O riso do inferno
A alegria maligna é uma das expressões mais assustadoras de uma individualidade má: um deleite com o sofrimento alheio, muito mais que a mera indiferença por algo que não diz respeito ao sujeito da ação
Alegria maligna! Poucas palavras expressariam os deboches, as gargalhadas e as agendas de lazer não canceladas do Chefe de Estado brasileiro ante os milhares de mortos pela Covid-19. Um dos últimos exemplos foi seu passeio de jet ski no dia em que o número de vítimas fatais passou de 10 mil. É certo que palavras não estão dando conta do Brasil de 2020, mas alegria maligna continua uma expressão apropriada.
Imagens de vastos terrenos retalhados por covas para cadáveres da pandemia não são as mais funestas. Nosso pandemônio tropical insiste em ser particular. Em lugar do luto, a imagem do riso medonho do Presidente, em lazer num clube de tiros; um anúncio de churrasco e festa no Palácio do Alvorada, posteriormente cancelado e chamado de “brincadeira”; as gargalhadas de puro deboche maldoso da secretária de Cultura naquela tentativa de entrevista.
Um filósofo alemão do século XIX, ao definir o mal, explicou o riso macabro do bolsonarismo. Arthur Schopenhauer. Em um mundo curvado sob novas cargas de sofrimento, diríamos que sua filosofia pessimista é novamente atual. Mas não precisamos ser genéricos.
Como manifestações de uma vontade enquanto força constitutiva da natureza, haveria, segundo ele, três grandes tendências impulsivas individuais, definidoras de caráter: o egoísmo, a maldade e a compaixão. Ao longo da vida, cada pessoa estamparia em suas ações o predomínio de uma dessas tendências, mesmo que todos tenhamos um pouco de cada.
A compaixão refere-se a “querer o bem-estar alheio”, algo que pode chegar aos mais altos graus de generosidade, justiça livre, caridade e solidariedade genuínas. Por não estar imbuída de interesses próprios e se referir à participação no impedimento ou na supressão do sofrimento de um outro, é tida por Schopenhauer como o fundamento da moral.
O egoísmo refere-se ao ímpeto por existência e bem-estar. Define-se como “querer seu próprio bem” (de forma ilimitada). Sua palavra de ordem é “tudo para mim e nada para o outro”.
E maldade refere-se a “querer o mal alheio”. Pode chegar até a mais extrema crueldade. Como motivação que tem como fim a dor e o sofrimento de outrem, difere do egoísmo, que provoca dor apenas como meio para satisfações do agente. Para a maldade, alcançar o sofrimento ou mesmo a eliminação do outro é o que proporciona prazer.
Daí a alegria maligna como uma das expressões mais assustadoras de uma individualidade má: um deleite com o sofrimento alheio, muito mais que a mera indiferença por algo que não diz respeito ao sujeito da ação. Enquanto a máxima do mais extremo egoísmo é “não ajudes a ninguém, mas prejudica a todos, se acaso fores levado a isso”, a da maldade é “prejudica a todos que puderes”.
Schopenhauer escreveu uma metafísica imanente. O espanto filosófico é com o próprio mundo, nu e cru. Nada de cucolândia das nuvens. As potências antimorais que tornam o mal efetivo vão da difamação e da inveja à crueldade. Do egoísmo derivariam vícios como a avidez, a luxúria, o interesse próprio, a avareza, a cobiça, a injustiça, a dureza de coração, o orgulho, a vaidade, a prepotência etc. Da maldade e do ódio surgiriam o ciúme, a inveja, a alegria maligna, a petulância, a ira, o rancor, a difamação, a vingança, a crueldade etc.
A melhor imagem literária para essa gradação de mazelas não seria o Inferno de Dante, mas o Pandemônio de Milton, com seu “príncipe das trevas”.
Em um tal mundo, o mal é positivo. Não é negação do bem, nem derivação de qualquer coisa. O mal existe antes. E a mencionada variedade de potências antimorais enraíza-se nas próprias individualidades, em traços de caráter.
A pergunta mais importante, então, não seria pelo motivo do riso de Bolsonaro e dos seus ante a pandemia. Seria sobre como alguém consegue rir, sobre o caráter de quem ri.
Para Schopenhauer, inveja e alegria maligna, perfiladoras da maldade, ocupam o lugar que deveria ser da compaixão, que é justamente o seu oposto, fonte de justiça autêntica e filantropia. Mas sentir inveja ainda é humanamente justificável. Já alegria maligna estampa um diabolismo, revela uma potência de alguma forma inumana.
Sentir inveja é humano, gozar alegria maligna é diabólico.
Alegria maligna, no entanto, é mera expressão teórica. Em termos práticos, concretos, atende por crueldade. A alegria maligna é apenas a crueldade teórica, e a crueldade é apenas a alegria maligna prática.
De crueldade teórica, portanto, Bolsonaro e os seus nos dão provas diárias. Além dos exemplos já citados, não é muito lembrar da alegria maligna que se escancarou quando o presidente disse ser preciso “haver contaminação total”, precisamente enquanto gracejava e forçava um abraço no governador do Estado de Goiás; quando, ao ser indagado sobre medidas governamentais ante o número de mortos pela COVID-19, retrucou com um “não sou coveiro”; e quando, dias depois, para a repetição desta mesma pergunta, respondeu com o já famoso “E daí?”. E teremos muito mais exemplos se considerarmos os seus séquitos e parceiros, caso do escarnecimento elevado ao último grau de um blogueiro bolsonarista e de seus amigos que aparecem em um vídeo dançando e debochando da pandemia.
Mas e de alegria maligna prática, algum exemplo?
É certo que Bolsonaro e os seus não manipulam instrumentos de tortura, não têm uma cadeira elétrica à mão – o que certamente seria realidade se dependesse apenas de suas saudades da ditadura militar e de suas personalidades autoritárias (para usarmos um termo de Theodor Adorno). Na oportunidade em que evocou o torturador Ustra em seu voto pelo impedimento de Dilma Rousseff, o então deputado frisou que era por se tratar do “terror” da presidenta. Torturadores como Ustra sentem prazer, alegram-se vendo a vítima receber choques, ter dentes quebrados, ser estuprada. Os próprios sobreviventes o descreveram em detalhes: “Um monstro que me torturava com choques e ria” (grifo meu), relatou um deles à Comissão Nacional da Verdade.
Bolsonaro estaria apenas reproduzindo por outros meios o mesmo prazer em fazer sofrer que apetecia seus ídolos? Impossível não ver como “torturada” a população relegada – propositalmente – pelo Estado que ele comanda. O definhar de milhares de desprotegidos e a gana pelo fim do isolamento social (ouvida por boa parte da população) satisfazem desejos do presidente. Dispensável é, aqui, elencar quantas vezes ele e seus apoiadores verbalizaram desejos necrófagos. Desejos e quereres de individualidades, de caracteres. As gargalhadas de quem poderia evitar muito sofrimento e insiste em não fazê-lo são os mais claros atestados de que tais desejos estão sendo satisfeitos.
É assim que Schopenhauer explica o riso macabro e os renovados deboches do bolsonarismo ante a pandemia em curso. São puras expressões de alegria maligna. Seu escárnio, nos termos do filósofo, é “o riso do inferno”.
Referências:
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a ética [Capítulos de Parerga e Paralipomena II]. Tradução de Flamarion Caldeira Ramos. São Paulo: Hedra, 2010.
Vilmar Debona é Professor de Ética do Departamento de Filosofia da UFSC.
O autor gradece a Cláudia Assunpção Dias pelas determinantes sugestões