O que vem por aí
Dois temas fundamentais emergem desse cenário: a desconstrução de um modelo de desenvolvimento e a recuperação do sentido histórico do próprio capitalismo e de sua evolução. O que ainda permanece ausente, ou oculto, é a análise das novas relações de poder.
Estamos liberados das restrições de um pensamento único e entrando em um período instigante, favorável ao desenvolvimento de um pensamento crítico. O discurso da transformação social e política volta a ter lugar. Requer de seus protagonistas um esforço coletivo na construção de propostas de mudanças para enfrentar esta crise e o seu caráter sistêmico. Sendo mais preciso, para construir uma agenda de políticas que dispute espaço, neste momento de instabilidade, com os setores conservadores.
Está em causa o atual modelo de produção e consumo. Não se trata do fim do capitalismo, como querem alguns. Mas é uma crise sem precedentes deste atual modelo de desenvolvimento e de acumulação. Ela se expressa de múltiplas formas e é preciso reconhecer que a atual crise financeira, por mais importante que seja, é apenas uma de suas distintas manifestações. Vivemos simultaneamente várias crises: alimentar, energética, ambiental e financeira.
Dois temas fundamentais emergem desse cenário: a desconstrução de um modelo de desenvolvimento e a recuperação do sentido histórico do próprio capitalismo e de sua evolução. O que ainda permanece ausente, ou oculto, é a análise das novas relações de poder.
A crise financeira ainda não terminou e já se pode ver uma maior concentração de poder com a fusão ou incorporação de grandes bancos. Com a depreciação de grandes corporações, os fundos soberanos saem às compras. E eles têm muitos recursos. A nova arquitetura do sistema financeiro internacional terá forte influência destes novos senhores do capital. Os movimentos são rápidos, não há vazio de poder.
O novo sistema financeiro internacional precisará assegurar aos investidores novas garantias. Com isso, entram em pauta temas como a extinção dos paraísos fiscais e um controle maior por parte dos Estados e das novas agências multilaterais que serão criadas, que agora terão de olhar mais para os países centrais do capitalismo – o que nunca foi aceito. A tão anunciada multipolaridade na nova ordem internacional pode resumir-se a uma maior coordenação de políticas econômicas e financeiras entre países importantes. A superação da crise, desta crise, poderá ser apenas um novo arranjo dos novos donos do poder… mantendo o mesmo modelo de desenvolvimento, a mesma lógica da acumulação ilimitada.
As novas instituições multilaterais estão em discussão. No dia 15 de novembro, um encontro convocado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush reúne não só os membros do G7, mas 12 outros países: Argentina, Austrália, Brasil, Chile, Índia, Indonésia, México, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Coréia do Sul e Turquia. É a multipolaridade que se afirma. Mas a expectativa de grandes transformações é reduzida pela fala de Guido Mantega, nosso ministro da Fazenda, em entrevista à revista Brasileiros: “O fato é que o sistema financeiro não gosta de uma nova arquitetura porque uma nova arquitetura impõe limites de atuação”1.
Até o momento os setores democráticos e de esquerda não têm volume e importância para construir uma nova correlação de forças. Mas buscar novas perspectivas de desenvolvimento só é possível se iniciarmos uma discussão aberta, pública, sobre a natureza de um sistema que produz o que não é necessário, de maneira irracional, sem pensar nas demandas reais da humanidade. Entra na agenda destes setores a necessidade de se promover encontros, debates, análises conjuntas e pesquisas, que tenham o sentido de sensibilizar a cidadania, armar o debate público, produzir uma compreensão coletiva das oportunidades geradas pelo momento atual e de novas alternativas de desenvolvimento. A disputa – de interpretações sobre o caráter da crise atual, para demonstrar o seu caráter sistêmico e debater o modelo de desenvolvimento e suas alternativas – torna-se essencial.
Já são visíveis os efeitos perversos desta crise junto à população. Eles irão potenciar o aumento da pobreza, da desigualdade e do trabalho precário, como já demonstraram recentes relatórios internacionais referentes aos últimos anos. A OIT (Organização Internacional do Trabalho), em estimativas declaradamente conservadoras, calcula que, a nível global, 20 milhões de postos de trabalho serão fechados, mais 40 milhões engrossarão a multidão de miseráveis que sobrevivem com menos de US$ 1 por dia, e mais 100 milhões de pessoas entrarão no rol daqueles que sobrevivem com até US$ 2 por dia. Tudo isso é previsto para ocorrer no ano que vem, em 2009. Desempregados, aposentados e todos aqueles que necessitam dos sistemas de proteção social se verão em situações mais precárias2.
Ao lado destas previsões sombrias, os fundamentalismos e as discriminações tendem a se acirrar. A nossa democracia não dá conta de processar estes conflitos, que extravasam para enfrentamentos abertos ou em enormes graus de insatisfação expressos pelas crescentes manifestações populares. A tendência é de que vamos assistir um período de crescentes mobilizações e conflitos sociais. Um período de instabilidade política no qual é possível a recomposição de forças e a construção de novas alianças.
A revolta da periferia de Paris já estava dada, ela também faz parte desta crise. A crise permite recolocar questões que vêm amadurecendo, como comportamentos neonazistas e fascistas, em países europeus e nos EUA, com relação à imigração. E todos podem imaginar o impacto da perseguição e extradição de imigrantes por parte dos países do G7. Em El Salvador, por exemplo, as remessas correspondem a 21% do PIB.
Parece um consenso que o neoliberalismo, como ideologia, está desmoralizado. E após o forte impacto que a crise financeira trouxe aos mais poderosos atores do mercado, socorridos pelos Estados com dinheiro público, abre-se um período de maiores sofrimentos para toda a população, de reconstrução de instituições, de disputas quanto aos rumos do desenvolvimento.
Desta vez não cabem nacionalismos isolacionistas. Mudar o Brasil é para os brasileiros, mas a busca por novos padrões de convivência, de democracia, de produção e de consumo é uma mudança global e requer da América Latina a sua articulação e a sua constituição como um novo ator político no cenário internacional.
O Brasil tem um papel estratégico na construção deste novo ator latinoamericano e deste novo cenário mundial. Poderá contribuir para produzir propostas de integração nos marcos da radicalização da democracia, da justiça social, da eqüidade, e da sustentabilidade sócio-ambiental, mas essa oportunidade depende em muito da capacidade da cidadania organizada atuar no espaço público e em diálogo com o governo.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.