O papel civilizatório da esquerda
A derrocada da experiência socialista somada à direitização dos partidos de esquerda tradicionais gerou um clima de perplexidade. Este momento de crise pode ser uma ótima oportunidade para a esquerda resgatar seu caráter civilizatórioFrancisco de Oliveira
O debate sobre a possibilidade de constituição de um projeto alternativo de esquerda para o Brasil deve começar por um ponto fundamental: em geral, quase todos nós nos declaramos em estado de perplexidade. É muito comum ouvir essa expressão nos debates sobre as alternativas da esquerda no mundo — e também no Brasil — e muitos comentaristas continuam a declarar-se em estado de perplexidade, em razão, sobretudo, do desabamento geral do sistema do Leste europeu, centrado e gravitando em torno da ex-União Soviética, e em razão, também, das mudanças, que não são superficiais, no próprio regime chinês, que continua a se dizer, entretanto, um regime político de tipo socialista.
Mesmo para os que não se comprometeram com aquilo que ficou conhecido como modelo soviético e socialismo real, mesmo para aqueles que tinham posições críticas a respeito da experiência soviética, não há dúvida alguma que ela ensinou muito ao movimento socialista mundial e que a tentativa de constituição de uma potência mundial, em alguns momentos, pôde até ajudar movimentos de descolonização, e de guerras de libertação nacional, sobretudo, nos países da África. Mesmo com todas as ressalvas, o legado da experiência socialista, comandada pela ex-União Soviética, não é de forma alguma completamente negativo. Contudo, a partir desse chamado estado de perplexidade, poucos se arriscam a desenhar, de forma talvez mais nítida, o que possa ser um projeto socialista alternativo.
A perplexidade da esquerda
Vale lembrar, também, nesse breve resgate da história mais recente, que partidos social-democratas na Europa, com uma tradição de esquerda bastante arraigada, têm praticado, ultimamente, uma certa abertura para o centro, nos casos típicos, sobretudo do Partido Trabalhista inglês e do Partido Social-Democrata alemão; de forma mais atenuada também do Partido Socialista francês; e sem esquecer a transformação do antigo Partido Comunista na Itália, que teve uma abertura mais para o centro, além de outros casos europeus, cujo alinhamento com as teses neoliberais foi flagrantemente uma heresia, digamos assim, em termos da tradição socialista. É o caso, principalmente, do Partido Socialista Operário Espanhol, cuja administração, sobre a liderança de Felipe Gonzalez, na verdade não se diferenciava em nada de qualquer governo neoliberal. Esse acúmulo, de um lado, de desastres; de outro, de relativa direitização de partidos de esquerda tradicionais é que instaurou a chamada perplexidade.
No Brasil, a tradição socialista, na verdade, esteve sempre gravitando em torno do Partido Comunista — inicialmente Partido Comunista do Brasil e, depois, Partido Comunista Brasileiro, que ao longo de um processo muito recente, praticamente dissolveu-se. Assim, do antigo Partido Comunista do Brasil resta pouquíssima coisa e, atualmente, vê-se que até o recente crescimento dessa sigla no Brasil é fruto de um comportamento nitidamente oportunista, e o PCB transformou-se quase numa sigla de aluguel. ou seja, também a herança socialista do Brasil foi duramente golpeada em razão da dissolução do seu núcleo, em torno do qual gravitaram outras organizações em diálogo e até em confronto, tudo isso levando a esse chamado estado de perplexidade, dentro do qual, de alguma maneira, o PT também está imerso — imerso numa certa perplexidade, sendo ele, no espectro político brasileiro, o partido de esquerda mais representativo e mais importante, sem desconsideração para com outras agremiações políticas.
Roubando o fogo dos céus
A primeira coisa sobre a qual precisamos refletir é: esse estado de perplexidade deveria ser bastante modificado se olhássemos a perspectiva da esquerda e do socialismo de forma muito mais ampla do que a temos olhado. A esquerda e as agremiações socialistas que estão na luta política há quase dois séculos, pelo menos, e de forma organizada há 150 anos, são muito mais do que partidos ou agremiações. O socialismo é muito mais do que, como a literatura clássica dizia, “um modo de produção, um novo regime político econômico e social”. Ele é muito mais do que isso. Na verdade, a esquerda, enquanto expressão da luta de trabalhadores e de outras faixas importantes da sociedade, tem um sentido muito maior do que aquele que nós próprios, militantes de esquerda, percebemos ou, muitas vezes, proclamamos. A verdade, o sentido do socialismo enquanto proposição, ao longo de toda a história da esquerda, tem sido muito mais amplo do que o significado de suas siglas; tem sido a de um caráter verdadeiramente civilizatório.
O mundo seria muito diferente se os trabalhadores não tivessem ousado, sobretudo desde o século XIX, constituir suas agremiações políticas a partir e na relação com seus apoios sindicais. Se eles não tivessem ousado, na verdade, fazer uma espécie de roubo do fogo dos céus e ousar propor um sistema alternativo ao capitalismo, o mundo seria outro hoje, com certeza. Mesmo vitórias que foram amplamente integradas no conjunto do funcionamento do próprio sistema capitalista são vitórias devidas à presença da esquerda e dessas formações sociais, ao ativo papel desempenhado pelos sindicatos ligados a agremiações políticas de esquerda e pela emergência do poder soviético a partir de 1917. Estes fatores levaram, em alguns dos principais países capitalistas do mundo, a reformas sociais importantes, aquelas reformas que constituíram, ao longo da história dos últimos 80 anos, aquilo que é conhecido como Estado do bem-estar social e que o neoliberalismo, hoje, procura abater com os seus golpes e pretensas reformas, tal como se diz no Brasil.
Um papel civilizatório
Toda essa longa história, todo esse aperfeiçoamento no sentido civilizatório, toda nova gama de direitos sociais que se integraram aos direitos da cidadania — tudo provavelmente seria outra coisa se não fossem, ao longo desse longo período, os militantes de esquerda e suas agremiações, seus programas políticos, sua intervenção ativa na política, suas tentativas revolucionárias, bem ou mal-sucedidas. O mundo seria realmente outra coisa muito diferente; o mundo se pareceria mais com essa tentativa neoliberal a que assistimos no presente, onde se imolam mulheres e homens no altar do novo deus soberano, no altar do mercado; o mundo não teria conhecido a revolução do direito político, econômico e social se não tivesse ocorrido a fecundação da esquerda, de suas agremiações políticas e de suas bases constituídas por trabalhadores e por outros setores da sociedade; se todos eles não tivessem, na verdade, inventado uma nova democracia, pois, a rigor, o sistema democrático é, a todos os títulos, uma construção da esquerda ao longo da história. Quando novas classes sociais ingressaram na arena política é que a democracia pôde começar a ser, começar a vislumbrar uma real perspectiva. Antes disso, tratava-se apenas de mudanças de guardas de plantão do comando dos principais Estados desenvolvidos do mundo capitalista.
É só a partir do século XIX, quando o operariado entra para valer na cena política, que se pode falar de um novo regime democrático, aquele que realmente oferece — se não assegura, pelo menos oferece a virtualidade da alternativa — a alternância de modelos políticos no poder dos Estados Nacionais. Portanto, eu diria: não temos por que nos envergonhar, absolutamente. Não temos por que aceitar as acusações, denúncias e pregações vindas da direita e mesmo do centro. O papel da esquerda tem sido civilizatório, para além mesmo de suas próprias pretensões políticas. Aliás, o papel da esquerda e de suas agremiações políticas tem sido, na verdade, nos últimos 150 anos, o da construção de uma nova humanidade, com toda a carga e todo o peso que esse nome contém. Uma nova humanidade, algo que algum filósofo poderia dizer para além do humano, para além de todas as misérias do mundo. Esse ponto é muito importante, porque muito da perplexidade e, também, do ataque vindo das formações de direita consiste em culpar a esquerda pelo terrorismo de Estado que esteve presente na União Soviética e que está presente, em algum grau ainda, na China, por exemplo. Não podemos nos recusar a discutir e debater esse tipo de questão, mas não podemos nos colocar, senão de forma orgulhosa, como fazendo parte de uma ampla formação histórica que redefiniu os contornos, redefiniu as formas e redefiniu mesmo o lugar do homem na história. Esse é um patrimônio que os militantes e os movimentos progressistas não podem desprezar nem ficar perplexos diante dele. E esse é um ponto de partida para qualquer reflexão que possa encaminhar o futuro.
A deslegitimação do trabalho
Creio que a perspectiva da esquerda, para o futuro, não apenas continua sendo tão ampla — se ligarmos a perspectiva do futuro à nossa história passada e à nossa história presente —, como foi nos últimos 150 anos — definidos, pelo menos, a partir da revolução de 1848 na França e na Alemanha —, mas se tornará ainda maior, mais ampla do que esse caminho já percorrido. E isso, exatamente porque tudo aquilo que, nos últimos 80 anos, pôde ser integrado ao funcionamento do próprio sistema capitalista e que hoje se encontra sob ataque dos neoliberais, está ameaçado de transformar-se no sonho liberal mais radical, aquele enunciado pela madame Thatcher, quando disse, certa vez, que não existem sociedades, mas sim indivíduos. E essa frase não é apenas uma frase ou apenas retórica, mas é uma frase que diz muito a respeito desse projeto, do projeto neoliberal.
O futuro está aberto agora a uma nova confrontação. Não se trata apenas de atenuar as perdas sociais, civis e políticas que estão no rastro da devastação neoliberal. Na verdade, é preciso radicalizá-las, para levar mais longe essas conquistas que foram já produtos da luta dos trabalhadores organizados em suas agremiações, levar mais longe no sentido de cumprir a promessa da modernidade, a promessa de seres humanos autônomos com capacidade de decidir sobre o seu próprio futuro, independentes e livres; enfim, porque o processo em curso, orquestrado pela hegemonia neoliberal, não apenas é um processo que exclui cidadãos do mercado de consumo, não apenas é excludente do ponto de vista do mercado e do mercado de trabalho, mas por algo que é muito mais grave, que tem como âncora essa exclusão do mundo de trabalho e portanto a deslegitimação do significado do trabalho para os trabalhadores e não do significado do trabalho para os capitalistas. Essa deslegitimação é a âncora a partir da qual o movimento da ampla hegemonia neoliberal busca outra coisa, na verdade: busca excluir trabalhadores de outros setores da sociedade, excluí-los da cidadania.
A conquista dos direitos
Um processo, portanto, inteiramente oposto ao processo clássico, que vem desde a Revolução Inglesa, passando pela Revolução Americana e desembocando de forma não só auspiciosa, mas de forma inteiramente revolucionária, na própria Revolução Francesa. Esse caminho, que desembocou nas chamadas revoluções gloriosas, era o caminho pelo qual a própria burguesia, enquanto nova classe dominante, buscava integrar o dominado no seu campo de significados como mecanismo de dominação e não como um mecanismo pensado de forma perversa, para que a exploração da força de trabalho, a exploração dos trabalhadores, pudesse ser consensual, pudesse parecer natural. Para que quem sai de casa às três horas da manhã para tomar um ônibus e entrar numa fábrica ou num escritório não considere isso como uma violência ao corpo, como uma violência à pessoa. Foi preciso integrar os dominados naquilo que o pensador italiano de primeira linha, Antonio Gramsci, chama de formação da hegemonia e de formação do consenso, para que a gente saia de casa todos os dias para ir ao trabalho e considere isso como natural. Foi preciso, portanto, integrar trabalhadores no campo de significados da própria burguesia, a partir dessa integração que não é passiva, mas é uma integração da qual os próprios trabalhadores foram os grandes atores, com as suas lutas, com suas organizações, com seus sindicatos, lutando pelo rebaixamento, pela redução da jornada de trabalho, e criando suas caixas de assistência mútua, que depois foram a base de construção de toda a previdência, de toda a seguridade social em todo mundo. No Brasil, essa experiência repetiu-se tal como em outros países do mundo, e foi a partir das caixas de socorro constituídas por frações de categorias de trabalhadores que Vargas montou os institutos de previdência, que depois se transformaram, sob a ditadura, no INSS.
Portanto, os trabalhadores não foram atores passivos desse processo de ressignificação dos direitos, de reconstrução, de redefinição da própria hegemonia. Eles foram atores ativos, não no sentido de subordinados, não no sentido que tivessem construído a cama onde a burguesia iria se deitar, mas no sentido precisamente de estabelecer os direitos dos trabalhadores como direitos e não como carências. O trabalhador tem direitos a partir dessas conquistas, e não carências. Ele não sofre de carência de habitação: a carência de habitação é o fundamento material do direito da habitação. O que está em jogo, nesse momento, é a destruição desse trabalho integrador ao longo de séculos, dos quais os trabalhadores foram atores ativos e, talvez, os mais importantes, muito mais importantes do que a literatura assinala.
A repressão aos petroleiros
Por isso, a tentativa de deslegitimação do estatuto do trabalho aparece como uma ponta de lança desse movimento neoliberal. Não é que não exista mais trabalho. Mesmo com todas as modificações tecnológicas, todas as pessoas, mesmo aquelas que estão nisso que a literatura, de forma infame, chamou de setor informal — os que saem para tentar na rua alguma subsistência —, continuam a sair todos os dias para tentar dar uma significação ao que quer dizer trabalho. O que quer dizer trabalho transformou-se em um significado no campo dos direitos humanos mais amplos, pavimentando e sustentando, na verdade, a criação de novos direitos. Essa é a batalha maior que está em curso.
Quando o governo Fernando Henrique Cardoso reprimiu a greve dos petroleiros com toda a violência, indo mais além do que a própria ditadura foi em seus períodos mais duros, prendendo trabalhadores, mandando o Exército vigiar refinarias, ali não estava em jogo apenas a discussão dos salários dos petroleiros, ali estava em jogo o papel ativo de uma categoria sindical importante, pois devemos nos lembrar que foi na mesma época em que estava no Congresso, em discussão, a reforma constitucional para extinção do monopólio estatal do petróleo. Quer dizer, a greve dos petroleiros foi reprimida com aquela fúria porque o que estava em jogo era a reforma sobre o petróleo e não os salários dos petroleiros. Evidentemente, o salário dos petroleiros e o desabastecimento — que foi inteiramente fictício e fajuto como todo mundo sabe — impregnaram outros setores da sociedade, retirando apoio à greve de uma categoria que, sem o apoio social, não pode se sustentar. O que estava em jogo era o significado do que quer dizer trabalho e o que quer dizer trabalho para uma categoria importante como aquela, na estrutura do movimento sindical brasileiro e, especialmente, na estruturação particular da CUT.
A exclusão do mercado
Repetiu-se, mais uma vez, como Marx gostava de dizer, “repetiu-se como farsa aquilo que foi uma tragédia”. Repetiu-se como farsa porque é na periferia do capitalismo que se passou isso, inteiramente similar à ação do governo Thatcher na destruição do movimento sindical dos mineiros ingleses. A estratégia de aniquilamento foi a mesma. Hoje na Inglaterra, restam apenas peças para o Museu da História do Trabalho e Museu da História Sindical. É assim que Margareth Thatcher pôde fazer as privatizações, porque uma categoria importante havia sido posta numa espécie de ilegitimidade social.
Essa é a batalha que está sendo travada e para a qual a esquerda é de novo convocada. Para continuar a operar essa mudança, essa metamorfose do significado dos direitos ao longo da história. Agora, trata-se não apenas de combater o desemprego. É importante combater o desemprego, posto que sem a base material qualquer idéia torna-se apenas imaginação, qualquer ação perde a sua efetividade. É importante lutar com relação à exclusão do mercado, que é quase uma coisa impossível, porque, do mercado, enquanto lugar onde você reproduz a sua existência, ninguém escapa. Nem mesmo o mais humilde dos mendigos deixa de estar no mercado, porque alguma coisa ele compra com o pouco da esmola que consegue das pessoas. O problema mais grave é que se trava uma batalha, na verdade, pela destituição dos direitos e pela deslegitimação do trabalho do ponto de vista dos trabalhadores e por um movimento reversível do processo de construção da cidadania em cada um dos países e da cidadania numa espécie de cidadania mundial. É isso que está em jogo: o projeto neoliberal. Lembrando a frase de Thatcher, eu ousaria dizer uma frase de significado ideológico e teórico mais profundo: “Onde não há sociedades, só há indivíduos, existem átomos de força de trabalho que podem ser utilizados ao bel prazer das forças do capital”.
A vanguarda ideológica neoliberal
Porque, sem nenhuma organização, voltaremos ao estado em que o trabalho e os trabalhadores eram pura mercadoria, mercadoria tal como a experiência até muito recente do Brasil ensinou, no caso, por exemplo dos bóias-frias, trabalhadores das grandes culturas do interior de São Paulo, onde reproduziu-se o mercado de mercadorias em toda sua dimensão: diariamente, trabalhadores e sua força de trabalho eram leiloados por aquilo que a literatura especializada e que o movimento de trabalhadores chamou de gatos, que eram os intermediários entre usinas, laranjais, plantações de soja e de trigo que utilizam trabalhadores temporários. É para voltar a esse estágio em que o trabalhador era pura mercadoria — e a mercadoria, portanto, não tem direitos —, é para voltar ao estágio da escravidão, no qual os africanos, trazidos pelo comércio negreiro, eram leiloados em uma praça. E, nas estatísticas do Ministério da Fazenda, desde o Império até a República, constavam como peças — peça era a denominação usada para designar os escravos nas guias de importação: o navio de nome tal aportou no porto do Rio de Janeiro trazendo uma leva de 50 peças masculinas e 50 peças femininas…
É para voltar a esse estágio de mercadoria que existe o trabalho ideológico da vanguarda neoliberal. Na verdade, para desqualificar o trabalho, desde que os trabalhadores foram capazes de ressignificar o que quer dizer trabalho: trabalho quer dizer direito, trabalho quer dizer chegar a co-dirigir as empresas do sistema, para um dia dar um salto qualitativo e superar o próprio sistema.
A reconstrução do socialismo
Mas qual a perspectiva concreta que existe no Brasil? Pode a esquerda apresentar um projeto alternativo para o Brasil neste quadro mundial?
Não podemos esquecer o quadro mundial por duas razões importantes: em primeiro lugar, porque está em curso esse processo que a literatura e a imprensa chamam de globalização, o qual não é uma fantasia, não é um processo homogeneizador nem é equalizador, mas é um processo fortemente estruturado, fortemente hierarquizado e fortemente segmentado. Um processo muito mais do lado do capital, evidentemente, e que nós precisamos levar a sério. E, do outro lado, em segundo lugar, não só como corolário da globalização, mas também na onda de ascensão da ideologia neoliberal, existe, evidentemente, um processo que é também global, de desqualificação do trabalho, de desmontagem das instituições que foram duramente construídas. Porque, na história, tudo aparece como feito por milagre. A grande construção da previdência social do Brasil, na maior parte dos livros de história, aparece como sendo uma doação de Vargas, o que é uma imensa falsificação da história brasileira, da história dos trabalhadores brasileiros. Quer dizer, tendo em conta isso, e tendo em conta a experiência socialista que foi debatida por toda a esquerda, principalmente nos anos 20 e 30, sob o tema da construção do socialismo num só país — e toda ala à esquerda advertiu constantemente para o risco de tal construção —, temos que estar imersos num amplo movimento, em escala mundial, de reconstrução do socialismo, das opções de alternativas de esquerda. É preciso estar atento ao movimento em escala mundial das outras formações de esquerda, porque não poderá haver socialismo como alternativa no Brasil, repetindo a experiência do socialismo num só país. Não terá viabilidade; não porque os trabalhadores não tenham a capacidade e a inventividade necessária, mas não terá viabilidade porque as forças contrárias se abaterão com toda a ferocidade sobre uma nova experiência, como continuam a se abater e a se direcionar contra Cuba, que resistiu esses anos todos ao bloqueio norte-americano.
Invenções da esquerda avançam
É por isso que temos que prestar atenção. Do ponto de vista mais concreto, é preciso combinar todas as frentes de luta. Nenhuma frente de luta pode ser desprezada, nenhuma forma da luta deve ser desconsiderada ou subordinada a qualquer outra. Quer dizer, temos a luta institucional, através dos mecanismos da democracia representativa, e devemos ter, criar e recriar as formas de ação direta, de democracia direta, porque a democracia representativa, na periferia do capitalismo, é um fracasso completo, é um simulacro da representação social. Mas nosso objetivo não é destruí-la, senão de novo dar-lhe um novo significado, o que significa não apenas eleger representantes para o Congresso, eleger o presidente da República etc. Dar novo significado quer dizer recriar e criar as ações de base, as formas de democratização direta na base da sociedade, sem o que, como nos advertiu de novo Gramsci, “tudo não passará de uma ilusão perigosa”. Ou seja, sem o trabalho sistemático de conquista e de enfrentamento em todos os pontos de luta, ganhar uma eleição não terá significado algum. Mas é preciso preparar uma espécie de longa marcha.
Os partidos de esquerda já têm experiência sobre isso. As inovações mais importantes, no âmbito da política institucional no Brasil, são invenções da esquerda, não da direita. A invenção do orçamento participativo em Porto Alegre é uma invenção da esquerda, é uma invenção sobretudo do PT e suas alianças regionais e locais. As várias administrações de prefeituras que têm recebido prêmios internacionais, desde o Ceará até Rio Grande do Sul, desde pequenas cidades pobres com orçamento fraco, são invenções da esquerda brasileira, não são invenções da direita. Até o Banco Mundial está perguntando, hoje, o que quer dizer orçamento participativo. E há várias invenções, como a Fundação Perseu Abramo, que está presente hoje no mercado editorial brasileiro. Isso é lutar dentro do próprio terreno construído pelo sistema capitalista, oferecer livros de boa qualidade, livros que são atuais, isso pertence ao debate atual; isto é, ir ao coração dos problemas. Essas pequenas coisas constituem a longa marcha, sem a qual nenhuma perspectiva eleitoral poderá ser viável, nenhuma perspectiva eleitoral se sustentará. É preciso aprender esse processo de luta em todos os fronts, de todas as formas, combinando ação institucional com ação direta, combinando eleição de presidente — ou tentativa de eleição de presidente da República — com a eleição do vereador; combinando organização de conselhos em todos o
Francisco de Oliveira é professor emérito da FFLCH-USP; membro do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania; ex-presidente do Cebrap (1993-1995). Publicou, entre outros: Crítica à razão dualista/ Ornitorrinco (Boitempo, 2003), Classes e identidade de classe na Bahia (Perseu Abramo, 2003), A noiva da Revolução/ Elegia para uma re(li)gião, (Boitempo, 2008).