O papel “esquecido” da União Soviética
A União Soviética perdeu 20 milhões de homens na Guerra, foi responsável pela grande ofensiva contra a Alemanha que permitiu a vitória dos Aliados, mas é freqüentemente igualada aos nazistas pelos historiadores oficiaisAnnie Lacroix-Riz
Dois anos após sua vitória sobre o nazismo, o Exército Vermelho tornou-se, para os povos do Ocidente, devido à guerra fria, uma ameaça1. Seis décadas mais tarde, a historiografia francesa, terminada sua mutação norte-americana, lançou a União Soviética à ignomínia, tanto pela fase do pacto germano-soviético quanto por sua “grande guerra patriótica”, na época. Nossos manuais, igualando comunistas e nazistas, vão mais longe do que os historiadores da Europa oriental2. Contudo, as pesquisas originais que alimentam essa posição apresentam um quadro completamente diferente da URSS na Segunda Guerra Mundial.
A acusação contra Moscou diz respeito ao pacto germano-soviético de 23 de agosto de 1939 e, especialmente, aos protocolos secretos: efetivamente a vitória fulgurante e arrasadora da Wehrmacht sobre a Polônia deu o sinal da ocupação pela URSS da Galícia oriental (leste da Polônia) e dos países bálticos3. Desejo de expansão, realpolitik ou estratégia defensiva?
Sem “segurança coletiva”
Nossos manuais, igualando comunistas e nazistas, vão mais longe do que os historiadores da Europa oriental
Retomando a tese dos renomados historiadores Lewis B. Namier e Alan John Percivale Taylor, assim como do jornalista Alexander Werth, os novos trabalhos de historiadores anglófonos esclarecem as condições nas quais a URSS chegou a essa decisão. Eles mostram o encorajamento dos Estados Unidos à obstinação da França e da Grã-Bretanha, que em sua política de “apaziguamento” – ou dito de outro modo, de capitulação diante das potências nazistas – arruinou o projeto soviético de “segurança coletiva” dos países ameaçados pelo Reich. Por isso os acordos de Munique (29 de setembro de 1938), pelos quais Paris, Londres e Roma permitiram a Berlim anexar, imediatamente, os sudetos. Isolada diante de um III Reich que tinha, no momento, “as mãos livres a Leste”, Moscou assinou com Berlim o “pacto de não-agressão” que a poupou provisoriamente.
Assim terminava a missão franco-britânica enviada a Moscou (de 11 a 24 de agosto) para acalmar as vozes que, após a anexação alemã da Boêmia-Morávia e da satelização da Eslováquia, pediam uma frente comum com a URSS. Moscou exigia a aliança automática e recíproca de 1914, que deveria associar Polônia e Romênia, feudos do “cordão sanitário” antibolchevique de 1919, e os países bálticos, vitais para a “Rússia da Europa4“. O almirante britânico Drax e o general francês Doumenc deveriam fazer recair apenas sobre Moscou a marca do fiasco: era preciso apenas “deixar a Alemanha sob a ameaça de um pacto militar anglo-franco-soviético e ganhar o outono ou o inverno, retardando a guerra”.
Quando o chefe do Exército Vermelho, Klement Verochilov, “preciso e direto”, lhes propôs, em 12 de agosto, “o exame concreto dos planos de operação contra o bloco dos Estados agressores”, eles admitiram que não tinham poderes. Paris e Londres, decididas a não fornecer nenhuma ajuda a seus aliados do Leste, haviam delegado a tarefa à URSS, mas a tornaram impossível: Varsóvia (especialmente) e Bucareste haviam sempre recusado o direito de passagem ao Exército Vermelho. Tendo “garantido” a Polônia sem consultá-la, Paris e Londres se diziam imobilizadas pelo veto (secretamente encorajado) do germanófilo coronel Josef Beck, que invocava o “testamento” de seu predecessor, Josef Pilsudski: “Com os alemães nos arriscamos a perder nossa liberdade, com os russos, nós perdemos nossa alma”.
O caso era mais simples. A Polônia havia tirado dos soviéticos, em 1920-1921, com ajuda militar francesa, a Galícia oriental5. Desde 1934, cega aos apetites alemães, ela tinha um grande temor que o Exército Vermelho tomasse facilmente seus territórios. A Romênia temia perder a Bessarábia tomada dos russos, em 1918, e mantida graças à França. A URSS também não obteve “garantia” dos países bálticos, cuja independência de 1919-1920 e a manutenção da influência alemã deviam ao “cordão sanitário”.
Isolamento e sobrevivência
França e da Grã-Bretanha, com a política de capitulação diante das potências nazistas, arruinaram o projeto soviético de “segurança coletiva”
Desde março e especialmente de maio de 1930, Moscou era cortejado por Berlim que, por preferir – pela experiência – uma guerra com um único front, lhe prometeu, antes de se lançar sobre a Polônia, respeitar sua “esfera de influência” na Galícia oriental, no Báltico e na Bessarábia. Cedeu, no último momento, não a um fantasma da “revolução mundial” ou do “Drang nach Western” (esse avanço para o Oeste caro ao publicista alemão de extrema direita Ernst Nolte): enquanto Londres e Paris adulavam Berlim, a União Soviética receava “ser implicada sozinha em um conflito com a Alemanha”, segundo os termos do secretário do Foreign Office, Charles Lindsley Halifax, em 6 de maio de 1939. O Ocidente expressou estupefação diante da “sinistra notícia que explodia sobre o mundo como uma bomba6” e denunciou uma traição. Na realidade, funcionários franceses e britânicos em Moscou brincavam de adivinhos desde 1933: sem a Tríplice Entente, a URSS precisou compor com Berlim para ganhar a “pausa” necessária para pôr em pé de guerra sua economia e seu exército.
Em 29 de agosto de 1939, o tenente coronel Luguet, adido da aeronáutica em Moscou (e futuro herói gaulista da esquadrilha Normandia-Niémen) atestou a boa fé de Vorochilov e considerou Stalin no lugar de “glorioso sucessor (…) de Alexandre Nevsky e de Pedro I”: “O tratado publicado foi complementado por uma convenção secreta, que define, distante das fronteiras soviéticas, uma linha que as tropas alemãs não deverão ultrapassar e que seria considerada pela URSS algo como sua posição de cobertura7“.
A Alemanha abriu o conflito geral em 1º de setembro de 1939, com ausência da Entente, que havia, em setembro de 1914, salvado a França da invasão. Michael Carley incrimina a política de apaziguamento nascida do “medo da vitória contra o fascismo” dos governos britânicos e franceses, atemorizados que a promessa à URSS do papel dirigente em uma guerra contra a Alemanha estendesse seu sistema a todos os beligerantes: o “anticomunismo”, decisivo em cada fase-chave desde 1934-1935, foi, portanto, “uma causa importante da Segunda Guerra Mundial8“.
Melhor o avanço soviético
A URSS precisou compor com Berlim para ganhar a “pausa” necessária para pôr em pé de guerra sua economia e seu exército
Em 17 de setembro, a URSS, inquieta com o avanço alemão na Polônia, proclamou sua “neutralidade” no conflito, não sem ocupar a Galícia oriental. Exigiu em setembro-outubro as “garantias” dos países bálticos, “ocupação ?disfarçada?, acolhida com resignação9” por Londres, a quem o Reich inquietava então tanto quanto o “avanço russo na Europa”. E tendo pedido – em vão – a Helsinki, aliada de Berlim, uma retificação da fronteira (em troca de compensação), entrou em guerra contra a Finlândia e enfrentou uma séria resistência. A propaganda ocidental chorou a pequena vítima e exaltou sua bravura. Weygand e Daladier planejaram – “sonho” e depois “delírio”, segundo o historiador Jean-Baptiste Duroselle – uma guerra contra a URSS no Grande Norte, desde o Cáucaso. Londres, porém, aplaudiu o compromisso fino-soviético de 12 de março de 1940, assim como o novo avanço do Exército Vermelho que se seguiu à derrota francesa (a ocupação em meados de junho de 1940 dos países bálticos, no final de junho da Bessarábia-Bucovinia do Norte). Depois disso, enviou a Moscou Stafford Cripps, único partidário soviético do establishment: Londres preferia, então, o avanço soviético no Báltico ao avanço alemão.
Após décadas de polêmicas, os arquivos soviéticos confirmaram que, aproximadamente, 5 mil oficiais poloneses, cujos cadáveres foram descobertos pelos alemães em 1943, em Katyn (próximo a Smolensk) haviam sido executados em abril de 1940 sob as ordens de Moscou. Terríveis com os poloneses, os soviéticos salvaram mais de 1 milhão de judeus das zonas reanexadas e organizaram uma evacuação prioritária em junho de 194110.
Esse período, que vai de 23 de agosto a 22 de junho de 1941, é objeto de um outro debate sobre o pacto germano-soviético, por Stalin. Alguns especialistas salientam, por exemplo, o fornecimento de matérias-primas soviéticas à Alemanha nazista, a mudança de estratégia imposta no verão de 1940 ao Komintern e aos partido comunistas convidados a denunciarem a “guerra imperialista” etc. Os historiadores citados aqui diminuem e até mesmo contestam essa interpretação11. Note-se que os Estados Unidos – mesmo depois de ter entrado na guerra contra Hitler em dezembro de 1941 – e a França, oficialmente beligerante desde 3 de setembro de 1939, asseguraram ao Reich abundantes cargas industriais
Annie Lacroix-Riz é historiadora e professora da Universidade Paris VII.