O pior de nós no poder: cenários de um Brasil incendiado
Neste artigo mapeamos a situação presente e as dificuldades existentes. Para tomar boas decisões, é preciso ser o mais realista possível. Existem rupturas e continuidades, e elas podem ser simultâneas. Salientamos, em qualquer cenário existente, todos são processos traumáticos socialmente
Existem dois grandes grupos de temas: os político-institucionais e o campo social. Em geral, o último é pouco falado e é objeto de muitas pesquisas etnográficas e de opinião. Trataremos esse terreno como campo fértil do ódio. Este cenário tem a ver com a sociedade, a cultura e sua complexa atualidade. Já o primeiro tema é aquele com que lidamos, nos surpreendemos e nos amargamos todos os dias: as instituições políticas e sua dinâmica. Existe uma constante em todos os cenários da política institucional: o norte econômico neoliberal, anti-direitos sociais e subserviente. E um dilema existente em todos os cenários: os militares. Todos esses aspectos tentaremos colocar em ordem, sem progresso, mas com análise. Comecemos pela política institucional.
Política institucional, três cenários possíveis
Existem três cenários no horizonte. O primeiro, aquele que toda a esquerda deseja, a queda de Bolsonaro; o segundo, a continuidade de Bolsonaro silenciado; e o terceiro, o golpe ou autogolpe. Comecemos pelo último.
Golpe ou autogolpe
O golpe ou autogolpe, a cada dia que passa, mais longe está. Existem duas características importantes para ter em consideração: uma jurídica e outra internacional. A jurídica tem a ver com a interpretação que o artigo 142 da Constituição Federal – como possível mecanismo para uma intervenção – é inconstitucional. Desde a declaração do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil até alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, todos apoiaram a interpretação que uma intervenção é inconstitucional e ilegal. Ponto. O carimbo histórico dos golpes de Estado no Brasil, desta vez, não parece plausível. Em geral, o próprio STF é parte fundamental no carimbo da legalidade dos golpes no Brasil. Hoje, o cenário é o contrário, aparentemente. Dentro da fantasia militar, mascarar o golpe de processo democrático e legalista é irrenunciável. Porque eles nunca desistem de parecerem legalistas, posando como os revolucionários que defendem a democracia. Tudo que seja pelo bem do lucro.
O Brasil das últimas décadas nunca teve uma imagem tão negativa mundo afora como hoje em dia. A imagem de vilão já existia antes da pandemia. Da mesma forma que a crise econômica existia antes do coronavírus chegar. É só lembrar como os incêndios da Amazônia deram uma visibilidade maior que o mundial de 2014, com Bolsonaro e seus militares estampados em todas as capas dos jornais internacionais. Quando falamos de jornais internacionais, falamos de todas as vertentes ideológicas: Financial Times, no Times, ou no Washington Post, para ficar em alguns exemplos.
A importância da imagem internacional é enorme em um processo de golpe. Historicamente, os golpes tiveram colaboração externa. Hoje, parece que o golpe só torna mais visível a inoperância, negligência e violência do governo (e os militares incluídos) atual no imaginário internacional. Ponto. O golpe só ratificaria a imagem de pária, dessa vez de cor inteiramente verde oliva. O custo é alto, uma marca indelével na história das Forças Armadas que dificilmente sairá do imaginário coletivo, tanto nacional como internacional. Como fala o professor João Roberto Martins Filho, pode ter o mesmo efeito que a guerra das Malvinas para as forças Argentinas.
Porém, se por um lado, a imagem internacional está no chão, por outro a pandemia isolou os países nas suas preocupações nacionais, emergências internas. Assim, um golpe neste cenário, não vai ter a mesma reação que antes da pandemia, quando o Brasil era a charge preferida no exterior. Cada um está lidando com sua realidade, difícil, na maioria das vezes. Um exemplo é o cenário eleitoral de Donald Trump, no qual a reeleição parece estar a cada dia mais distante, enquanto mais perto estão as numerosas mortes no país do norte. Se Trump não se reeleger, o isolamento internacional brasileiro se acirra ainda mais.
No Brasil, a elite despreza a vida de quem não é igual. A roda tem que seguir. É pouco provável que os financistas e os donos do agronegócio se interessem em uma cartada política de custo alto como um autogolpe. Para eles, ao que parece, o horizonte mais interessante é o da estabilidade do processo de destruição das políticas públicas e sociais, bem como das agendas de direitos. A atuação de Tereza Cristina, ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sempre discreta e longe das tensões é um indicador desse horizonte. Talvez os capitalistas brasileiros preferissem gente tão discreta como ela para as pastas da Economia e do Meio Ambiente, mas este não é um abundante nas hostes dispostas a compor um governo de feições fascistas como o atual.
A grande mídia, elemento fundamental do poder institucional, também não se alinha à narrativa do autogolpe. Sua agenda está mais dirigida para fazer Bolsonaro sangrar sem trégua para dar passagem a Guedes, Tereza Cristina e os militares que mantiverem o figurino dos gestores racionais. A elite nacional tem uma divergência mais de forma do que de conteúdo com o bolsonarismo. Se o lavajatismo tivesse se tornado a voz pública do atual governo, Bolsonaro estaria voando em céu de brigadeiro. Sua fusão com os lavajatistas não foi possível para gerar o governo ideal da elite mesquinha.
Enfim, um golpe – apesar do desejo dos fanáticos, das vantagens que podem tirar corporativamente os militares e a continuidade da orientação econômica -, seria uma aventura de custos muito altos, com poucos apoios internacionais, inconstitucional, aumentando o isolamento já existente. Lembremos, quando os militares tomam o poder, não ficam só por uma temporada. Na última foram 21 anos. Enfim, os militares no Brasil não são uma minissérie, pelo contrário, são tipo Star Wars, um processo longo, uma saga que parece não terminar nunca. Lembrando que ninguém foi punido pelas violações na última ditadura, um alento para que eles se sentissem impunes no futuro.
Quanto maior a terra arrasada e a violência estendida, maior a possibilidade de um de pedido da intervenção ter apoio maciço. Assim, num campo de violência, o cargo de xerife cairia sobre os militares, hoje desejosos por serem parte ativa da modelagem do novo Brasil (pós) pandêmico. Destacamos que a pandemia e a recessão econômica, que a cada dia que passa sentimos na pele, aumentam a resolução de conflito com a visão militarista. O xerife vai colocar as coisas em ordem, (mas pelo que estamos olhando no Ministério de Saúde ela virá sem progresso). Ou seja, silenciamento ante a negligência institucional. O jogo para os militares ganharem protagonismo não é o da deposição abrupta de Bolsonaro para uma entrada em cena pacificadora, mas o da corrosão gradual que produza uma transição na qual todos os que seguirem no poder se comportem como bolsonaristas assintomáticos.
Continuidade silenciado
O segundo cenário, é sobre a continuidade de Bolsonaro silenciado. Sabemos, poucos desejam este cenário, mas hoje é o mais possível pelos próximos meses.
A entrada do centrão significa a volta da articulação política, abandonada no personalismo do Bolsonaro e no verticalismo militar. As pontes de diálogos entre o Executivo e o Legislativo são um dique de contenção às cataratas de impeachment, uma oportunidade de subsistência. Mas também é um limite aos desvarios políticos do executivo. Nesta troca e articulação política, limites são estabelecidos, negociações são determinantes para construir possibilidades e nortes. Mas longe de ser um casamento, é simplesmente uma articulação. A constelação que faz parte do denominado centrão tem seus próprios interesses e base de apoio. Portanto, também existem limites ao apoio a um Bolsonaro que parece que dia a dia, sem a milícia digital, fica raquítico e anêmico politicamente. Neste sentido, o centrão como constelação não ficará com vergonha se abandonar o presidente diante de delírios políticos ou simplesmente por oportuníssimo político.
Logo, por um lado, existe a volta da articulação num governo instável, com resultados desconhecidos. Por outro, existe a continuidade do próprio governo, com seu perfil e símbolos. A continuidade de um Bolsonaro em coma é ruptura e continuidade, simultaneamente. Os símbolos bolsonaristas, como a ministra da Família, Damares, estarão presentes. Mas a articulação política não tolerará tudo como se fosse um governo simplesmente de Bolsonaro.
Destacamos que um Bolsonaro silenciado é um Bolsonaro em xeque. Numa vida de mais de 60 anos, Bolsonaro alcançou o poder com o comportamento que é rejeitado pela maioria. A mudança de comportamento do Bolsonaro é o fim do seu governo. Ou pelo menos de tudo o que ele representa. Ele seria um simulacro de si mesmo. E tudo o que é autêntico estaria em cinzas do que já não é.
Um Bolsonaro silenciado seria, ao mesmo tempo uma tentativa de estabilização, mas também uma aposta na instabilidade. A ambiguidade do silêncio é a fonte mais poderosa de instabilidade. Assim como na vida, uma liderança “em coma” na política, impede que os regimes operem pelo fio da normalidade, da previsibilidade. Os personagens biônicos que ocupam lugares de poder são, em geral, figuras fracas. Um arranjo de poder com Bolsonaro “em coma” seria fruto da ingenuidade, o que passa longe dos grupos políticos que formaram o atual governo. Bolsonaro nas cordas pode assumir, por um momento ou outro, uma postura mais branda, mais contida, mas não parece haver elementos de que ele possa ser inativado, como o vírus controlado em laboratório para a produção de vacinas.
Neste sentido, o cenário do Bolsonaro “em coma” traz uma série de complexidades que, longe de se tratar de um cenário pela construção da estabilidade, é um prolongamento da instabilidade e novos desafios. Um abismo mesmo para o próprio presidente e seus símbolos. Além disso, sua continuidade está feita de cima para baixo. Sem participação da sociedade. Longe disso, uma articulação política para evitar sua queda, uma continuidade comprada. E uma democracia esvaziada.
A entrada do centrão é importante pelo significado da volta da articulação política. Mas, a continuidade de Bolsonaro “em coma” não constrói estabilidade, desgastando a todos neste cenário. Lembremos que o centrão precisa se mover para onde haja poder. Só há sentido em se aproximar de um Bolsonaro ativo. Tal atividade, por sua vez, ocasiona a paralisia e a falta de políticas públicas. O que marca a atuação política do centrão é o pragmatismo. No contexto atual de destruição das políticas públicas e corrosão de um governo nas cordas, os partidos do centrão agem como a infecção oportunista. Tirarão o que for possível enquanto houver vida, nada mais do que isso.
O que está em curso nas políticas públicas talvez já não represente uma ofensiva deliberada às agendas sociais ao estilo do primeiro ano, mas paralisia e negligência, como estamos vendo no caso dos auxílios emergenciais. Quase 700 mil pessoas obtiveram o auxílio indevidamente, enquanto o alcança entre os mais pobres foi muito deficiente. Uma sondagem indicou que nas favelas brasileiras 70% da população solicitou o auxílio emergencial, mas 40% destes não conseguiu receber nenhuma parcela. Esta inoperância gera certa estagnação de recursos que acumulados nas pastas, sem gestão para sua aplicação, podem ser um prato cheio para o centrão. O centrão tem atuado como um respirador para um Bolsonaro ligado em aparelhos. Seu compromisso, assim como o das grandes corporações é com o neoliberalismo, não com a democracia.
Bolsonaro “em coma” só permaneceria no leito até que surgisse outro paciente com mais chances de sobrevivência. Suas comorbidades políticas se agravam com os indícios de laços íntimos grupos milicianos que estão sob investigação. As chances de alta são mínimas. Ter um discurso político miliciano nunca foi um problema para as elites econômicas brasileiras. O poder das máfias requer certa notoriedade para influenciar a política, mas o político mafioso precisa manter uma fachada. A família Bolsonaro está, entretanto, cada vez mais exposta.
A caída do bufão. Bolsonaro fora do poder
Hoje Bolsonaro está acuado e nas cordas pelos seguintes motivos: a) Impeachment. Já existem mais de 40 pedidos na gaveta do escritório do Rodrigo Maia. Salientamos, significa que a cada de 15 dias de governo, entrou, pelo menos, um pedido de impeachment na Câmara. b) Fake News. Seja no TSE, seja no STF, seja onde for. As diferentes metodologias, instrumentos e recursos que o ameaçam, seja cassação da chapa, impeachment ou renúncia, seguem em curso. c) Filhos. Os 01, 02, e 03 são promíscuos na criação de oportunidades para serem julgados e penalizados. Ou seja, são o Calcanhar de Aquiles do homem que dorme na Alvorada. d) Atos antidemocráticos. São ilegais por definição. E, finalmente, e) milícias. A trajetória de exaltação das forças ilegais e a condecoração de notórios milicianos pela família Bolsonaro dão vida a essa ilegalidade. Bolsonaro tem mais vínculos ideológicos com as milícias e com militares torturadores do que com qualquer parâmetro da ordem constitucional. Talvez a característica que mais unifique todos contra o Bolsonaro: o perfil fascista. A democracia agradece.
Sua queda nunca será realizada se não se soubermos o que vem depois disso. Então, há a possibilidade de existir um novo outsider, um salvador de direita que, com um comportamento mais aceitável, pode estabilizar o novo Brasil em formato vira lata fashion. Enfim, a volta dos de sempre, daqueles que nunca se foram. A continuidade com cara de novidade. Ou seja, acreditamos que poucos presidentes neste planeta tenham a virtuosidade de abrir tantas possibilidades para ser tirado do poder. Aliás, sua continuidade tem que ser mais estudada pela psicologia que pela ciência política.
Hoje, parece que existe um esforço para a sua continuidade, mas “em coma”, isto é, um presidente destinado a invisibilidade e o fim dos seus simbolismos. O encontro de Rodrigo Maia com o presidente do Senado para acalmar Flávio Bolsonaro é um sinal. Também o foi a saída do ministro de Educação, com vários processos nas costas e que desejava aos quatro ventos a prisão dos ministros do STF.
Este terceiro cenário é o mais provável em médio prazo, em nossa leitura. Bolsonaro cai e se abre um ciclo de transição para a emergência de uma liderança de direita que possa levar à frente o bastão da cartilha neoliberal de destruição do Estado, das políticas sociais e das agendas de direitos. Bolsonaro parece ser uma peça obsoleta para estes propósitos.
Desmontar o Estado e transferir cada vez mais poder e recursos para as pastas da defesa e da segurança pública é a cartilha básica do momento atual do capitalismo ultraliberal. O avanço das ideologias políticas neofascistas são um efeito dessa plataforma, porque ela demanda um patamar profundo de degradação do sentimento de coletividade e da solidariedade política. Mas a equação mais estável dos arranjos de poder ultraliberais é a conciliação de políticas de austeridade, securitização e militarização da vida, com regimes formalmente democráticos. Não esqueçamos que Angela Merkel, que agora aparece no noticiário internacional como liderança política que enseja estabilidade em contraste com outros líderes europeus, foi quem montou o cavalo da troika que sufocou as democracias europeias no início da década passada. Ela teve um papel decisivo no estrangulamento econômico que é um dos motores do ódio à democracia, para usarmos uma expressão de Ranciére. Seu recuo para uma postura mais intervencionista na economia diante da crise é, nos parece, circunstancial.
A imagem de uma sociedade sem Estado que emana da boca e dos gestos brutos de Paulo Guedes só pode encontrar conformação ideológica em horizontes nos quais quaisquer pertencimentos sejam resultado de alianças forjadas no medo e no ódio pelo outro. Estes horizontes políticos, no caso brasileiro, são completamente convergentes com as políticas de segurança pública que foram aplicadas continuamente no último ciclo democrático. O que chamamos hoje de bolsonarismo já existia antes de Bolsonaro. Ele mesmo é fruto de uma ideologia política autoritária que nunca deixou de coexistir com nossa democracia inacabada, quando o assunto é violência e a atuação das forças de segurança pública.
A constante e a variável
Existe uma constante estrutural de todos os cenários: o guedismo econômico. Guedes é a cara da elite brasileira: ignorante mesmo com oportunidades; pequeno; sem empatia; sem preocupação com a desigualdade; racista; entreguista; colonizado. Enfim, ele representa o pior do Brasil que vem de longe, de séculos. É por isso que gera tanta identidade de classe.
A orientação econômica neoliberal e subserviente aos Estados Unidos é seu norte. Mesmo numa pandemia onde os países centrais, como Alemanha, mudaram as políticas econômicas com intervenção estatal para lidar com a situação que a pandemia nos colocou. Mas a política de Paulo Guedes é terraplanista em consonância com o mundo unidimensional de Ernesto Araújo.
Existem dúvidas se os auxílios emergenciais continuarão sendo fornecidos, o que serviria para fortalecer o apoio ao governo entre os mais pobres. Seja como for, a política econômica de Guedes é apoiada de forma maciça pela elite, pela mídia, pelos empresários, pelo mundo financeiro e por aqueles que promovem cinicamente o discurso de que, em um dos países mais desiguais do mundo, todos têm oportunidade para empreender e o sucesso é uma questão de vontade, mesmo com a castração dos fatores que a determinam a vontade. Parece que mais que mudar o norte político, o governo vai tentar incorporar uma prótese em na forma de recursos econômicos para manter apoios. Nada muda.
A variável é o componente militar. Nos três cenários eles estarão presentes. E não existe cenário sem que eles tenham um poder de influência. Mas a intensidade, lugar e participação pode mudar dependendo do cenário. Claro, num golpe, eles finalmente poderão falar que têm a presidência e o comando completo do poder executivo. No cenário da continuidade “em coma”, a necessidade de negociar cargos, vagas aos novos recém chegados da constelação do centrão, pode alterar sua participação. Falamos a participação, não a sua influência. Assim, os quase 3 mil militares de reserva e ativa podem ver sua participação reduzida em favor dos novos integrantes do governo. Num cenário em que Bolsonaro esteja fora do poder, a participação e influência pode ser alterada. Mesmo assim, pelo perfil militar, não ficarão longe do poder. Missão dada é missão a realizar. E, a partir de muitas linhas, ela está só começando, nesta luta messiânica para acabar com um “Brasil comunista” e o colocar novamente no trilho do atraso.
O campo social e cultural: o campo fértil do ódio
Se, por um lado, temos as instituições e sua dinâmica, por outro, temos uma sociedade onde tudo isso acontece. Este campo social determina, em boa medida, as possibilidades que as instituições têm para se movimentar. Atualmente, muitos falam que Bolsonaro é ridículo, pouco inteligente e mau. Mas, na verdade Bolsonaro é um reflexo exacerbado de muitas pessoas próximas, de uma realidade que se vive e se respira no Brasil. As características de Bolsonaro estão na sociedade. E elas estão sendo multiplicadas na presença de um presidente que desviou os sentidos da democracia e suas instituições e colocou o pior de nós como uma forma normal de se comportar[3].
As características de Bolsonaro – que sempre estiveram presentes no seu comportamento e seu discurso – estão vivas na sociedade. Existem setores que são um campo fértil do ódio. Estes foram, aos poucos, sendo fomentados por diferentes atores políticos e instituições. Estes setores são, hoje, os que mais devemos observar e tentar compreender. No lugar de afirmarmos que “somos 70%” é preciso que tenhamos um retrato nítido de quem são os cerca de 30% dos que seguem apoiando Bolsonaro[4]. É preciso que tenhamos também o perfil, em minúcia, daqueles que consideram o governo “regular”.
O racismo, a prepotência, a anticorrupção hipócrita, o antipetismo, a cultura militarista, fundamentalismos religiosos, a negação da política, o anti-esquerdismo, o anti-intelectualismo, a lgbtfobia, a estendida misoginia e a violência estrutural são características presentes e parte fundamental do campo fértil do ódio existente atualmente no Brasil. Suas fontes precisam ser conhecidas e desmistificadas. Sabemos que são aspectos estruturais da nossa sociedade, mas as estruturas se atualizam na vida social e no cotidiano.
As instituições políticas e sua dinâmica estão construídas nesse campo. É o campo que determina o pulso da dinâmica e as instituições. O Bolsonaro é um caso exacerbado dessas características, mas não é exógeno ao campo social. Em todos os cenários – autogolpe, continuidade “em coma” e a queda do Bolsonaro –, o campo fértil do ódio continua existindo, se manifestando e moldando as possibilidades da política. Todos os cenários garantem um processo traumático, que se multiplica neste horizonte de intolerância e fúria ampliada.
Esta é uma das razões pelas quais as esquerdas não figuram como elementos relevantes nos cenários que analisamos aqui. Isto é duro de constatar, mas é verdadeiro. As disputas institucionais das esquerdas, seus movimentos, organizações e partidos precisam se alinhar com horizontes pedagógicos, de participação da vida coletiva cotidiana. O famoso chamado de Mano Brown de “volta pra base”, durante comício de campanha para presidente de Fernando Haddad, é real e necessário. Há muitas frentes de resistência, luta, organização e solidariedade nas favelas, quebradas e subúrbios. Há cultura sendo produzida e vida se reproduzindo.
Para sorte do Brasil, as universidades públicas continuam produzindo e pesquisando. Existem importantes pesquisas que tentam compreender esse campo, que mapeiam as realidades e insatisfações, que fotografam os desejos, necessidades, identidades. É com essas pesquisas que devemos nos guiar para analisar e compreender esse campo. A negação dele aumenta o problema e vai ficando mais longe uma solução da construção de uma democracia integral, plural e inclusiva. Sem entender essa área social, estamos em um simulacro de debate sobre as possibilidades da política, sem observar onde ela está parada. Um simulacro de recuperação, um simulacro de mudança. Como se estivéssemos a interpretar sombras no fundo da caverna, tal qual a alegoria platônica. Sem essa compreensão das disposições sociológicas da formação ideológica de nosso autoritarismo, a continuidade é a principal característica no horizonte.
Além das universidades e seu trabalho de resistência, é também com a experiência de milhares de profissionais da educação básica que resistem há décadas ao avanço da precarização e do desmonte que devemos aprender. É com as vivências dos profissionais do Sistema Único de Saúde, dos agentes de saúde da família, da saúde indígena e dos agentes comunitários de saúde, que precisamos nos informar. Os movimentos sociais, especialmente o emergente movimento de entregadores antifascistas, são centrais nesse processo.
É preciso também, entretanto, compreender o que pensam as populações insatisfeitas com o capitalismo contemporâneo e seus arranjos políticos, mas não se alinham com as formas de organização e de participação política das esquerdas. Em alguma medida, o tecido social do bolsonarismo é resultado de uma comunidade pária, dos sem lugar no mundo. Uma aglutinação ideológica dos que não tem lugar nos horizontes de ascensão política, social e econômica das democracias liberais. Os que negam plenamente o establichment, mas como só aderem a um projeto de negação total, de recusa de “tudo isso que esta aí”, entregam o poder a um projeto de afirmação profunda das condições estruturais do status quo sob a retórica da novidade total. Esse processo ocorre dessa forma porque na outra ponta do bolsonarismo estão os estratos mais ricos da sociedade brasileira, os primeiros a embarcar em sua campanha em 2018, aqueles que possuem poder real de organização política e controle das instituições[5]. Por se distanciar no terreno pedagógico da vida cotidiana, as esquerdas se afastaram também dos horizontes da reflexão sobre consciência de classe.
Temos um dilema enorme. As instituições podem fomentar uma mudança no campo fértil do ódio e no Brasil essas instituições da política foram responsáveis (e cúmplices) da consolidação de um projeto autoritário de poder. E são essas mesmas instituições que precisamos buscar controlar e ou constranger para alterar esse campo do ódio para a tolerância, do ódio para aceitação da pluralidade, do ódio para a consciência da luta contra a desigualdade e o racismo estrutural. O Brasil hoje precisa de duas vacinas: uma contra o coronavírus e outra de valores democráticos, hoje em desuso.
Para mudar esse campo fértil do ódio, temos que aprender a lidar com ele. É necessária uma atitude ativa de todos e todas. A defesa da democracia não é assinar um manifesto somente, mas ser ativo na defesa dos valores da democracia. E ela não é abstrata. Ela é real e com ela em coma, a morte e a desigualdade continuam a ser nossas certezas no horizonte.
Tentar ser o mais realistas possível nos confunde com os pessimistas. Longe disso, tentar analisar a realidade nos dá as ferramentas reais para poder ter melhores soluções, democráticas. Da mesma forma que o Bolsonaro é parte da sociedade e não um estranho, as Marielles, os Gilberto Gils, as Carolinas de Jesus, os Chicos Buarques, as Elzas Soares, os Paulos Freires são parte da sociedade e não exceções. Existe um Brasil trabalhador, diverso, democrático e inclusivo na defesa de valores que hoje parecem evaporados. Esses valores estão vivos na sociedade e temos que recuperar, fomentar e fortalecer. Temos que preencher imaginários sociais de imagens, símbolos e novas narrativas, hoje cooptadas pela violência e ignorância.
Bolsonaro não seria presidente se no dia do impeachment de Dilma Rousseff, depois de um discurso criminoso, ele em vez de ser aplaudido, terminasse preso. Todos os dias estamos com a possibilidade de mudar. E lutar pelos valores democráticos, um campo fértil democrático é fundamental. Temos muita luta pela frente. A solidariedade e resistência nos levanta, nos prepara, nos dá forças. Apesar do processo ser traumático, com ele podemos aprender e nos fortalecer. Os traumas se enfrentam. A vida é luta
Andrés del Río e André Rodrigues são cientistas políticos e professores da Universidade Federal Fluminense.
[3] Pesquisas como as de Esther Solano e Isabela Kalil fazem um mapa interessante da difusão ideológica do bolsonarismo na sociedade brasileira.
[4] Sondagens como as do Datafolha mostram oscilações da avaliação de “ótimo” e “bom” do governo sempre em torno desse percentual.
[5] O que Appadurai chama de “revolta das elites”: https://leicufrj.wordpress.com/2020/04/25/estamos-testemunhando-a-revolta-das-elites-por-arjun-appadurai/.