O romance do fim do mundo
Cada indivíduo deveria sentir-se parte integrante de um grupo estreitamente definido, e só em seguida definir-se pela sua profissão, pela sua comunidade, como cidadão de uma nação ou do mundo. É fundamental lutar contra a noção de cidadaniaSusan George
“Em primeiro lugar, devem ser consolidadas as fundações deste ambicioso empreendimento que tem por objetivo uma redução maciça da população. São quatro os pilares que se apóiam nessas fundações: o pilar da ideologia e da ética; o pilar econômico; o pilar político; e o pilar psicológico”, afirma O Relatório Lugano. Seguem-se alguns trechos de suas recomendações em matéria ideológica e psicológica…
Para que um verdadeiro controle populacional seja aceitável, deve ser criado um novo clima de idéias e de opiniões, um clima que não pretenda ser o ponto de partida dogmático para uma liberdade individual sem restrições, nem tenha os “direitos humanos” como eixo central. Por isso, incentivamos vivamente os nossos mandatários a criarem e financiarem um corpo de pensadores, escritores, professores e comunicadores capazes de desenvolver conceitos, argumentos, imagens que justificarão — nos planos intelectual, moral, econômico, político e psicológico — estratégias enérgicas de controle populacional. Esses trabalhadores intelectuais deveriam também elaborar e divulgar uma ética renovadora e pragmática para o século XXI.
Um investimento substancial, num contexto ideológico conveniente, produziria um retorno muitíssimo maior. É evidente que as idéias de grandes pensadores como Platão, Darwin, Hobbes, Malthus, Nietzsche, Hayek, Nozik (e também, se a ousadia permite esperar, aquelas contidas neste relatório) deverão ser rejuvenescidas, revistas e adaptadas ao paladar da realidade contemporânea, reformuladas em função de diferentes públicos e disseminadas entre dirigentes formadores de opinião, com poder de decisão e o grande público. (…) Partimos do princípio de que a criação de um tal núcleo de “legionários ideológicos” criaria pouco ou nenhum problema para os nossos mandatários. Isto porque eles seguramente mantêm estreitos vínculos com os dirigentes dos grandes conglomerados mundiais de comunicação — hoje, em franca expansão —, empresas essas que contam entre seus quadros os “alto-falantes intelectual-ideológicos” necessários à disseminação das idéias.
A serviço do mercado
Em toda a candura, os membros desse grupo de trabalho consideram-se a si próprios como protótipos desse contexto intelectual. Além do que reconhecem abertamente que se deixaram seduzir pelas compensações materiais envolvidas em sua participação no empreendimento, muito mais do que seus méritos intrínsecos. No fundo, não seremos diferentes de outros pensadores, cientistas e escritores profissionais que reconhecerão as óbvias vantagens do liberalismo e colocarão seu saber e seu talento a serviço do mercado sempre que isto representar uma vantagem clara.
Sejam elas coletivas ou individuais, as abordagens psicológicas, a “batalha pelos corações e mentes” (…) podem contribuir para a criação de uma atmosfera que propicie a hostilidade entre os grupos; por outro lado, essa hostilidade pode estar na origem de reduções de população. Paradoxalmente, também a psicologia individual pode favorecer a globalização.
A “política da identidade”
O mais útil dos instrumentos psicológicos postos à disposição destes objetivos é a “política da identidade”, como é chamada no Ocidente. Falando em termos ideais, e onde quer que se encontrem, os indivíduos deveriam ter uma estreita identidade com um sub-grupo étnico, sexual, lingüístico, racial ou religioso, antes de uma definição que passe pela associação de sua pessoa com um país, ou mesmo a uma classe social ou a uma categoria profissional desse país, e menos ainda por uma identificação como membro da “raça humana”. Cada indivíduo deveria, antes de tudo, se sentir parte integrante de um grupo estreitamente definido, e só em seguida definir-se pela sua profissão, pela sua comunidade, pelo seu estado civil, como cidadão de uma nação ou do mundo. É fundamental lutar, a todos os níveis, contra a noção de cidadania.
Uma parte da ofensiva ético-ideológica esboçada acima deveria dedicar-se a suprir um apoio material e moral aos porta-vozes mais agressivos e mais desembaraçados ao enumerar as particularidades, sejam elas sexuais, raciais, religiosas ou étnicas. Para aqueles que tenham maior dificuldade em se manifestar espontaneamente, seria necessário criarem-se canais específicos que lhes permitissem acessar com facilidade os meios de comunicação.
Reforçar a fragmentação
Em quem estamos pensando? Nos negros, nos brancos, nos amarelos, nos mestiços, nos homossexuais de ambos os sexos, nas feministas, nos falocratas, nos fundamentalistas e nos “hegemonistas” — sejam eles, judeus, cristãos, muçulmanos ou hindus; mas também nos grupos profissionais caluniados, desde motoristas de magnatas aos policiais. Cada grupo terá o seu jornal, a sua revista, a sua rádio, a sua televisão, o seu site informático, e todos cuidarão de defender os seus “direitos”. “Direitos” esses que não devem ser exclusivamente concebidos de forma negativa (por exemplo, os negros de não serem perseguidos, de não serem vítimas da violência ou de não serem discriminados), mas também de uma forma positiva (ou seja, o direito a um tratamento especial em nome de erros passados ou presentes, reais ou imaginários), até chegar à inclusão do direito de desfrutar de um Estado separado.
Uma vez que praticamente todos os grupos identificáveis do planeta foram, em algum momento, e a um nível maior ou menor, vítimas de um outro grupo — ou simplesmente de condições históricas e/ou geográficas específicas —, a gritaria que se vai levantar deveria criar uma cacofonia ensurdecedora, a ponto de que um apelo a empunhar armas não seria sequer ouvido, devido ao tumulto. O objetivo é reforçar a fragmentação, ressaltar as diferenças entre os grupos e de construir guetos, sejam eles ou não baseados em fatos ou na tradição. Ao contrário das idéias divulgadas, a maioria das identidades — e especialmente as ditas “identidades étnicas” — tem raízes históricas muito fracas e, na maioria dos casos, muito recentes. Essas identidades são, portanto, um pouco como Deus: mesmo se não existissem, são extremamente fortes — a ponto das pessoas matarem em seu nome.
Alimentar ódios e manipular conflitos
O meio mais rápido para se provocar um recuo de identidade acompanhado por um estado de espírito belicoso consiste em fazer com que um número considerável de membros do grupo X sejam humilhados ou assassinados por membros do grupo Y (basta que o grupo X acredite que alguns dos seus foram assassinados ou humilhados). Embora esse tipo de tensões nem sempre seja fácil de criar ou manipular, a história contemporânea oferece inúmeros exemplos de casos em que surgiram e se ampliaram, com pleno êxito, diferenças étnicas ou religiosas duvidáveis. Os ódios profundos entre grupos e os conflitos latentes podem ser reforçados pelo crescimento das atuais tendências racistas e pelas provocações que inevitavelmente serão feitas pelos grupos mais inclinados à violência.
A política da identidade apresenta duas vantagens notáveis. Primeiro, ao intensificar todo o tipo de tensões no interior das comunidades, ela cria condições que produzem conflitos internos e guerras civis. Mesmo que essas tensões não cheguem à guerra aberta, mantêm as facções mais radicalizadas num estado de obscuridade colérica, umas contra as outras, embora os verdadeiros atores da cena mundial sejam praticamente invisíveis a essas mesmas facções. Em segundo lugar, a política da identidade neutraliza a solidariedade e torna extremamente problemática a oposição às estratégias que recomendamos; alianças nacionais ou internacionais tornam-se difíceis, senão impossíveis, assim como é excluído qualquer recurso à verdadeira ação política.
Cegueira psicológica à realidade
Em lugar de perguntarem o que podem fazer, as pessoas deveriam preocupar-se principalmente em saber quem são. A globalização econômica e política não terá qualquer dificuldade em continuar na medida em que as pessoas sejam psicologicamente cegas ao que está acontecendo e na medida em que não exista uma cidadania mundial correspondente que a ela se oponha. (…) Os possíveis dirigentes que teimarem em adotar estratégias de solidariedade e de universalidade — assim como os que se esforçam por praticar um nacionalismo inclusivo, fundado na noção de cidadão — devem ser desacreditados a nível pessoal, de forma a perderem a confiança de seus vizinhos, de seus alunos, de seus colegas, dos trabalhadores, enfim, lançando dúvidas sobre a sua “raça”, a sua origem étnica, as suas preferências sexuais ou a sua honestidade.
Recentes trabalhos científicos abriram novas perspectivas sobre estas questões; deveriam ser acompanhados, com a devida atenção, como aplicações práticas do processo vinculado ao “imperativo da redução” A teoria dos jogos e especialmente a primatologia contribuem para explicar por quê e como os seres humanos cooperam e vivem em sociedade. As simulações por computador, bem como certas estratégias do jogo, mostram que é possível provocar atitudes conciliatórias e uma cooperação que continuará por tempo indefinido, assim como, pelo contrário, uma seqüência de recriminações mútuas inextricáveis e cada vez mais venenosas que desembocarão no ód