167.
E não são apenas as carnificinas da guerra que produzem sofrimento em tão larga escala. Mamon8, o dourado deus do dinheiro, é ainda mais impiedoso. Longe dos engravatados e refrigerados centros decisórios da grande finança internacional, o catecismo neoliberal fez com que 30% dos argentinos resvalassem para o bolsão da pobreza entre os anos de 1996 e 20029.
Diante desses números terrificantes, seria o caso de perguntar ao loquaz jovem da banca de jornal: de que “porcaria” estamos falando, cara pálida?
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.