O que separa João Hélio de João Pedro?
A morte de João Pedro perante o mundo não causa tanto impacto quanto a de João Hélio, não causa coletivização de uma pauta, não gera programas inteiros em canais abertos sobre o ocorrido
“Vamos às atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir a essa borda rebeldia.” (Lion Man, Criolo).
João Pedro Mattos, morador de São Gonçalo, Rio de Janeiro, foi baleado no abdômen dentro da casa do tio durante uma operação policial. João Pedro tinha 14 anos, era um adolescente, negro, morador da favela e como tantos outros, tinha sonhos, família, amigos e expectativas acerca do futuro. Após levar o tiro, o menino foi levado de helicóptero pelos policiais para um lugar desconhecido, sem autorização para que um membro da família fosse junto, sem justificativa para tal ação, sem comunicação de seu paradeiro durante toda tarde, noite, madrugada e manhã do dia seguinte, totalizando 16 horas sem notícias do corpo do adolescente.
No dia 7 de fevereiro de 2007, João Hélio Fernandes de 6 anos, também morador do Rio de Janeiro de um bairro de classe média foi vítima de um latrocínio, no qual ele foi arrastado pelo cinto de segurança por cerca de sete quilômetros. João Hélio era uma criança branca, morador de bairros mais próximos às áreas centrais do Rio, como tantas outras crianças de sua área. Também tinha sonhos, expectativas, família e amigos. Após o carro ser parado, a cena era hedionda, o menino perdeu membros e teve parte do corpo dilacerado. Na época foi oferecida recompensa para achar os dois assaltantes.
Após esta breve apresentação de ambos casos, os dois com níveis de sofrimento psíquico e físico incalculáveis para ambas vítimas, salientando que tanto João Hélio, quanto João Pedro tinham vidas inteiras pela frente e igualmente preciosas, tendo elas sido ceifadas bruscamente, inicio minha argumentação sobre o que os diferencia, baseada em parte da dissertação de mestrado de Fábio de Alves Araújo, “Do luto à luta: A experiência das mães de Acari”.
Crimes hediondos contra crianças e adolescentes no Brasil historicamente têm impactos diferentes. A indignação, a exigência de leis que os protejam, os protestos, o julgamento da mídia e a repercussão social são distintos, senão, opostos. A dimensão moral dá ênfase a tudo o que foi tirado de crianças brancas de classe média ou de classe alta, gerando comoção geral, é a mesma que oculta os requintes de crueldade que perpassam pelos últimos momentos de vida de crianças negras nas grandes periferias brasileiras, estereotipando-as como bandidos, potenciais bandidos ou vidas que não teriam tamanha perspectiva ou importância. Esta fluidez moral, social, jurídica e midiática é capaz de tolher o direito de luto de mães das favelas, o direito que as famílias teriam a reparação por suas perdas e, principalmente, o direito de memória e verdade de seus filhos.
A morte de João Pedro perante o mundo não causa tanto impacto quanto a de João Hélio, não causa coletivização de uma pauta, não gera programas inteiros em canais abertos sobre o ocorrido. Pelo contrário, leva a perguntas: quem era? Trabalhava? Estava envolvido com o tráfico? Perguntas essas que viriam num tom de possível justificativa pelas suas mortes.
Entretanto, João Pedro traz consigo uma conta que tem sido a cada 23 minutos mais alta para o Estado brasileiro. A de jovens negros mortos no país. João também faz parte da estatística de crianças que são assassinadas pelas forças policiais. Sem crime, sem direito à defesa, dentro de casa, apenas existindo mais um dia. João representa mais um ponto para o racismo, para os racistas, para o genocídio da juventude negra, sendo levado às covas cada vez mais cedo. A prática de extermínio segue a todo vapor, cada vez mais descarada.
Aparentemente, não há motivo de vergonha para alvejar um jovem à queima-roupa em plena luz do dia. Tampouco, haveria motivo evidente que poderia provar o envolvimento dos policiais no crime. As forças de segurança brasileiras são as maiores responsáveis por isso.
Enquanto com João Hélio há pedido por segurança, com João Pedro, a segurança foi a responsável pelo assassinato, ambas vidas valiam muito, mas apenas um teve sua história devidamente registrada.
João Pedro, 14 anos.
Marcos Vinícius, 14 anos.
Kauê dos Santos, 12 anos.
Jenifer Gomes, 11 anos.
Ágatha Félix, 8 anos.
Ketellen Gomes, 5 anos.
O que todos tinham em comum?
Hoje mais uma mãe chora, e vocês já sabem qual é a cor dela.
“Em meia as zorras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso
Desde o início
Por ouro e prata
Olha quem morre
Então veja você quem mata
Recebe o mérito, a farda
Que pratica o mal
Ver o pobre, preso ou morto
Já é cultural” (Negro Drama, Racionais MC’s).
Luana Barbosa da Silva é mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciência Política da Unicamp e estuda segurança pública, mais especificamente polícias, racismo, violência e juventude. É cientista social e membra do PolCrim (Laboratório de Estudos sobre política e criminologia).