O que se discutiu no Fórum Social Mundial
O FSM tornou-se um importante espaço de articulações políticas entre organizações e movimentos sociais e se constituiu como uma arena de propostas diversas para a transformação das condições e modos de vida em vários contextos. O primeiro desafio é traduzi-las em práticas concretas do dia-a-dia
Muitos já disseram que o Fórum Social Mundial (FSM) aparece de modo anedótico e superficial nos principais meios de comunicação do país e do mundo. Isso é verdade. Pouca atenção é dedicada aos conteúdos das análises críticas, dos debates e das denúncias relativas aos principais processos globais que, desse modo, se perdem, relegados para segundo plano. Perde-se a oportunidade de discutir mais profundamente os problemas e riscos presentes no mundo.
É preciso recuperar o sentido político e a trajetória desses Fóruns e olhar com atenção para enunciados emitidos no último FSM, realizado no começo deste ano de 2009, em Belém, Pará. Será que esses enunciados coletivos designam agendas para novas sociedades? Será que essas agendas apontam de fato para outro mundo possível? Sim, porém é preciso surfar com liberdade por esses enunciados para vislumbrar elementos dessas agendas.
O FSM nasce em 2001, num contraponto ao Fórum Econômico de Davos, como um espaço de articulação para os movimentos e organizações sociais criarem resistências e alternativas ao modelo da globalização neoliberal. Em sua fundação foi elaborada uma Carta de Princípios com definições e diretrizes de funcionamento. O primeiro foi realizado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, porque, nesse momento, essa cidade praticava experiências sociais, políticas e de governos que estavam no contrafluxo das políticas neoliberais. Em 2002 e 2003 o FSM também foi realizado em Porto Alegre. Em 2004 foi realizado em Mumbai (Índia). Em 2005 voltou a Porto Alegre. Em 2006 foi realizado de forma policêntrica em Bamako (Mali), Karachi (Paquistão) e Caracas (Venezuela). Em 2007 foi realizado pela primeira vez na África, na cidade de Nairobi (Quênia). No ano de 2008 ocorreram as Jornadas Mundiais de Mobilização em todo o planeta para disseminar e descentralizar o espírito do FSM.
Durante todos esses anos o FSM se pautou pela busca de uma cidadania planetária, pela resistência à globalização neoliberal, pelo contraponto ao pensamento único, à hegemonia dos Estados Unidos e dos países dominantes.
As articulações em rede sempre tiveram importância, pois conectaram e conectam instâncias políticas locais com fortes críticas direcionadas, como se viu neste FSM, por exemplo: (i) ao sistema financeiro internacional desregulado e especulativo; (ii) às desigualdades sociais manifestas em diversas escalas, até mesmo entre os hemisférios norte e sul; (iii) às várias formas de violação dos direitos humanos e sociais nas diferentes regiões do planeta; (iv) aos limites da democracia representativa, com defesa da democracia participativa; (v) às práticas autoritárias e antidemocráticas levadas a cabo por governantes; (vi) às guerras predatórias com fins econômicos, como a guerra do Golfo, do Iraque e da Faixa de Gaza, entre outras; (vii) à destruição da biodiversidade e dos ecossistemas do planeta; (viii) ao consumo exagerado e ambientalmente insustentável.
É interessante observar que essas articulações em rede influíram, em maior ou menor grau, em macros e microagendas políticas das organizações e dos movimentos sociais.
Em 2008 e 2009, as crises globais sistêmicas e as discussões sobre elas mostram os acertos das críticas e denúncias referentes à perversidade da globalização neoliberal feitas em edições anteriores do FSM.
As avaliações sobre essa globalização causadora de desigualdades sociais mais profundas e situações de pobreza mais graves em todo o planeta se mostraram dramaticamente verdadeiras. Essa comprovação concreta só torna mais urgente a luta pelo mundo possível que deverá emergir dessas crises globais. O FSM 2009 mostrou as dimensões dessas crises e aponta para novas agendas políticas.
As redes de vozes políticas
A gravidade das múltiplas dimensões das crises globais marcou os debates e as manifestações em Belém, no início de 2009.
Chama a atenção o fato de que alguns governantes vêm adotando medidas, tidas como urgentes e emergenciais, que possuem alto teor autoritário e antidemocrático e baixa legitimidade social.
Nas discussões do último FSM, foi possível perceber que as crises globais decorrem do entrelaçamento entre:
1) As cadeias de efeitos econômicos perversos que quebraram sólidas instituições financeiras e afetaram a chamada economia real de vários países, provocaram recessões e aumentos nos níveis de desemprego cuja gravidade leva à adoção de medidas “neo-keynesianas” direcionadas aos mais ricos e à salvação de setores do capital.
2) As várias formas de mercantilização da vida, como por exemplo: (i) as patentes que transformam patrimônios genéticos e componentes da biodiversidade em propriedades e mercadorias e (ii) a comercialização dos recursos vitais à sobrevivência de grupos sociais e comunidades tradicionais que dependem da água, alimentos e biodiversidade existentes em diferentes regiões do planeta.
3) A urbanização realizada segundo padrões socialmente desiguais e ambientalmente predatórios. que utiliza os espaços urbanos como mercadoria, meio para investimento dos capitais excedentes e realização de negócios imobiliários. O que ocorre em detrimento do bem-estar de bilhões de pessoas que sofrem a destituição do seu direito à cidade e à moradia digna, em especial aqueles que enfrentam despejo forçado e a perda dos seus locais de residência devido aos conflitos políticos e às crises econômicas.
4) Os modelos de desenvolvimento baseados em modos de produção insustentáveis, do ponto de vista da utilização dos recursos naturais e das fontes de energia, associados a padrões de consumo desmedidos, marcados por desperdício e geração de resíduos descartados e dispostos de modo inadequado, contaminando cada vez mais os ecossistemas do planeta e não incorporando alternativas de gestão que incluam dignamente os setores sociais mais vulneráveis.
5) Os impactos causados pelas mudanças climáticas e o aquecimento global, como os desastres socioambientais que provocam a destruição de territórios urbanos e rurais, levam a deslocamentos populacionais em larga escala e impõem a necessidade de buscas por medidas adaptativas, como a controversa criação de fundos para financiar ações de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas; e preventivas, como a necessidade de formular novos modelos de desenvolvimento, reduzir a emissão de gases de efeito estufa, utilizar matrizes energéticas mais sustentáveis e frear a devastação das florestas tropicais, em especial a Amazônica.
6) As consequências sociais, eco
nômicas, ambientais e geopolíticas advindas de dois fatores que compõe um todo: (i) o aumento no uso de fontes não renováveis e poluidoras de energia que escasseiam gradativamente, principalmente os combustíveis fósseis, e (ii) a busca por fontes renováveis mais limpas e sustentáveis do ponto de vista socioeconômico e ambiental.
7) O enfraquecimento da soberania alimentar devido à expansão de padrões desiguais e predatórios de produção e distribuição de alimentos industrializados que prejudicam os pequenos produtores, como os agricultores familiares, e levam a situações cada vez mais graves de insegurança alimentar e nutricional.
Vozes e sujeitos coletivos
As contradições entre as análises críticas e as práticas dos participantes desse FSM 2009 mostraram que é preciso conectar as reflexões com experiências concretas de uma vida justa, não consumista e sustentável, que transcorra em espaços equilibrados, cuja organização propicie o desenvolvimento das melhores capacidades humanas.
Nesse FSM 2009 emergiram vozes políticas de sujeitos coletivos que se afirmam a partir de formas de vida baseadas em realidades locais e identidades socioculturais específicas que criam posições e relações inovadoras no e com o mundo.
Os povos indígenas, as mulheres, os jovens, as comunidades quilombolas, as populações ribeirinhas, entre outros sujeitos coletivos, debateram suas agendas políticas orientadas por cosmo- visões e posicionamentos que extrapolam a perspectiva racional e abrangem os universos subjetivos, interrelacionais, complexos e afetivos, vistos também como propulsores de transformações.
Esses sujeitos coletivos se articulam em formas diferentes como associações, movimentos sociais e organizações não governamentais que se relacionam de modos distintos com governos, partidos políticos e organismos internacionais.
Desde 2001 o FSM possui atividades paralelas, como o Fórum Parlamentar Mundial e o Fórum de Autoridades Locais, envolvendo governos locais e parlamentares que discutem suas relações com movimentos sociais na construção de políticas alternativas à globalização neoliberal.
As relações entre governos e segmentos sociais são objeto permanente de debates e reflexões em todas as edições do FSM. Em 2009, as mudanças políticas ocorridas principalmente na América Latina colocam em pauta os canais de diálogo e negociação entre sujeitos coletivos organizados e instâncias governamentais e partidárias.
A presença de cinco presidentes latino-americanos (Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Venezuela), representantes de governos de várias localidades, e de muitos parlamentares e ministros brasileiros, impõe a necessidade de discutir e definir, no atual contexto das crises globais, os papéis e sentidos desses canais de interação entre Estado e sociedade. Canais que ganham maior relevância diante da falta de legitimidade das medidas adotadas no enfrentamento dos efeitos dessas crises.
A presença de representantes de organismos internacionais em alguns FSM e em fóruns paralelos, principalmente consultores e observadores da ONU que trabalham com temas específicos como a questão urbana e os direitos humanos, apontaram para discussões sobre a construção de uma ordem democrática internacional, a integração entre os povos e a reconfiguração do sistema internacional para a construção da cidadania planetária. No FSM 2005, em Porto Alegre, houve um espaço especifico para debater esses temas junto com as campanhas relacionadas à reforma daqueles organismos internacionais.
Como as relações entre Estado e sociedade, as articulações com organismos internacionais e as interações entre os países merecem outro olhar a partir das mudanças em curso no mundo. As estratégias de cooperação sul-sul têm aumentado a articulação entre os países emergentes para atuaçãp conjunta em direção a melhorias sociais, integração energética e intercâmbio de informações e novas tecnologias. O Fórum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), a UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), e a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) têm reforçado essa cooperação sul-sul na perspectiva de integrações regionais que extrapolem articulações para o livre comércio entre os países e construam relações mais soberanas e menos subordinadas, em especial com os países ricos do hemisfério norte.
O futuro do FSM
O FSM tornou-se um importante espaço de articulações políticas entre organizações e movimentos sociais e se constituiu como uma arena de propostas diversas para a transformação das condições e modos de vida em vários contextos. Muitas dessas propostas envolvem disputas e almejam alcance mundial. O primeiro desafio é traduzi-las em práticas concretas do dia-a-dia, incluindo o curto tempo de realização do próprio FSM.
Os contextos das crises globais, com impactos diferenciados nos países ricos e pobres, abrem oportunidades para buscar novas formas de existência social, política, econômica, cultural e ambiental, a partir da diversidade de seres humanos que habitam o planeta e são sujeitos da história e do momento atual. Os participantes do FSM não querem soluções tecnocráticas e pragmáticas que buscam favorecer somente as instituições e os ricos beneficiários do sistema econômico-financeiro.
As resoluções coletivas encaminhadas no FSM nos ensinam que não é possível viver com os padrões de consumo atuais e que é preciso buscar relações mais harmônicas e sustentáveis com o planeta Terra. É preciso frear a devastação socioambiental que estamos vivendo.
Os sujeitos coletivos articulados em diversas redes fazem a diferença na proposição de um novo modelo de desenvolvimento inclusivo, alternativo à decomposição promovida pelo capitalismo.
A reconfiguração das relações desses sujeitos coletivos com o Estado é central. Os canais de participação cidadã precisam ser mais efetivos na construção de políticas públicas democráticas e que promovam formas de vida mais dignas baseadas na efetivação de direitos sociais.
As necessidades básicas do ser humano devem estar em primeiro lugar na destinação dos recursos públicos, que não podem ser usados para recompor o funcionamento do sistema econômico e financeiro, como tem ocorrido no período da globalização neoliberal. É inaceitável a utilização desses recursos em benefício dos privilegiados executivos dessa globalização.
As crises originárias da global
ização neoliberal mostram que as análises, denúncias e embates realizados nas diferentes edições do FSM são legítimas e acertadas. Essas crises evidenciaram que o capital não se restringe a moeda circulando na ciranda financeira, mas trata-se de processos socio-políticos que envolvem exploração, conflitos e muita desagregação. A partir do FSM de 2009 fica claro que as agendas globais dos movimentos e organizações sociais devem marcar posições políticas fortes para o mundo, no rumo de outro mundo possível.
*Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp). Vanessa Marx é advogada da equipe técnica do Instituto Pólis e doutora em ciência política pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).