O pequeno-burguês gentil
Como combater uma ordem social que instalou em nós mesmos sua visão de mundo? Esse dilema atravessa a obra do sociólogo Alain Accardo, assim como a figura que o encarna: o pequeno-burguês gentil, dividido entre suas aspirações frustradas e sua revolta represada. A crise climática e a exigência de uma ecologia anticapitalista serão o fim desse gênero humano?
Ainda que na corrida pelo capital industrial e financeiro a grande burguesia tenha mantido suas vantagens clássicas, em matéria de acúmulo do capital simbólico e cultural (em particular em sua forma escolar-universitária) a pequena burguesia ultrapassou sua “irmã mais velha”. Mesmo não sendo a criadora, ela contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento e a difusão no mundo de um estilo de vida caracterizado pelo poder total do dinheiro, o culto à audácia empreendedora, o movimento dos negócios, a propensão ao consumo compulsivo e o hedonismo a curto prazo; tudo isso maquiado por uma espiritualidade de fachada.
Esse “novo espírito do capitalismo”, como o batizaram Luc Boltanski e Ève Chiapello,1 conseguiu, desde antes da grande crise de 2008, colonizar as mentes e as sensibilidades, a ponto de penetrar até mesmo nos meios em princípio mais refratários ao espírito burguês e nos mais favoráveis tradicionalmente aos valores do humanismo progressista ou aos ideais do socialismo revolucionário. Para Boltanski e Chiapello, essa orientação ideológica estava fortemente correlacionada ao espaço cada vez maior ocupado pela nova pequena burguesia nos altos cargos, os diplomados em estudos superiores, os universitários, os artistas e outros grupos e categorias de novos calouros, jovens e ricos em capital cultural, que se multiplicavam com as necessidades sociais cada vez maiores de estrutura, educação, informação, consultoria, apresentação, divertimento etc.
Os trabalhadores dos anos 2000 já eram encarregados das correntes, mas muitas delas já pareciam menos pesadas. Pelo menos era para convencê-los disso que a Escola da República e a Imprensa do Capital trabalhavam. Eles caminhavam a passos largos rumo à mutação iniciada em 1968, que, em meio século, como podemos perceber hoje, conduziu as classes médias (não sem se espalhar, por contágio simbólico de certa maneira, para as classes populares urbanizadas) a se perceberem e consequentemente se comportarem como se tivessem se tornado mônadas2 incapazes de atribuir a si mesmas outra moeda, outro ideal de vida, que não fosse o proclamado pelos grandes pregadores do egotismo pequeno-burguês da primeira metade do século XX.
Esse ideal, tal qual foi gravado por André Gide (em particular) no mármore das Nourritures terrestres [traduzido para o português como Os frutos da terra] (1897), intimava cada um a fazer de sua própria pessoa, em relação a e contra todos os tabus, “o mais insubstituível dos seres”. Da mesma forma, Paul Valéry, em seu Narcisse [Narciso] (1890), incitava cada um a “se perder em si mesmo” para aprender a “se cuidar e se unir [ao seu] inesgotável eu”. Em si, tal programa poderia ser totalmente sedutor se não tivesse implicado, entre outras condições permissivas, a instauração da pior concorrência individualista. Além disso, essa injunção moralmente mortífera se encontra sob a pluma de todos os nossos grandes autores e pensadores desde pelo menos o Renascimento e a retomada da Antiguidade. De Madame de La Fayette a Marguerite Duras, de Montaigne a Jean-Paul Sartre ou André Malraux, a literatura e, mais amplamente, todas as artes ocidentais não pararam de exaltar as potências pessoais do eu e de exortar cada indivíduo a fazer de sua vida uma obra de arte admirável, incomparável a qualquer outra, esquecendo-se de precisar que, entre as condições concretas para o sucesso de toda vida singular, existe inevitavelmente, num sistema ultraconcorrencial do qual não somos capazes de fazer abstração, a ruína e até mesmo o assassinato, em maior ou menor escala, de certo número de outros.
Desigualdade, ostentação e desperdício
Redescobrimos hoje com consternação o que a crítica marxista evidenciava desde 1844: que o discurso do humanismo abstrato, idealista e grandiloquente sobre a essência do homem universal e sua habilidade para dominar o mundo tem uma irritante tendência a fechar os olhos para a sorte concreta dos homens reais e para a submissão das massas às oligarquias. Nos anos 2000, os porta-vozes do neoliberalismo tanto de direita quanto de esquerda já tinham havia muito tempo perdido de vista, se é que alguma vez eles entenderam isso especificamente, que a moeda da emancipação humana não tinha sido formulada nem por Terêncio, com seu “Homo sum”,3 nem por Descartes, com seu “Cogito ergo sum” [“Penso logo existo”], mas pelo “Enriqueçam-se” de um certo François Guizot, historiador universitário que trabalhava no governo do “rei burguês” Luís Felipe (1830-1848). Sabemos como, na verdade, a injunção de Guizot, que se tornou a palavra de ordem de toda a pequena burguesia, foi o prelúdio do empobrecimento sem limites e sem remorso do proletariado.
Foi esse, em essência, o ponto de vista que tentei expressar ao escrever Le Petit-bourgeois gentilhomme [O pequeno-burguês gentil] há quase vinte anos. Aparentemente, muita água correu desde então sobre o plano dos eventos ou das conjunturas. A moda, inclusive, se instalou nas redações, desde os resultados inesperados da eleição presidencial francesa de 2017 e depois das eleições legislativas que se seguiram, de falar de “novo mundo”, de “ruptura” com o antigo, e de retomar em forma de informação jornalística, sem nenhuma distância crítica, os “elementos de linguagem” dos comunicantes do regime que se esforçam para repetir que a chegada de Emmanuel Macron inaugurou uma revolução – como já anunciava o título de sua campanha (Juntos França). Mas, se examinarmos um pouco o que aconteceu sob o ângulo das lógicas estruturais e da história coletiva, só podemos concluir que o movimento inercial da sociedade capitalista nunca conheceu mudanças decisivas.
Em relação a isso, até mesmo o surgimento na cena política e na esfera do Estado dos agentes do improviso macronista não tem nada de novo. No plano das estruturas, tanto subjetivas quanto objetivas, o atropelo da história parece confirmar a predileção de La Bruyère (no século XVII): “Em cem anos, o mundo ainda subsistirá integralmente: será o mesmo teatro e o mesmo cenário, não serão mais os mesmos atores”. É, de fato, sempre o mesmo repertório em cena, mas com um elenco diferente. O jovem protagonista Macron aparece brilhando, se não como o arquétipo do pequeno-burguês de nosso tempo, pelo menos como seu tipo final. Nesse sentido, ele é o ícone máximo do Homo economicus engendrado pelo capitalismo do século XXI, o neoaristocrata da sociedade da abundância, da desigualdade, da ostentação, do exibicionismo e do desperdício, o modelo por excelência proposto a nossos alunos das boas escolas.
Infelizmente para ele e seus semelhantes, eles chegaram tarde demais para deixar suas ambições se desenvolver livremente: a sociedade da abundância está desmoronando. E, mesmo que eu não queira parecer um colapsólogo, podemos perceber as premissas de um terremoto de grande escala.
Tocamos aí no único aspecto importante da realidade atual que podemos considerar verdadeiramente como uma novidade capaz de provocar mudanças essenciais no curso de nossa história: a afirmação, durante a última década, da consciência ecológica, sob a forma tanto de um discurso científico sobre as relações entre as atividades humanas e a gestão do meio ambiente natural, como de uma doutrina filosófico-antropológica sobre o pertencimento do homem à natureza – ideias e opiniões já expressas há muito tempo, sem grandes reverberações, é preciso reconhecer.
Ao contrário, nesses últimos anos nós assistimos a um destes movimentos do conjunto do corpo social que as ciências sociais sempre tiveram dificuldade em apreender porque elas têm frequentemente tendência a tratar o coletivo como interindividual e porque é praticamente impossível perceber com precisão onde, como e por que exatamente as incontáveis individualidades que formam um grupo social mudam de direção com um conjunto surpreendente, como um bando de pássaros ou um cardume de peixes que, na aparência, não obedecem a nenhum sinal isolado perceptível.
A razão é que esses movimentos inseparavelmente coletivos e individuais não têm um maestro único, mas são provavelmente orquestrados, nas populações humanas em todo caso, por um mecanismo de comunicação imediata de habitus a habitus4 nos indivíduos moldados por uma mesma matriz coletiva: mesmas reações às mesmas condições estruturais de existência e aos mesmos estímulos conjunturais. Essa forma de sensibilidade propriamente social é por natureza condenada a escapar às análises interacionistas dos cientistas políticos de plantão e à miopia pontilhista dos institutos de pesquisa. Isso explica por que a maioria de nossos pretensos especialistas não vê geralmente o aparecimento do novo no antigo.
O espectro da ecologia
Foi assim que, ao longo dos anos 2010, a maré crescente da sensibilidade ecológica pouco a pouco submergiu toda a paisagem, de maneira quase silenciosa, a despeito do barulho midiático feito em volta das vãs tentativas de recuperação eleitoreira da ecologia pelos governos sucessivos. Nossas classes dirigentes, que acreditavam ter encadeado definitivamente as classes médias ao carro do liberalismo de direita e de esquerda, pensaram primeiro que, para devolver as classes médias preocupadas ao mundo produtivista e desviar sua raiva diante do horror capitalista, bastaria confiar uma pasta ministerial, mais honrosa do que efetiva, a qualquer representante da pequena burguesia verde ávido por entrar na carreira.
Como pudemos constatar, essas tentativas da dita esquerda do governo, depois da direita macronista, para implantar no tronco capitalista um enxerto ecologista até agora consistiram num fiasco. Isso só pode surpreender aqueles que ainda não entenderam que tal projeto é essencialmente incompatível com a lógica do desenvolvimento capitalista. Esta obriga qualquer governante e qualquer gestor a vender tudo o que houver, incluindo a própria mãe, a natureza, se houver mercado para isso. É claro que, para introduzir a ecologia na política, não basta alistar qualquer jovem acólito ambicioso ou ingênuo e colar na sua testa a etiqueta de “ecologista de plantão” para resolver o problema. Nem a França, nem a Europa, nem o planeta vão melhorar. Tal qual Saturno devorando seus filhos, o capitalismo estende sua voracidade a tudo o que existe, sem se preocupar com sua própria reprodução a longo prazo: recursos minerais, vegetais, animais e até mesmo humanos, tudo passa, tudo está à venda, tudo se torna mercadoria e dinheiro. Até que o planeta inteiro se torne um vasto aterro de lixo fedorento, tóxico e inabitável. A menos que se pare essa loucura assassina antes que ela destrua tudo.
É aí que a ecologia – não a ecologia de caras e bocas de madames e pequeno-burgueses gentis apaixonados pela notoriedade, mas a ecologia como sensibilidade de massa se expressando em um projeto coletivo global de transformação social – aparece para um número cada vez maior de cidadãos como a única saída para a crise da civilização em que estamos. Assim como o “espectro do comunismo” fazia tremer a Europa do século XIX, o espectro da ecologia faz tremer o mundo do grande capital atual.
Nisso reside a única grande novidade de hoje, e a única esperança. Torna-se cada dia mais claro, principalmente no espírito da jovem geração, que não somente é preciso lutar para salvar o planeta, mas também que o combate para salvar o mundo natural é absolutamente indissociável de um combate para mudar o mundo social. Nesse nível de reflexão, a noção de ecossistema para de ser um conceito-chave das ciências da vida e da terra para se igualar, em extensão e em compreensão, ao conceito de “sistema social”.
Em outros termos, se queremos realmente salvar os ecossistemas humanos, devemos tirá-los do capitalismo. Ou melhor, tirar o capitalismo do gênero humano. Mas o sistema social capitalista continua existindo e em toda parte, conjuntamente, sob duas formas: uma, objetivada em estruturas, em instituições e em distribuições externas, a ser combatida por todas as vias tradicionais da luta política; a outra, interiorizada e incorporada em um certo tipo de sujeito, que podemos personificar sob os traços de um “pequeno-burguês gentil”. E este está bem enraizado, a profundidades variáveis, em cada um de nós. O que se segue é que o combate contra o sistema capitalista ainda é também, de certa maneira, um combate contra uma parte de nós mesmos, contra o pequeno-burguês oportunista que cochila em cada um de nós, pronto a acordar quando as sereias cantarem.
Alain Accardo é sociólogo e autor da obra Le Petit-bourgeois gentilhomme. Sur les prétentions hégémoniques des classes moyennes [O pequeno-burguês gentil. Sobre as pretensões hegemônicas das classes médias], nova edição a ser publicada pela Agone, Marselha, 2020.
1 Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel Esprit du capitalisme [O novo espírito do capitalismo], Gallimard, Paris, 1999.
2 Para o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), as mônadas, unidades singulares que constituem uma totalidade autossuficiente, “não têm janelas pelas quais qualquer coisa possa entrar ou sair” (monadologia).
3 “Homo sum, nihil humanum mihi alienum puto” [“Eu sou um homem, eu penso que nada de humano é alheio a mim”], Terêncio (século II a.C.).
4 Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, o habitus é um sistema de disposições incorporadas pelos indivíduos ao longo de sua socialização e que varia em função da origem social.