O retorno das leis celeradas
A repressão policial e judiciária que atinge os movimentos de protesto na França ilustra um processo mais do que centenário: as leis de exceção votadas em momentos de emergência acabam se tornando a norma
Em 10 de setembro de 1898, o jornalista Francis de Pressensé lançou, na tribuna de uma reunião de dreyfusianos em Saint-Ouen: “Acusam-me de empreender uma campanha com anarquistas e revolucionários; é uma honra para mim lutar com esses militantes pela justiça e pela verdade”.1 Tendo trabalhado como colunista oficialíssimo da política externa francesa, o ex-jornalista do jornal Le Temps era alvo de insultos diários na imprensa não apenas em decorrência de sua defesa do capitão Alfred Dreyfus, mas também porque se engajou nessa luta ao lado dos anarquistas. Tal aliança não era nada óbvia e tinha grande relação com a conjuntura econômica criada pelo Caso Dreyfus. Os libertários faziam campanha por seus camaradas enviados às galés por meio da aplicação das leis adotadas cinco anos antes em resposta aos atentados anarquistas. Alguns deles, como Émile Pouget e Jean Grave, de convicções naturalmente antimilitaristas, relutaram em se engajar na defesa de um capitão burguês e alto graduado do Estado-Maior.2
No entanto, ao longo de 1898, Pouget mudou de ideia, concordando em escrever contra as leis que tinham como alvo os partidários da ação direta ao lado dos dreyfusianos Pressensé e Léon Blum, então jovem auditor do Conselho de Estado. Essa aliança inédita encontrou seu lugar de expressão editorial em uma revista de vanguarda literária e artística, La Revue Blanche, então dirigida por um dândi anarquista, Félix Fénéon, que foi ele próprio preso por meio da aplicação dessas leis antiterroristas e depois absolvido. Na primavera de 1899, Fénéon publicou uma brochura reunindo artigos de Pressensé, Pouget e Blum. Seu título, Les Lois scélérates de 1893-1894 [As leis celeradas de 1893-1894], retoma o título de um artigo publicado por Blum seis meses antes. A leitura desses textos em 2019 revela paralelos espantosos entre a reação da jovem Terceira República ao terrorismo anarquista e o acúmulo contemporâneo de leis liberticidas que miram adversários políticos, manifestantes, muçulmanos excessivamente religiosos, ambientalistas radicais demais e até mesmo transeuntes distraídos que resolvam falar demais com a polícia…

Em 1893-1894, assim como no século XXI, parlamentares movidos pela ocorrência do atentado, e cujas defesas democráticas repentinamente evaporaram, decidiram adotar leis de exceção que se normalizaram e, depois de se voltarem especificamente contra os anarquistas, estenderam-se aos militantes políticos de esquerda como um todo, para em seguida alcançarem potencialmente a todos. Blum resumiu bem: “Dirigidas contra os anarquistas, elas resultaram em risco às liberdades fundamentais de todos os cidadãos”. Além disso, tais leis, em nome da luta contra a materialidade física do atentado, tentaram alcançar palavras, ideias, opiniões e até intenções. Blum, novamente, escreveu que a segunda lei celerada, sobre as associações de criminosos, “lesava um dos princípios gerais de nossa legislação. […] Segundo esse novo texto, a simples resolução, o mero acordo, ganharam um caráter criminoso”.
Foi após o atentado cometido por Auguste Vaillant que a Câmara dos Deputados adotou a primeira das três leis celeradas. No sábado, 9 de dezembro de 1893, o jovem anarquista lançou na Câmara uma bomba caseira cheia de pregos, que não matou ninguém e quase não causou feridos. Diz a lenda que, uma vez recobrada a calma, o presidente da Câmara, Charles Dupuy, declarou: “Senhores, a sessão continua”. Essas palavras simbolizam até hoje a serenidade legislativa da República.
Recentemente, Christian Vigouroux, conselheiro de Estado e ex-chefe de gabinete de vários ministros do Interior e da Justiça, orgulhava-se da capacidade de nosso sistema de jurídico respeitar as liberdades fundamentais mesmo diante dos piores horrores. Em 2017, esse eminente jurista apresentou o episódio de 9 de dezembro de 1893 como um modelo de reação democrática ao terrorismo: “Essa força de resistência da Câmara dos Deputados que não se interrompeu mostra ao próprio terrorismo que, aos olhos da nação, não é ele que define a agenda das instituições”.3 Por analogia, o jurista glorifica a resposta do Estado ao terrorismo em 2015, que, segundo ele, combina o uso do estado de emergência com o respeito às liberdades. O paralelo, no entanto, não se sustenta: na realidade, não passaram nem dois dias após o atentado de dezembro de 1893 para que, na segunda-feira, dia 11, a Câmara dos Deputados – sob a presidência de Dupuy – votasse a primeira das leis celeradas. Blum mostrou como a Câmara perdeu todo o sangue-frio e legislou sob pressão do governo, que instrumentalizou o atentado para conseguir aprovar tudo. Os deputados votaram antes mesmo que o texto do projeto fosse impresso e distribuído a eles – um claro sinal de calma, sangue-frio e moderação…
A primeira lei celerada pune a apologia a crimes ou delitos. Uma década antes, quando foi votada a grande lei sobre a liberdade de imprensa de 1881, os parlamentares haviam se recusado a incluir esse delito em nossos códigos, pois isso permitiria uma “caça ao pensamento”, nas palavras do relator Eugène Lisbonne. E foi efetivamente o que aconteceu a partir de 1893, quando a polícia passou a prender pessoas que tinham feito declarações favoráveis ao anarquismo. Essa lei também permitia a prisão provisória, ou seja, a detenção antes do julgamento, de pessoas que tivessem proferido declarações belicosas. O alto magistrado Fabreguettes comemorou o fato de que, com a nova lei, seria possível, “em plena reunião pública, prender um delinquente”.4
Essa lei existe até hoje. Aliás, ela foi agravada em 2014, por iniciativa do então ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, que permitiu que a apologia ao terrorismo fosse julgada em comparution immédiate [uma modalidade de julgamento expresso].5 Isso resultou na prisão de dezenas de réus que não tinham nada de terroristas, mas haviam feito observações suscetíveis de receber essa qualificação penal. Após os atentados de janeiro de 2015, a Anistia Internacional e a Liga dos Direitos Humanos mostraram-se impressionadas com as pesadas sentenças proferidas em decorrência da aplicação do novo texto.6
A segunda lei celerada, sobre a associação de criminosos, introduz na lei a noção de conspiração e de participação em uma conspiração, passível de repressão, mesmo na ausência de qualquer início da execução de uma infração. Pressensé temia que esse texto pudesse “atingir, sob o nome de conspiração e de participação em uma conspiração, fatos tão pouco suscetíveis de repressão, como conversas privadas, cartas e até a mera presença em uma conversa, o fato de ouvir certas declarações”. Não levou quinze dias para que seus medos fossem confirmados: em 1º de janeiro de 1894, dezenas de pessoas listadas como anarquistas pelo serviço de inteligência foram submetidas a mandados de busca. Os jornais davam diariamente numerosos detalhes sobre essas operações policiais, que, no final, não resultaram em praticamente nenhuma condenação.
Essas leis permitem multiplicar medidas de restrição, atentatórias contra as liberdades individuais, que escapam ao controle dos juízes. Foi o caso em 1894 e também em 2015, quando o estado de emergência autorizou milhares de buscas administrativas que violaram a privacidade de famílias muçulmanas ou de ativistas ambientais, sem que a esmagadora maioria dessas visitas domiciliares fosse acompanhada por um juiz. E também em dezembro de 2018, quando, aplicando as ordens da Guarda dos Selos Nicole Belloubet, os promotores da República permitiram, em toda a França, prisões preventivas de coletes amarelos que participaram de manifestações. Desse modo, a polícia priva milhares de cidadãos de sua liberdade, por algumas horas ou durante vários dias, sem que tal violação de seus direitos seja acompanhada por um juiz independente.
No entanto, o legado mais importante das leis celeradas encontra-se hoje na lógica da suspeita, que contamina tanto o direito penal como o direito administrativo. O agora famoso delito de participação de um grupo com o objetivo de cometer violência ou depredação – criado em 2010 por iniciativa do deputado Christian Estrosi para combater o que ele chamou de “violência de grupo” – representa a versão leve da associação de criminosos de 1893. Ele permite punir meramente a intenção, sem que nenhuma violência ou dano material tenham sido iniciados. Utilizado maciçamente contra os coletes amarelos, esse delito passou a ser usado nos tribunais para encarcerar meros manifestantes. Do lado da polícia administrativa, os dois anos de estado de emergência (2015-2017) e a inclusão deste no direito comum ancoraram de forma sólida a ideia de que o Estado poderia se livrar de elementos que ele considera perigosos. Há vários mecanismos que permitem – diante apenas de informações policiais sem fonte nem assinatura – demitir um condutor de trem ou de metrô considerado engajado demais,7 colocar um muçulmano em prisão domiciliar,8 afastar de seus empregos todos os inimigos que o Estado designar como tais, concedendo uma confiança cega à polícia.
“Todo mundo admite”, concluiu Blum, “que essas leis nunca deveriam ter sido nossas leis, leis de uma nação civilizada, de uma nação justa. Elas transpiram tirania, barbárie e mentira.”
Raphaël Kempf é advogado, autor de Ennemis d’État. Les lois scélérates, des anarchistes aux terroristes [Inimigos do Estado. As leis celeradas, dos anarquistas aos terroristas], La Fabrique, Paris, 2019.
1 Rémi Fabre, Francis de Pressensé et la défense des Droits de l’Homme. Un intellectuel au combat [Francis de Pressensé e a defesa dos direitos humanos. Um intelectual em combate], Presses Universitaires de Rennes, 2004.
2 Jean-Jacques Gandini, “Les anarchistes et l’affaire Dreyfus” [Os anarquistas e o Caso Dreyfus], Réfractions, n.42, Paris, primavera de 2019.
3 Christian Vigouroux, Du juste exercice de la force [Do justo exercício da força], Odile Jacob, Paris, 2017.
4 M. P. Fabreguettes, De la complicité intellectuelle et des délits d’opinion. De la provocation et de l’apologie criminelles. De la propagande anarchiste. Étude philosophique et juridique [Da cumplicidade intelectual e dos crimes de opinião. Da provocação e da apologia criminais. Da propaganda anarquista. Estudo filosófico e jurídico], Chevalier Marescq et cie, Paris, 1894-1895.
5 Lei n. 2014-1353, de 13 de novembro de 2014, que fortalece as disposições relativas à luta contra o terrorismo.
6 “France. ‘Test décisif’ en matière de liberté d’expression, avec de très nombreuses arrestations dans le sillage des attentats” [França. “Teste decisivo” para a liberdade de expressão, com inúmeras prisões após os atentados], Anistia Internacional, 16 jan. 2015; “Déjà 50 poursuites engagées au pénal pour apologie du terrorisme” [Já são 50 processos criminais por apologia ao terrorismo], Liga dos Direitos Humanos, Paris, 14 jan. 2015.
7 Lei n. 2016-339, de 22 de março de 2016, relativa à prevenção e ao combate às incivilidades, às ameaças à segurança pública e aos atos terroristas no transporte coletivo de passageiros.
8 Lei n. 2017-1510, de 30 de outubro de 2017, que fortalece a segurança interna e o combate ao terrorismo.