O Quebec com a câmera na mão
Com dificuldades financeiras e pouca penetração, o cinema do Quebec adota as novas tecnologias e se transforma num cinema de combate, atuando em todas as frentes, da defesa da língua à ecologia, do racismo ao movimento anti-globalizaçãoRoger Bourdeau
Quase todo ano o Quebec produz duas dezenas de longas metragens dos quais somente alguns atravessam o Atlântico para chegar até os cinéfilos franceses. Portanto, só se conhece aqui a pequena ponta deste iceberg que flutua no mar anglófono da América.
A parte submersa contém produtos de massa a serem consumidos lá mesmo, ou obras ricas mas confidenciais, comédias populares ou filmes do autor feitos com pequenos orçamentos, julgados, em geral, “inexportáveis” – por justa razão ou não. Com exceção da presença marcante nos festivais franceses ou europeus, em média, não mais que três ou quatro filmes quebequenses por ano entram em cartaz em Paris.
Temáticas intimistas
Numa realidade difícil para seus realizadores, o cinema do Quebec conta com a perpetuidade dos cineastas reconhecidos e a emergência de novos autores
As emoções provocadas este ano no Quebec por uma certa presença do cinema quebequaze na Croisette nos levam a perguntar o que está acontecendo no cinema da região. Além dos discursos oficiais, que encobrem mal uma realidade difícil para seus realizadores, o cinema quebequense se defronta, entre outras coisas, com duas facetas de um mesmo problema: a perpetuidade do trabalho dos cineastas reconhecidos e a emergência de verdadeiros novos autores .
Já há muitos anos, que se fala sem cessar de “revelação”, de “novas tendências” e até de “nouvelle vague”. Temas e estruturas certamente evoluíram. O cinema do Quebec hoje aborda sem complexos filmes de gênero ou produções históricas, antes desprezados, ou ainda segue a veia lucrativa da comédia popular local, já presente nos anos 1970. As repetidas decepções políticas embotaram, por um lado, a combatividade dos cineastas que repisam temáticas mais variadas, mais pessoais, até mesmo íntimas. Resumindo, uma certa maturidade que permite olhar e mostrar o mundo de maneira diferente.
Idade de ouro
Os combates dos anos da Revolução tranqüila para a afirmação da identidade quebequense entretanto marcaram profundamente todas as expressões culturais. O cinema, que foi, talvez, com a canção, o mais ardente porta-voz na França do discurso nacionalista, conheceu então uma idade de ouro junto à crítica, senão do público. Mas desde os anos 80, nenhum cineasta quebequense – com exceção de Denys Arcand – conseguiu impor seu nome na França.
O sucesso junto à crítica e ao público do filme O declínio do império americano(1986) e, em menor escala, de Jesus de Montreal (1989) estão ainda suficientemente vivos na lembrança de todos para que seu último filme, As invasões bárbaras (2002), apresentado em Cannes, na competição oficial, desperte um entusiasmo merecido e receba o prêmio de Melhor cenário e o de melhor interpretação feminina para a comediante Marie-Josée Croze.
Cinematografia de combate
Muitos jovens cineastas caminham sobre as marcas de seus antecessores, tomando emprestadas suas qualidades para adaptá-las aos combates contemporâneos
Vários jovens cineastas caminham sobre as marcas de seus antecessores, tomando muitas vezes emprestado as qualidades do cinema direto para adaptá-las aos combates contemporâneos. Se a independência do Quebec permanence presente no espírito de certos cineastas, assim como o perpétuo combate para a salvaguarda da língua francesa, a jovem geração se volta muito mais para temas que correspondem às preocupações de um mundo reconduzido à dimensão de um vilarejo. A ecologia, os movimentos anti-globalização, o lugar das mulheres na sociedade, os excluídos e um olhar sobre o mundo em desenvolvimento resumem simplesmente o vasto leque des temas que estão no centro dos questionamentos dos novos criadores da cinematografia de combate.
A idéia de autonomia do Quebec, posta de lado pela maioria dos cineastas, conserva no entanto alguns fervorosos defensores. Pierre Falardeau é, sem dúvida nenhuma, aquele cujo cinema continua mais ligado ao tema da autonomia. Bem sucedido quando aposta na possibilidade de fazer filmes, ao mesmo tempo abertamente político e muito popular – seu 15 de fevereiro de 1839 (2001), sobre o levantamento dos patriotas quebequenses contra o ocupante britânico, passou 170 mil vezes – ele exibe uma determinação férrea na perseguição de seus objetivos: fazer com que o maior número de pessoas tomem consciência da importância da questão nacional1.
Defesa da francofonia
Figura simbólica do gênero documentário, o grande diretor de fotografia Michel Brault defende também o ideal nacionalista desde seu filme As ordens (1974), Prêmio de Direção no festival de Cannes em 1975. Com seu filme sobre os patriotas Quando eu tiver partido… você ainda viverá (1999), ele trata do mesmo tema de Pierre Falardeau, mas com um enfoque diferente2
2. Como seu personagem, marcado a ferro e a fogo por ter se levantado contra o ocupante britânico, Michel Brault dá um testemunho de sua forte ligação com este período da história do Quebec, das raízes de seu engajamento na luta contra o abuso de poder e o desejo de liberdade.
O outro tema dos anos 60 e que sobrevive é a língua. Questão ao mesmo tempo vital e espinhosa: a salvaguarda do francês no Quebec sempre é objeto de debates apaixonados. Se a questão lingüística pode parecer subsidiária, a internacionalização do planeta ameaça as identidades nacionais e culturais. “Estou com dor na língua”, canta o grupo muito popular de rap Loco Locass…
O tema da ecologia
Aos espectadores franceses que se incomodam com o sotaque do Quebec, o diretor pede que leiam as legendas inglesas e finjam que o filme é eslovaco ou português
Escolher a defesa do sotaque de Quebec é, portanto, um gesto político. Bernard Emond, com 20h17, rua Darling, apresentado na Semana Internacional da Crítica deste ano, volta deliberadamente as costas aos esforços de internacionalização do vocabulário e a estes executivos, produtores ou cineastas, para os quais a pobre qualidade da linguagem dos filmes quebequenses seria um obstáculo para sua difusão na França. Para os espectadores franceses que não “degustariam o sabor desta língua”, ele pede que se dirijam às legendas inglesas e façam de conta que o filme é eslovaco ou português…
No Quebec dos grandes espaços virgens, tudo que se refere ao meio ambiente interessa a uma grande parte da população. A ecologia, por outro lado, não tem uma voz política eficaz mas se baseia em um tecido associativo militante muito ativo. A título de exemplo, as campanhas para a plantação de árvores que se expandiram para todos os cantos depois o imenso sucesso do filme de Frédéric Back, O homem que plantava árvores (1987), mobilizaram milhares de pessoas… A ilusão boreal (2001), de Richard Desjardins e Robert Monderie, que trata do alarmante estado de saúde da floresta boreal, teve o efeito de uma bomba, chegando a desencadear uma pesquisa pública sobre os gigantescos mercados de corte de madeira e sobre as duvidosas estratégias de conservação do patrimônio florestal.
Denúncia ambiental
Robert Monderie, também, no filme A lei da água (2003) prossegue na mesma trilha atacando os negociantes de água. É um filme de tomada de consciência, uma defesa para uma aplicação imediata do princípio de grande precaução no tratamento e na distribuição desta importante fonte vital.
Para o jovem produtor Hugo Latulippe, a industrialização da agricultura ameaça o Quebec a ponto dos próprios agricultores evocarem os perigos para os seres humanos ao entrarem em contacto com a águas dos riachos. Bacon, o filme (2002) mostra os grupos de cidadãos que tentam criar obstáculos aos poderosos grupos de pressão da indústria agroalimentar, dos quais não se pode ignorar suas influências no mundo político.
Evolução tecnológica
A ilusão boreal trata do alarmante estado de saúde da floresta boreal. O filme desencadeou uma pesquisa sobre os gigantescos mercados de corte de madeira
O realizador, que rodou seu filme em digital, quis que a montadora e o diretor de som, assinassem também o filme retomando, desta forma, a grande tradição do documentário que marcou o cinema quebequense. Não é por acaso que os avanços tecnológicos nas tomadas de cena conduzem a uma nova maneira de apreender a realidade. Como nos inícios dos anos 70, com a chegada do vídeo, que viu prosperar as realizações de grupos de ação social, o digital dá a todos os meios de se expressar. Da mesma maneira que o surgimento das câmeras leves e do Nagra nos anos 50 deram origem ao “cinema ao vivo” e, em seguida, à nouvelle vague.
Squat ! (2002) de Eve Lamont aborda de frente questões sociais candentes: ele relata a vida de ocupantes de um squat até a sua expulsão brutal e destaca o papel nada brilhante dos funcionários municipais nesta questão.
Racismo, imigrantes e globalização
Com a mesma integridade que os grandes documentaristas dos anos 50, Daniel Cross roda, em inglês, temas em colaboração com os excluídos ou os marginais. The Street, sobre a vida de um mendigo em Montreal ou Squegee Punk in Trafic (SPIT), sobre um militante punk toxicômano são dois longas metragens notáveis pela precisão de tom e de verdadeiro engajamento. Participando da mesma empreitada, Denis Chouinard escolheu a ficção para abordar a questão da integração dos imigrantes no Quebec: L’ Ange de goudron (2001) que entrará em cartaz na França neste outono, traça um perfil ao mesmo tempo sensível e realista da comunidade maghrebiana. O cineasta Robert Morin, ele também vindo de experiências com vídeo, trata o racismo ordinário no Quebec com um filme de ficção ferino: O Negro (2002).
Filme “oficial” dos manifestantes anti-globalização, Imagens da Cúpula (2002), de Magnus Isaacson propõe uma incursão ao coração dos acontecimentos de abril de 2001, por ocasião da Cúpula dos chefes de estados reunidos em Quebec para discutir a Área de Livre Comércio das Américas(Alca). Um coletivo formado pelos cineastas Luc Coté, Marie-Claude Harvey, Anne Henderson, Patricio Henriquez, Philippe Falardeau e Paul Lapointe sob a direção de Isaacson acompanha da maneira mais próxima possível os manifestantes e a repressão policial. No filme O bem comum, o último combate (2002), Carole Poliquin nos apresenta a comercialização do mundo. Philippe Falardeau em La moitié gauche du frigo (2001) que estreou na França no outono de 2002, aborda, sob a cobertura de um falso documentário, os riscos de um desempregado diante da globalização.
Em todas as frentes
Filme “oficial” dos manifestantes anti-globalização, Imagens da Cúpula mergulha nos acontecimentos de 2001, durante a Cúpula dos chefes de Estados no Quebec
O cinema quebequense volta-se também para outros mundos. Desta maneira Nascidos do ódio (2002), da jornalista Raymonde Provencher, interessa-se pelo destino das mulheres vítimas de estupro de guerra durante os conflitos dos últimos decênios – Coréia, Ruanda, Bangladesh, Bósnia e Nicarágua. Les Messagers (2003), de Helen Doyle, trata os artistas que optam por se imiscuir nas ações concretas nos países devastados pela guerra. E, finalmente, Crônicas da Palestina (2002), de Pierre Bastien, rodado no momento do início da Intifada de Al-Aqsa, no outono de 2000, volta a traçar o percurso dos protagonistas da primeira Intifada.
Câmera na mão, os cineastas de Quebec estão, portanto em todas as frentes. A herança do cinema ao vivo, sua escolha de engajamento assim como a necessidade de filmar na urgência impregna a filmografia dos cineastas que escolheram enfrentar o real para mostrar a sociedade. Longe das reportagens espalhafatosas da televisão, o documentário do autor se comporta bem apesar das constantes dificuldades encontradas para seu financiamento. Os resultados comprovam: os Brault, os Perrault, os Lamothe ficam certamente para a posteridade.
É, talvez, em um registro mais pessoal, tocando a intimidade, que esta filiação é a mais sensível. Faut – tu que je tue mon père (2002) de Nathalie Synett é uma espécie de diário da cineasta de uma cidadezinha de Gaspésia que olha a desesperança dos jovens ao redor dela. Ele apresenta a realidade deste pedaço perdido da América ao mesmo tempo com a raiva da desesperança e todas as audácias da indiferença. O filme recebeu o Prêmio Pierre e Yolande Perrault no festival de Cinema do Real, em Paris, em 2003.3
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Ler: “Les b?ufs sont lents mais la terre est patiente”, VLB Editeurs, Montreal,1999. Ler também: “La liberté n?est pas une marque de yoghourt”, Editions Stanke, Montreal, 1995
2 – Os dois projetos foram registrados na mesma époc