O papel social da literatura africana
A noite colonial foi longa e seus efeitos ainda existem. A literatura africana é um testemunho disso
Em 1987, Wole Soyinka tornou-se o primeiro negro a receber um Nobel de Literatura. Fazia apenas 27 anos que a Nigéria, seu país natal, se tornara independente. Pensar que um africano poderia receber um prêmio de reconhecimento mundial por seu intelecto e sua obra é algo recente em nossa história. Faz 34 anos do reconhecimento de Soyinka e 28 anos que uma mulher negra, Toni Morrison, recebeu o Nobel de Literatura de 1993.
A realidade de pessoas não brancas e não Ocidentais receberem reconhecimento no Ocidente é tão nova quanto a emergência dos Estados africanos contemporâneos e o fim das leis de segregação nos Estados Unidos e África do Sul. Se autores do século XVI, como Shakespeare ou Camões, podiam ser naturalmente considerados como parte do cânone da Literatura, os autores não europeus, em especial as mulheres do Sul global, estavam fora desse mundo. Mas quem fez o mundo do modo que ele é, excludente, segregado e racializado?
Nossa história foi e em muitos sentidos continua sendo mediada pelo Ocidente e essa mediação fez e faz constantes escolhas intelectuais e políticas embasadas em fortes estruturas mentais inventadas pelo próprio Ocidente. Duas marcantes ideias dessa estrutura mental para pensarmos o papel social da literatura africana são o racismo e o eurocentrismo. São apenas duas delas, mas deveras definidoras.
Seguindo o pensamento ocidental desde sua expansão globalizante no século XVI, damo-nos conta de que sua visão de mundo é excludente. Ou seja, os africanos, suas culturas, suas línguas e suas literaturas (orais e escritas) não merecem existir. Ao olhar do estrangeiro que possui um cocuruto recheado de ideias eurocêntricas do que é errado e do que é certo, ao chegar em África esse estrangeiro só enxerga coisas erradas, formas desviantes de todas expressões morais, éticas, sociais e culturais de seu berço europeu. O mesmo ocorreu com os povos originários da América, da Oceania e da Ásia.
Não falam como falam na Europa, não conhecem e não acreditam no mesmo deus, não vivem como se vive na Europa. O continente que colonizou a maior parte do mundo tratou de classificar o mundo por meio do que considerava ausências. Se não há o que existe na Europa, então não existe nada. É então esse povo classificado pelo outro, considerado inferior e sem valor.
Mas em vez de entender o não europeu apenas como diferente e assim deixá-lo, o pensamento centrado na Europa se propõe universal. Por isso, ao encontrar esse mundo diferente, o desejo de quem se considera correto é de destruir ou alterar aquilo que se considera errado. E assim foi que a missão colonizadora, carregada de uma visão de mundo estrangeira aos africanos, penetrou em suas “terras selvagens”, entre seus “povos incivilizados” para direcioná-los da “escuridão para a luz.”
A noite colonial foi longa e seus efeitos ainda existem. A literatura africana é um testemunho disso. Foi nesse mundo que Wole Soyinka nasceu. Ele e outros de sua geração, como Chinua Achebe, Ngũgĩ wa Thiong’o, Es’kia Mphahlele, Flora Nwapa, Buchi Emecheta, Ousmane Sembène, Ana Paula Tavares, Uanhenga Xitu e Rebeka Njau. Essa geração, em diferentes locais da África, viveu a noite colonial, viu os sóis das independências e descobriu a vida no crepúsculo de um mundo que ainda existe entre a colônia e a pós-colônia.
A literatura africana contemporânea nasce nesse contexto de combate – o que não significa que ela não existisse anteriormente em formas orais. Combate contra o que? Contra uma estrutura de poder racializada, contra o colonialismo que buscava apagar as culturas africanas e suas visões de mundo, contra o imperialismo que adentrava cada aspecto de suas vidas. Uma literatura forjada nesse fogo possui algo a nos dizer sobre a reconquista da humanidade em África.
Chinua Achebe, nigeriano e igbo (uma das maiores etnias da Nigéria), queria que sua literatura mostrasse ao mundo que seu povo e o seu continente, em geral, não eram sinônimos de uma longa história de barbárie, mas que também são pessoas (ACHEBE; MOORE, 2008, p.33). A afirmação de que os africanos e africanas eram seres humanos como qualquer outro era impensável nas décadas e séculos anteriores. A literatura, para Achebe, tinha e tem o papel de “tornar nossa experiência no mundo melhor, para facilitar a nossa passagem pela vida” (ACHEBE, 2012, p.30). Essa missão não foi seguida apenas por ele. Ao lermos Ngũgĩ wa Thiong’o ou Wole Soyinka, estaremos a conhecer o mundo social e intelectual dos quicuios e dos iorubás, respectivamente.
Nessa conjuntura histórica das independências africanas, a literatura, instrumento de criação e interpretação do mundo, funcionou como dispositivo para semear os laços nacionais, expressar as formas de resistências e agências africanas, assim como para denunciar as mazelas decorrentes dessa nova etapa da vida liberta. Na Nigéria, por exemplo, Mabel Segun e Adaora Lily Ulasi fizeram parte da primeira geração de escritoras do país e as quais abriram as portas para outras mulheres escritoras que, por sua vez, adentraram ao cenário de produção literária com maior intensidade a partir da década de 1970 e 1980. É nesse momento que romancistas como Buchi Emecheta e Flora Nwapa escrevem suas obras ressaltando o local das mulheres nesse cenário tomado não pela barbárie, mas pela humanidade.
Observamos a história do árduo trabalho de pessoas que precisam se afirmar como pessoas. Em ter que demonstrar não só aos outros, mas a si mesmos e aos seus conterrâneos, que eles possuem valor. Que eles são humanos depois de quase cinco séculos de tentativas de dizer o contrário. E a literatura oferece essa possibilidade.
Esses autores debutaram com suas primeiras publicações nas décadas de 1950 e 1960. Ou seja, em meio ao domínio colonial de África, em meio a leis de segregação racial no continente e fora dele, e em meio a um universo mental que só via incivilidade em África. Suas vidas eram mediadas pelo racismo e pelo eurocentrismo. O racismo tratava de inferiorizar tudo que é africano, negro e de origem não europeia. O eurocentrismo tratava de anular qualquer forma de pensar que não fosse europeia e de matriz greco-romana-cristã, tratava de invalidar e apagar culturas e línguas africanas.
Aqui mora a audácia dos autores africanos. Frente um mundo Ocidental que queria fazer crer que África era um deserto em todos os aspectos humanos, os autores divididos entre a colônia e pós-colônia recuperaram as imagens de seus povos em seus escritos. Se anteriormente a palavra e o dom de nomear era branco e europeu, essa geração vai tratar de tomar para si esse dever e reescrever o que significa ser negro(a) e africano(a).
Ao lermos Soyinka, adentramos no mundo iorubá e sua rica cultura e mentalidade. Aprendemos que o povo iorubá possui suas peculiaridades e se trata de uma rica civilização, diferente daquilo que argumentavam os colonialistas. Em Ngũgĩ wa Thiong’o, nós encontramos a luta do povo quicuio contra o colonialismo. Mais tarde, esse autor tratou de abandonar a escrita em inglês e passou a produzir na quicuio, dado que ele queria se tornar ainda mais próximo daquilo que foi atacado pelo racismo e pelo eurocentrismo. Ngũgĩ estava a desafiar um legado colonial. Rebeka Njau buscou resgatar o lugar da mulher africana/queniana na literatura e na história africana. Ela estava resgatando o papel das mulheres africanas e sua relevância no continente.
Ler a literatura africana é estar a par de que ela precisou se afirmar frente um mundo afro-pessimista em todos os sentidos. A literatura africana fez e faz parte do processo de reconquista da humanidade dos negros, das negras, dos africanos e das africanas. Não porque eles são biologicamente iguais, mas porque eles também são humanos em suas diferenças culturais, sociais, linguísticas e epistemológicas.
Onde se crê que reina a escuridão da ignorância e da incivilidade, os(as) escritores(as) africanos(as) apresentam uma versão real de suas vidas e dos seus conterrâneos. Isso contrapõe a visão pessimista criada sobre a África, sem romantizar o continente, mas evitando as armadilhas do racismo e do eurocentrismo.
Aqui entendemos a importância da literatura africana em seu papel social. É em grande parte da literatura africana que encontramos a perspectiva dos dominados, das minorias e suas heroicas resistências. Na literatura africana nós aprendemos outras perspectivas sobre o mundo e sobre a vida. É na literatura africana que encontramos o resgate de dados nativamente africanos que foram rebaixados ao longo da história. A literatura africana possui a capacidade de resgatar, afirmar, celebrar e trazer à vida o que o colonialismo, a escravidão, o racismo e o eurocentrismo tentaram apagar.
Como postula Achebe (2009), a arte é celebração da realidade, sendo assim, ela tem uma dimensão social, passível de ser vista como um empreendimento cooperativo/comunitário. Destarte, os(as) escritores(as) dos países colonizados, quando utilizam o passado ou a linha tênue do presente em suas obras, devem “fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar à ação, fundar a esperança” (FANON, 1968, p.193). Esse futuro tem sido escrito, desenhado e executado com sucesso pela geração atual de escritores(as), como: Chimamanda Adichie (Nigéria), Ishmael Beah (Serra Leoa), Chinelo Okparanta (Nigéria), Anselm Chibuike Anyoha (Nigéria), Nadifa Mohamed (Somália), Obinna Udenwe (Nigéria), Ayobami Adebayo (Nigéria), Ondjaki (Angola), Caleb Azumah Nelson (Gana), entre tantos outros na imensidão que é o mundo literário africano.
Percebe-se que não apenas entre a geração que iniciou a literatura africana ao nível mundial, mas até na atualidade encontramos um engajamento dos(as) africanos(as) com a literatura. Questões feministas, etárias, de gênero, sexualidade, das línguas africanas, das literaturas orais, hoje se tornam parte da literatura africana em suas funções sociais. Histórias que restauram a humanidade. Assim se pode resumir o grande papel social da literatura africana.
Bruno Ribeiro Oliveira é doutorando no Programa de História e Artes pela Universidade de Granada.
Rafael Barbosa de Jesus Santana é especialista em História e Cultura Afro-brasileira pela Faculdade de Educação São Luis, especializando em Relações Internacionais Contemporâneas pela UNIPAMPA, membro do Grupo de Pesquisa Interinstitucional Áfricas (UERJ e UFF) e mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Referências bibliográficas
ACHEBE, Chinua. The education of British-Protected child: essays. New York: Editora Alfred A. Knopf, 2009.
ACHEBE, Chinua. There was a country: a personal history of Biafra. New York: The Penguin Press, 2012.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
MOORE, David Choni; HEATH, Analee; ACHEBE, Chinua. A Conversation with Chinua Achebe. Transition, n.100, 2008, pp.12-33.