O país onde as palavras escondem mais do que revelam
No Brasil as palavras não apenas também parecem existir mais para encobrir do que para desvelar, como também o movimento de ir em direção ao que há no “não dito” não alcança o grande público
Em um dos seus livros mais recentes¹, a filósofa boliviana Silvia Rivera Cusicanqui escreve que sociedades em “situação colonial” têm uma relação estranha com as palavras: ao invés de desvendarem a realidade, são elas que a encobrem. É o “não dito” que sempre tem, paradoxalmente, algo a dizer, porque é nele que se encontram os sentidos, as convenções e as crenças que orientam e determinam a vida social, enquanto o “dito” existe mais como dispositivo de alienação do que potência de revelação.
A autora utiliza o exemplo do atual período republicano da Bolívia para argumentar que, enquanto o “dito” do discurso público sempre circulou em torno de “ideologias igualitárias”, o “não dito” – verdadeiro alicerce das relações sociais e políticas bolivianas – é que a maioria da população não tem acesso aos mesmos direitos que uma minoria.
A análise de Cusicanqui, porém, pode ser estendida para o contexto brasileiro: aqui, as palavras não apenas também parecem existir mais para encobrir do que para desvelar, como também o movimento de ir em direção ao que há no “não dito” não alcança o grande público.
Ao contrário: sempre que o “dito” aparece de algum lado para expressar uma das nossas várias espécies de preconceito e egoísmo, as indignações momentâneas, atenções públicas, reações da imprensa e do marketing empresarial e mesmo as atitudes mais concretas se contentam em repugná-lo como ele se apresenta superficialmente, isto é, pela palavra que manifesta a visão preconceituosa, não pelo “não dito” que permite que ela exista – que permanece ileso.
Os preconceitos são muito combatidos quando escapam das estruturas que os criaram, quando deixam de ser aquelas existências que silenciosamente coordenam o cotidiano. Quando vazam de um subterrâneo que todo mundo sabe haver e se tornam palavras, falas, gritos, textos, tweets, “ditos”. As estruturas, as existências silenciosas, o subterrâneo, porém, não são atingidos. Ataca-se simplesmente o que se fala, e não as condições que elaboram o que é falado.
O que é “dito” impressiona porque alguém foi capaz de dizê-lo, enquanto o “não dito”, difuso entre as relações sociais, mas sem o qual o “dito” não existiria dessa forma, permanece incólume há décadas. Daí os arroubos preconceituosos e violentos que aparecem quase semanalmente – e para os quais temos os mesmos tipos de reação.
Assim, o “dito” assume aqui o mesmo papel descrito por Cusicanqui: ele encobre o “não dito” ao fazer um preconceito ser apenas uma fala particular, a expressão raivosa de uma individualidade, a palavra isolada de um ódio – e não a amostra de uma estrutura preconceituosa.
Isso se prova, por exemplo, nas respostas típicas que preconceituosos de diversas estirpes vociferam imediatamente após um discurso odioso: ou foram “mal interpretados” ou tiveram suas falas “retiradas do contexto” – só mais dignas do que aqueles que jogam a culpa na loucura, como se o que os “loucos” falam ou mesmo como se a loucura não tivesse sido construída justamente como a capacidade de dizer o “não dito” sem nenhuma constrição.
A má interpretação ou a perda do contexto são reações puramente retóricas, culpando as palavras por serem demasiado frouxas, já que permitem maus entendidos ou compreensões equivocadas de situações em que elas foram usadas.
O caso mais recente (óbvio) é o do presidente da República, para quem o medo coletivo da covid-19 é reflexo do “país de maricas” que somos. Todas as respostas posteriores a ele se concentraram na força da frase – tanto pela expressão direta, imediata, clara do preconceito, quanto por ter saído da boca de um chefe de Estado. O próprio Bolsonaro, já consciente do tipo de reação social às suas falas, completou em seguida concordando que havia dado um novo “prato cheio para a imprensa”. Foi o que, de fato, aconteceu: enquanto circulava pelas mídias o presidente vociferando ódio em um discurso público dentro do palácio presidencial, a homofobia matava uma pessoa a cada 23 horas nas ruas do Brasil.
Antes dele, houve o caso do economista Rodrigo Constantino – praticamente esquecido no espiral de preconceitos dos últimos tempos. Depois de dizer, ao vivo, em um programa de uma rádio paulistana, que se sua filha fosse estuprada em uma festa depois de ingerir álcool e se relacionar com dois homens, ele “não denunciaria esse cara para a polícia”, porque o “comportamento absolutamente condenável” seria justamente o dela, sua defesa à reação negativa enérgica do público foi dizer, no Twitter, que teve sua “fala distorcida”. Também disse que não estava se referindo ao caso de Mariana Ferrer, a menina estuprada em Santa Catarina cujo julgamento absolveu o réu pelo que o portal Intercept chamou de “estupro culposo“, e que o que ele disse foi “retirado do contexto”.
Mesmo no caso Ferrer, dias antes, a reação pública se concentrou na expressão que o site utilizou para ilustrá-lo – exceção ao professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se atentou às circunstâncias legais de um julgamento em que a vítima tornou-se imediatamente culpada na argumentação do advogado e com anuência do juiz, que ali representava o Estado (de direito).
Talvez o excesso de atenção sobre o que é “dito” seja resultado de relações cada vez mais intermediadas pelas redes sociais, onde a letra do texto que se posta ou a fala do vídeo que circula servem como combustível das conversações que, por sua vez, acontecem em espaços reduzidos e imediatos. Na Internet, aliás, há muita possibilidade de falar (mesmo para revelar o que está no “não dito”), mas pouca em perceber quem fala e, mais importante, o que elabora o que se fala. Ela é mais um instrumento do “dito” que, assim como a palavra, encobre mais do que revela.
É no “não dito” onde os fenômenos sociais acontecem primeiro, onde as percepções são elaboradas, as desigualdades são legitimadas, os cálculos individuais são feitos, funcionando como um escudo que perpetua essas formas de ver o mundo. O “dito” é apenas o meio de expressá-lo – e daí a necessidade de ir além dele, de atravessá-lo, de minar onde ele ainda não é instrumento, mas apenas aquela existência silenciosa.
É quando irmos ao “não dito” que ampara o dito, quando a palavra não ser o limite da nossa reação aos preconceitos que pululam toda hora, mas, ao contrário, ser o instrumento capaz de ir além dele, que talvez nos deparemos com as raízes dos grandes problemas desta época.
Ou, nas palavras de Cusicanqui, quando as palavras vão, enfim, deixar de ser apenas ficção.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).
¹ Silvia Rivera Cusicanqui, Ch’ixinakax utxiwa – Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores (Tinta Limón, 2010)